Tatiana Rosito: Apesar de ter objetivos claros, Brasil não desenvolveu estratégia de longo prazo para relações com a China
País declara querer aprofundar a relação comercial, diversificar a pauta de exportações e agregar mais valor a seus produtos nas relações com seu principal parceiro comercial, mas não indica como pretende alcançar isso e parece faltar uma estratégia estabelecida para atingir objetivos, explica a diplomata e economista
País declara querer aprofundar a relação comercial, diversificar a pauta de exportações e agregar mais valor a seus produtos nas relações com seu principal parceiro comercial, mas não indica como pretende alcançar isso e parece faltar uma estratégia estabelecida para atingir objetivos, explica a diplomata e economista
Por Daniel Buarque
Apesar de ser o principal parceiro comercial do país, a China continua oferecendo oportunidades e riscos que não são totalmente explorados pelo Brasil. Mesmo considerando que ao longo das últimas duas décadas o Brasil tenha desenvolvido de forma clara a ideia de aprofundar a relação comercial, diversificar a pauta de exportações e agregar mais valor a seus produtos, parece faltar uma estratégia estabelecida para fazer com que isso aconteça.
“Nós declaramos a estratégia de diversificar e agregar. A questão é entender o que estamos fazendo, em termos de políticas públicas, para que essa estratégia possa ser implementada”, argumentou a diplomata e economista Tatiana Rosito em entrevista à Interesse Nacional.
Senior fellow do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (CEBRI), Rosito é consultora do New Development Bank (NDB) em Xangai e publicou no início deste ano o relatório Brazil–China Trade Relations – In search of a strategy, junto com o diretor do Instituto Brasil do King’s College London, Vinícius Mariano de Carvalho.
“Em um mundo onde coexistem a globalização e a fragmentação das cadeias globais de valor, e onde a China desempenha um papel central, o Brasil deve reimaginar seu caminho para o desenvolvimento explorando dinâmicas regionais que podem promover transformações domésticas estruturais. Explorar todo o potencial de produtos de baixo carbono e ligados à sustentabilidade pode agregar valor e transformar o padrão de comércio bilateral com a China de forma sustentável”, diz o relatório.
Para Rosito, o Brasil enfrenta os riscos dessa falta de estratégia de longo prazo, mas ainda pode aproveitar oportunidades abertas pela China, que está interessada em produtos mais sofisticados e em parceiros que possam oferecer isso de forma sustentável. “ O gargalo é uma estratégia mais clara, que inclusive envolve uma campanha de imagem. Essa imagem precisa estar relacionada a questões concretas no Brasil. Sem isso, vai ser difícil conseguir implementar a estratégia de diversificar e aumentar o valor agregado”, disse.
Leia abaixo a entrevista completa
Daniel Buarque – O relatório que você publicou diz algo que é comum ouvir sobre as relações Brasil-China: A China sabe o que quer do Brasil, mas o Brasil não sabe o que quer da China. O Brasil continua sem saber o que quer da China?
Tatiana Rosito – É sempre possível argumentar o contrário, e dizer que o Brasil sabe, e que isso está revelado pelos números, pela nossa relação. Queremos aprofundar essa relação comercial, por exemplo, na área agrícola, queremos diversificar as exportações e agregar valores de exportações.
A minha preocupação é sobre a estratégia de longo prazo do Brasil para a China. Isso porque a China tem um governo centralizado, tem planos de longo prazo. A preocupação nessa questão da estratégia de política pública mesmo. Nós declaramos a estratégia de diversificar e agregar. A questão é entender o que estamos fazendo, em termos de políticas públicas, para que essa estratégia possa ser implementada. E isso envolve muitas políticas públicas, não só a relação política, bilateral, diplomática, mas políticas públicas lato sensu. O resultado do nosso comércio com a China não é apenas a relação bilateral. É resultado de muitos fatores, relação com outros países, ações de preços, de termos de troca. Então uma série de coisas determinam a relação bilateral com a China. Se nós queremos, de fato, isso da relação com a China, é preciso fazer mais. Essa estratégia deve ser construída pelo governo, mas com um diálogo amplo com os setores econômicos, industriais e acadêmicos. De imediato, pode-se falar da importância de acordos na área regulatória, acordos comerciais. Precisamos identificar áreas, identificar pontos específicos em que nós possamos colocar incentivos no nosso arcabouço institucional, político e comercial. Para que essa estratégia possa levar de fato ao nosso objetivo. Até agora, e há mais de dez anos, isso não existe. Há passos nesse sentido, como um esforço em aumentar muito o número de plantas autorizadas na área de carnes, que tem mais valor agregado do que soja
Daniel Buarque – Existe portanto uma teoria, existe a ideia de o que o Brasil quer, mas ainda não existe a prática de como realizar isso?
Tatiana Rosito – Considerando que o Brasil está há tantos anos desenvolvendo essa relação, é possível argumentar que a estratégia está aí. Mas, se é isso, ela é insuficiente.
Uma estratégia para a China teria que estar relacionada a uma estratégia de país, de como o Brasil se coloca e vai se inserir cada vez mais no mundo. O crescimento da China nos últimos 20 anos, ou até nos últimos 40, é uma grande força de conformação desse mundo, em termos de produção industrial, de interconexões, de conectividade no mundo. O impacto da China é muito forte. A China vai continuar conformando em grande parte desse mundo, então o Brasil precisa ter uma estratégia de desenvolvimento nacional que seja percebida como tal pela sociedade e indique para onde o país está indo.
Olhando pelo lado do comércio, existe a questão da complementaridade. O sucesso da relação comercial e de investimentos embute riscos e oportunidades. O risco maior é que a nossa pauta é bastante concentrada. Não temos políticas específicas que nos levem a diversificar e agregar uma nova pauta. Faltam incentivos para isso.
Daniel Buarque – Você menciona políticas públicas, acha que o setor privado também tem que agir para poder oferecer essa maior diversificação, agregar valor aos produtos.
Tatiana Rosito – O setor privado é o ator fundamental, mas os incentivos vêm do arcabouço político institucional. O estado é um promotor, um coordenador. Mesmo com um nível baixo de intervenção, é possível desenhar instrumentos que sejam até mais ortodoxos, como próprios acordos comerciais. Isso é feito para que o setor privado tenha os incentivos. E o fato é que quando você olha os números, eles ainda mostram muita concentração, o que é um risco, cria volatilidade.
Mas também há oportunidades. E aí está a grande questão da sustentabilidade, de relacionar esse papel de grande potência agrícola brasileiro à sustentabilidade. O Brasil não é visto na China como uma grande potência sustentável. Mudar isso dependeria de um esforço, incluindo do setor privado. Cada vez mais haverá uma consciência do consumidor chinês em relação a isso, e isso é uma grande oportunidade para o Brasil construir uma posição clara de sustentabilidade e de preocupação ambiental
Daniel Buarque – Acha que faz sentido falar também de riscos ligados à política por conta das tensões que aconteceram com o governo Bolsonaro? E também por conta da política ambiental do atual governo?
Tatiana Rosito – A abordagem tem que ser pensada no sentido do Estado brasileiro, e não em governos específicos. Claro que, para você fazer qualquer coisa, precisa ter decisões do governo. Mas há interesse inclusive do próprio setor privado, de ter essa postura
Olhando para o futuro, temos que pensar que, além dos riscos, há um custo de oportunidade. Partindo do pressuposto de que a China vai continuar moldando esse mundo e vai estar entre os líderes de muitas tecnologias que vão dominar o mundo. A China tem planos para ser líder em vários setores e está se desenvolvendo. O custo de oportunidade é de olhar também para esse grande ator, parceiro de vários anos e com quem temos uma relação estratégica importante. E precisa ser olhado de forma especial para avaliar de que forma o Brasil pode se beneficiar mais disso. Traçar estratégias e planos mais claros para que isso de fato possa ocorrer
Daniel Buarque – A China poderia ter interesse também em importar produtos de maior valor agregado do Brasil? A China vê um lugar para o Brasil como exportador de produtos que vão além de commodities básicas, vêm o país como algo além de um ‘celeiro’?
Tatiana Rosito – O Brasil não deve se pensar como exportador só para a China. É importante criar mais oportunidades para o comércio intraindústria, relacionado às transformações estruturais, aumento de produtividade. Se o Brasil for competitivo em certos setores, pode ser competitivo na China. E pode ser competitivo em outras partes do mundo, como na própria América Latina. O Brasil já conseguiu vender muitos jatos para a China, por exemplo. O país era competitivo e conseguiu se colocar, inclusive nos principais mercados desenvolvidos. Para isso, o Brasil precisa se posicionar. O mercado chinês está mais sofisticado e tem interesse em coisas sofisticadas, com selo de qualidade de excelência. E qual é o selo do Brasil? É uma coisa que o país precisa desenvolver. O gargalo é uma estratégia mais clara, que inclusive envolve uma campanha de imagem. Essa imagem precisa estar relacionada a questões concretas no Brasil. Sem isso, vai ser difícil conseguir implementar a estratégia de diversificar e aumentar o valor agregado.
Editor-executivo do portal Interesse Nacional. Jornalista e doutor em Relações Internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. Mestre pelo KCL e autor dos livros Brazil’s international status and recognition as an emerging power: inconsistencies and complexities (Palgrave Macmillan), Brazil, um país do presente (Alameda Editorial), O Brazil é um país sério? (Pioneira) e O Brasil voltou? (Pioneira)
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