Sergio Abreu e Lima Florêncio: América Latina – O avanço de ontem e o declínio de hoje
Cúpula das Américas esvaziada neste ano contrasta com o primeiro encontro regional organizado pelos EUA em 1994 e revela a perda de importância dos países do continente, distanciamento da maior potência do hemisfério e retrocesso democrático vivido por muitos dos países latino-americanos
Cúpula das Américas esvaziada neste ano contrasta com o primeiro encontro regional organizado pelos EUA em 1994 e revela a perda de importância dos países do continente, distanciamento da maior potência do hemisfério e retrocesso democrático vivido por muitos dos países latino-americanos
Por Sergio Abreu e Lima Florêncio*
Os sinais de declínio da relevância internacional da América Latina ficam evidentes quando comparados à atração da União Europeia (UE) para países do Leste Europeu, com a emergência da China e o crescente protagonismo asiático.
Mas é no próprio âmbito hemisférico que se evidencia essa perda de importância. A 9ª Cúpula das Américas, que acontece nesta semana em Los Angeles (EUA), exibe um marcante contraste com a Cúpula Inaugural de Miami, em 1994. O primeiro evento contou com a presença de 33 países da região, sendo Cuba a única exceção, enquanto o deste ano deve ter a ausência de chefes de Estado de quatro nações.
Essa nova edição da Cúpula reflete, em uma primeira abordagem, o distanciamento crescente entre EUA e América Latina, em contraposição a uma China com poderosa influência em investimentos e comércio. A presidência errática de Donald Trump, ao produzir tensões, como a construção de um Muro na fronteira com o México e as ameaças de intervenção na Venezuela, certamente contribuiu para configurar esse distanciamento em relação à potência hemisférica. Mas a resistência a reformas econômicas e a manutenção de privilégios inerentes ao sistema político excludente na própria América Latina são os grandes responsáveis por trajetória carregada de fracassos nos mais diversos campos –integração regional, inserção na economia global, e perda de influência nas questões internacionais.
O quadro econômico e político da região, por ocasião da 1ª Cúpula das Américas, refletia avanços marcantes na consolidação de regimes democráticos recém egressos de ditaduras militares, avanços na integração sub-regional (Nafta e Mercosul), e potencial para a criação de uma área de integração hemisférica, por meio da Área de Livre Comércio das Américas (Alca).
Esses progressos estavam em grande medida condicionados por uma conjuntura internacional de avanço do liberalismo no plano global, com a queda do muro de Berlim. A expansão da integração, por sua vez, derivava da chamada formação de blocos econômicos, com o aprofundamento da União Europeia em direção ao euro. Processos sub-regionais como o Mercosul eram vistos como etapa de adaptação de economias fechadas para o salto que se avizinhava em direção à globalização. Ao mesmo tempo, a trajetória exitosa da UE poderia se expandir para a América Latina, o que ameaçava a hegemonia norte-americana e estimulava movimentos compensatórios de Washington em defesa da Aca.
Esse quadro de oportunidades e desafios do passado contrasta com um cenário atual que se afigura, nas palavras de Alberto Moreno, ex-Presidente do BID, como uma nova “década perdida”, semelhante aos anos 80. Ao mesmo tempo, projeções do FMI indicam que os níveis de renda per capita da região só deverão atingir os patamares pré-pandemia em 2025.
Essa digressão histórica permite um paralelo com as atuais condicionantes externas que estão na base do declínio da importância internacional da América Latina e do retrocesso democrático.
A importância geopolítica da América Latina –tradicionalmente modesta, com exceções episódicas, como a Crise dos Mísseis de 1962– vem se reduzindo de forma acentuada a partir da segunda década deste século. Dois fenômenos contribuíram para aquela perda de relevância: 1º) a crescente rivalidade entre EUA e China, sob a liderança de Trump e Xi Jinping; e 2º) a invasão russa da Ucrânia.
A guerra, ao aglutinar de forma inesperada, por um lado, os EUA, a EU e a Otan, e de outro, China e Rússia, parece abrir caminho para uma nova ordem internacional em gestação, pautada muito mais pela confrontação do que pela cooperação. Essa nova configuração internacional –estratificada e polarizada– acentua o declínio da influência internacional da América Latina. A polarização no centro do sistema internacional reduz o espaço de atuação da periferia.
O declínio, visto a partir do contexto latino-americano, é agravado por um retrocesso marcante em questões tradicionalmente relevantes para a região, como integração, meio ambiente e direitos humanos. Nesse sentido, o caso brasileiro é emblemático. Desde o início do atual governo, esses temas foram negligenciados, estigmatizados e vítimas de retrocessos que comprometeram princípios e diretrizes históricas de nossa política externa. O destacado papel de vanguarda do Brasil em temas ligados ao desenvolvimento sustentável, derivado do peso da Amazônia e do desempenho de nossa diplomacia, foi apagado do mapa por uma gestão retrógrada e irresponsável. Igual destino tiveram nossas posições nos temas tanto de direitos civis e políticos, como de direitos econômicos e sociais. Os avanços ocorridos nas gestões de Fernando Henrique Cardoso e de Luiz Inácio Lula da Silva se transformaram em comprometedores retrocessos no atual governo.
No plano econômico, a rapidez da globalização, com a emergência da China e sua entrada na Organização Mundial do Comércio (OMC), provocou o boom das commodities e beneficiou a América Latina, tradicional fornecedora de produtos primários. Mas as assimetrias de benefícios gerados pela globalização cedo se fizeram sentir, com dividendos robustos para a China, em contraposição à crescente desigualdade de renda e de oportunidades nas economias dos EUA e da Europa. O corolário político desse fenômeno foi o surgimento dos populismos de direita na Europa (Hungria, Polônia, Áustria) e nos EUA (Trump).
Na América Latina, passado o boom das commodities, que acelerou o crescimento do PIB e avanços sociais, os retrocessos da globalização também passaram a prevalecer. A onda de democracias liberais foi substituída pela hegemonia de regimes populistas com o inevitável corolário de benesses econômicas insustentáveis e instabilidade política recorrente.
A região se vê hoje confrontada com um quadro de virtual estagnação econômica, pressões sociais agravadas pelo desemprego e pela desigualdade, com o corolário de ataques às instituições, maior protagonismo de militares na política, polarização ideológica e crescente instabilidade.
Se no plano doméstico esse é o cenário prevalecente, na esfera regional ele aparece sob a forma de uma região desarticulada entre seus membros e fragmentada por diversas índoles políticas. Esse divisionismo doméstico e latino-americano também está presente hoje na potência hemisférica. Apesar da derrota eleitoral de Trump, os neoconservadores ameaçam a democracia norte-americana e sua política externa. Nesse contexto prevalecente tanto no Norte como no Sul do continente, não é estranho que a Cúpula das Américas ocorra sob o signo da exclusão de pelo menos quatro de seus membros, em contraste com sua congênere, quase três décadas atrás, que contava com a integralidade dos países, com exceção de Cuba.
No passado, as crises econômicas e os impasses políticos se refletiam na recorrência de oligarquia, populismo e golpe militar: a trilogia do atraso na América Latina. No mundo de hoje, o último elemento da equação –inviabilizado por pressões domésticas e internacionais– foi substituído por fórmulas mais sutis do jogo político, que configuram as chamadas democracias iliberais, baseadas no uso político sem controle das redes sociais, que alimentam populismos de diversos matizes. A região parece hoje refletir, com quase um século e meio de distância e alguma adaptação, a frase de Porfírio Dias sobre a vizinhança do México. “Triste América Latina, tan lejos de Dios, y tan cerca de los populismos”.
* Sergio Abreu e Lima Florêncio é professor de história da política externa brasileira no Instituto Rio Branco, economista e foi embaixador do Brasil no México, no Equador e membro da delegação brasileira permanente em Genebra.
Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional
Sergio Abreu e Lima Florêncio é colunista da Interesse Nacional, economista, diplomata e professor de história da política externa brasileira no Instituto Rio Branco. Foi embaixador do Brasil no México, no Equador e membro da delegação brasileira permanente em Genebra.
Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional