Tempos de ruptura: a vez da energia nuclear
Mundo vive uma reviravolta no campo energético e começa a redescobrir a energia nuclear como fonte sustentável ao mesmo tempo ‘verde’ e independente de condições climáticas graças à revolução dos pequenos reatores nucleares modulares (PRMs); é preciso vencer velhas desconfianças para que o Brasil não perca a oportunidade de voltar à vanguarda nuclear
Mundo vive uma reviravolta no campo energético e começa a redescobrir a energia nuclear como fonte sustentável ao mesmo tempo ‘verde’ e independente de condições climáticas graças à revolução dos pequenos reatores nucleares modulares (PRMs); é preciso vencer velhas desconfianças para que o Brasil não perca a oportunidade de voltar à vanguarda nuclear
Por Marcel Fortuna Biato*
“Há décadas em que nada ocorre e semanas que valem por décadas”. É o que Lenin pressentia às vésperas da revolução. E é o que vivemos hoje: a Covid-19 é a primeira pandemia global em um século; e a invasão russa da Ucrânia trouxe à baila, pela primeira vez em meio século, o espectro de uma hecatombe militar. Ambas contribuíram para a desorganização das cadeias produtivas globais com consequências difíceis de antecipar.
Vemos essa reviravolta também no campo energético: os mesmos combustíveis fósseis que geram riqueza e prosperidade hoje, com suas emissões poluentes, desestabilizam o clima do planeta e são responsáveis por 20% das mortes no mundo. No caso do Brasil, esse desafio foi agravado pelo progressivo esgotamento da opção hídrica. Depois de décadas nos beneficiando de energia hidroelétrica ilimitada, barata e limpa, nos confrontamos hoje com secas históricas e crescente resistência popular à construção de represas na Amazônia.
Na última década, o Brasil e o mundo vêm investindo em alternativas mais sustentáveis, sobretudo eólica e solar. Essas novas fontes produzem energia abundante a bom preço, mas não são a bala de prata que muitos esperavam. Por dependerem da oferta incerta de vento e de sol, não asseguram a geração estável e ininterrupta 24 horas por dia exigida por uma moderna economia interligada. Se a hidroeletricidade não pode se expandir significativamente, e os combustíveis fósseis são poluentes, qual será então a solução? O segredo está em combinar as novas opções com fonte que seja ao mesmo tempo “verde” e independa das condições climáticas.
Que fonte será essa? A resposta, há muito conhecida, está sendo redescoberta. A Comissão Europeia acaba de classificar a energia nuclear como fonte limpa. França e Reino Unido decidiram relançar seus programas de geração nuclear, enquanto Alemanha e Japão suspenderam a desmontagem de seus parques nucleares. China e Rússia seguem investindo, assim como os EUA. No Brasil, depois de anos de indefinição, retomamos as obras de Angra 3.
O que aconteceu? Globalmente, houve o reconhecimento de que a energia nuclear é indispensável para a transição energética pós-petróleo e gás, em complemento às fontes renováveis intermitentes. A energia nuclear já responde por um terço de toda a geração elétrica “verde” do mundo. Por isso, a ONU afirma que as metas globais para conter o aquecimento global só se alcançam com a ajuda do átomo.
Essa ruptura com os preconceitos e desinformação sobre a energia nuclear está sendo acelerada por uma outra transformação radical -a revolução dos pequenos reatores nucleares modulares (PRMs). Eles têm as conhecidas vantagens da geração nuclear: geram energia constante, sem emissões e ocupam pouco espaço comparado à geração eólica, solar ou por biomassa. Por serem compostos por módulos pré-fabricados interligados, os PRMs apresentam atrativos adicionais. Sua montagem é rápida, segura e o custo operacional e de descomissionamento baixo. Esse conjunto de fatores favorece que os PRMs sejam instalados próximos ao ponto de consumo, com forte redução de custos de transmissão, mesmo em localidades remotas e de difícil acesso, como nas profundezas da Amazônia.
As primeiras unidades de PRMs já estão funcionando: a bordo de uma usina nuclear flutuante na Rússia e também na China. Uma segunda geração, ainda mais compacta, começará a ser lançada nos próximos 3 a 4 anos. Já são uma realidade, uma revolução em andamento. O Brasil não pode perder a oportunidade de voltar à vanguarda nuclear. Embora domine a tecnologia de produção do combustível e detenha abundantes estoques da matéria prima, o urânio, a geração nuclear não passa de 2,5% de nossa matriz energética.
É preciso vencer velhas desconfianças, promovendo debate amplo, informado e embasado tecnicamente que explique à opinião pública as características, os benefícios e mesmo as limitações da tecnologia nuclear. São, portanto, muito bem-vindas as audiências públicas sendo organizadas, a partir de junho, pelo Ibama sobre o projeto da mina de urânio em Santa Quitéria, que alimentará Angra 3 e futuros PRMs no país.
* Marcel Fortuna Biato é embaixador do Brasil na Irlanda. Mestre em sociologia política pela London School of Economics, do Reino Unido, foi embaixador na Bolívia e representante na Missão Permanente do Brasil junto à Agência Internacional de Energia Atômica em Viena, na Áustria.
Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional
Editor-executivo do portal Interesse Nacional. Jornalista e doutor em Relações Internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. Mestre pelo KCL e autor dos livros Brazil’s international status and recognition as an emerging power: inconsistencies and complexities (Palgrave Macmillan), Brazil, um país do presente (Alameda Editorial), O Brazil é um país sério? (Pioneira) e O Brasil voltou? (Pioneira)
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