Tragédia no Sul: Cinco lições obrigatórias sobre gerenciamento de risco e ajuda humanitária
A tragédia no Sul do país nos ensina que a resiliência (a capacidade de se adaptar e reagir), a gestão eficaz da informação, a logística e a educação da população são pilares essenciais para dar respostas mais eficazes e humanas aos desafios que virão
A tragédia que assolou o Sul do país trouxe aprendizados muito importantes para as equipes brasileiras sobre a gestão de desastres e os desafios da ajuda humanitária em larga escala.
Cheguei à capital Porto Alegre (RS) nos primeiros dias após a inundação ao lado de profissionais de várias partes do país.
Primeiramente, atuei no Depósito Central de Porto Alegre, onde quantidades enormes de itens foram recebidas e precisavam ser rapidamente direcionadas. É o trabalho que ninguém vê e que está por trás de toda a entrega de água, roupa, comida e medicamentos aos atingidos.
Quando a situação melhorou ali, fui para a Base Aérea de Canoas, que se converteu em um centro de montagem para os kits e pallets de suprimentos transportados via aérea, alguns deles lançados com paraquedas em regiões isoladas pela inundação, algo nunca feito antes no país.
Mesmo acostumado a lidar com tragédias, eu nunca visto algo tão grande e devastador, em todos os sentidos.
Na última década, na condição de coordenador de um projeto de extensão da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em colaboração com a Defesa Civil e de especialista em logística humanitária, estive envolvido no atendimento às populações na maioria dos desastres em São Paulo (como São Sebastião, Guarujá e Jarinu).
Fui testemunha direta das dificuldades enfrentadas pelas equipes socorristas e de apoio logístico. Essa experiência destacou cinco pontos que precisam de atenção para melhorar as nossas respostas às catástrofes.
1 – Informações em tempo real
A falta de um sistema de informações em tempo real é dos nossos principais problemas. Pode gerar desperdício de recursos humanos e materiais e prejudica a eficiência das operações.
Um dos diversos episódios vividos por nossa equipe ilustra muito bem isso. Precisávamos nos deslocar de Porto Alegre até o município de Canoas. Vimos em um sistema on-line que havia um abrigo no percurso necessitando de água potável e tratamos de abastecer parte da viatura com galões. Porém, quando chegamos, ficamos sabendo que já estavam abastecidos. A informação desatualizada nos custou um tempo que poderia ter sido usado no socorro aos mais necessitados.
Para sanar esse tipo de descompasso, provavelmente será necessário desenvolver ferramentas para detectar e gerenciar necessidades e abastecimentos de forma eficiente. Até o momento, não encontrei nada a esse respeito na literatura internacional. Fica a provocação para os especialistas em dados e tecnologia da informação.
2 – Melhores planos de contingência
Em uma situação de desastre em larga escala, o pode ocorrer em qualquer município ou região do país, precisa haver um planejamento prévio.
Cada município deve ter formulado um esquema logístico específico para sua área e dispor de um mapeamento dos recursos disponíveis na região. A finalidade é garantir a montagem célere de estruturas como um centro de distribuição próximo ao evento (com operações divididas em recepção, armazenagem e distribuição) e de abrigos, entre outras necessidades.
Esse planejamento precisa incluir, necessariamente, a participação da iniciativa privada, que em geral possui de locais amplos e mais bem equipados para serem ocupados em caso de emergência.
Durante a pandemia de Covid-19, a Defesa Civil de São Paulo utilizou um depósito privado de 20 mil metros quadrados que foi providencial, já que o governo estadual dispunha somente de locais bem menores para alocar suprimentos. No Sul, dezenas de galpões de empresas foram esvaziados e utilizados como base de operações logísticas ou foram emprestados pelos proprietários para os desabrigados.
É essencial identificar locais que possam ser usados e negociar essas parcerias antecipadamente para mobilizar esses recursos rapidamente, evitando atrasos críticos na resposta a desastres.
3 – Educação para doações
Os brasileiros doam bastante, mas é preciso aprimorar o processo para que os itens possam conferidos e despachados com rapidez.
As equipes gastaram energia e tempo significativos na triagem de roupas, alimentos e produtos de higiene e limpeza porque a maior parte ainda precisava ser classificada. Os doadores precisam saber que medidas simples, como amarrar os cadarços de um par de tênis, podem evitar que o item doado seja desperdiçado.
Descrições na embalagem como “higiene pessoal”, “sapatos número 36”, por exemplo, ajudam bastante e contribuem para agilizar a distribuição. A conclusão é necessitamos disseminar instruções para que a doação chegue minimamente organizada.
4 – Combate à desinformação e fakenews
Durante o trabalho de ajuda humanitária, enfrentamos uma avalanche de boatos sobre desvio de recursos, o que aumentou a pressão e minou o ânimo de pessoas que estavam trabalhando praticamente sem descanso para distribuir suprimentos e kits de ajuda. Além disso, a circulação de fakenews prejudicou a confiança da população nas instituições responsáveis pela ajuda.
É mais um aspecto que deverá ser vigiado em desastres, com a participação ativa de equipes de checagem para desmentir e conter os danos dessas armadilhas. Enquanto a desinformação pode resultar de erros, ignorância ou falta de verificação, sendo compartilhada por pessoas que não sabem que estão espalhando informações equivocadas, as fakenews são deliberadamente falsas, criadas para enganar e manipular o público e quase sempre impulsionadas nas redes sociais.
5 – Participação da sociedade
As consequências das mudanças climáticas são uma realidade concreta que precisa ser reconhecida e discutida pela sociedade, inclusive para construir medidas mais eficientes de proteção e dispositivos para mitigação.
Infelizmente, uma parcela sifnificativa da população não acredita que em algum momento será atingida pelo impacto de desastres naturais ou relacionados ao clima porque vive em locais mais protegidos ou com melhor infraestrutura. E há os que negam a existência de alterações climáticas.
Mudar essa mentalidade é importante para que ações educativas sejam mais efetivas e para que as pessoas aprendam o que fazer em situação de emergência.
Um dos caminhos para isso é a participação em exercícios de simulação em áreas de r. Ainda menos frequente do que deveriam no Brasil, essa é uma prática a ser encorajada. Estudos indicam que uma única pessoa treinada pode conduzir de 100 a 200 indivíduos em situações de risco.
Diante de um futuro com o prenúncio de desafios associados às mudanças climáticas, precisamos integrar esses alertas aos nossos esforços de preparação e reação às crises.
A tragédia no Sul do país nos ensina que a resiliência (a capacidade de se adaptar e reagir), a gestão eficaz da informação, a logística e a educação da população são pilares essenciais para dar respostas mais eficazes e humanas aos desafios que virão.
*Irineu de Brito Jr é professor de gerenciamento de risco e logística humanitária do Instituto de Ciência e Tecnologia, Universidade Estadual Paulista (Unesp)
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Este texto é uma republicação do site The Conversation sob uma licença Creative Commons. Leia o artigo original em https://theconversation.com/br
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