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Interesse Nacional
07 agosto 2024

Trump consolida criptomoedas como questão chave da política global

Candidato republicano à Presidência prometeu fazer dos EUA a capital cripto do planeta e criar uma reserva estratégica de bitcoin, o que atrai apoio e gera preocupação sobre a falta de regulamentação sobre o setor financeiro da maior potência mundial

Donald Trump discursa durante a Conferência Bitcoin em Nashville (Foto: Reprodução/Skynews)

A internet não é terra sem lei. Prova disso é que décadas após de cunhada, a Lei de Godwin segue inabalável. Com a escolha para o candidato a vice de Donald Trump, a lógica de que à medida que uma discussão online se alonga, a probabilidade de surgir uma comparação envolvendo Adolf Hitler ou os nazistas tender a 100% foi exaustivamente evocada. No entanto, a figura do senador James David Vance vai muito além da sua antiga comparação de Trump com Hitler, e pode ter implicações fundamentais para o futuro da economia mundial.

Um dos grandes focos de Vance, que pode se tornar presidente da maior potência do mundo, em caso de incapacitação de Trump, é a criptografia. O foco no tema é uma das grandes diferenças com relação às duas campanhas anteriores do republicano. Para 2024, o Federal Reserve (Fed, o banco central dos EUA) passou a ser alvo de constantes ataques de Trump. O sistema, referência mundial por sua independência, passou a constar nos planos de um eventual governo, algo impensável há alguns anos. 

‘A campanha de Trump entendeu que oferecer alternativas ao sistema financeiro deixou de ser um tema técnico e passou a ser uma proposta política de alta popularidade’

A campanha de Trump entendeu que oferecer alternativas ao sistema financeiro deixou de ser um tema técnico, ou de pequenos especuladores em fóruns on-line, e passou a ser uma proposta política de alta popularidade e com apoio de grandes empresários. 

Na América Latina, Javier Milei ganhou forte tração para sua campanha ao criticar de maneira quase inédita o banco central. O resultado foi apoio internacional de setores tradicionalmente pouco preocupados com a política argentina, que incluem desde adolescentes anarcocapitalistas no Reddit a Elon Musk.

‘Em El Salvador, Bukele colocou parte das reservas do país em bitcoin e alcançou palcos impensáveis para um líder de uma pequena nação da América Central’

Em El Salvador, Nayib Bukele foi além. Além de propostas hipotéticas, realizou uma série de iniciativas buscando investimentos e atenção do setor de criptomoedas, chegando a colocar parte das reservas do país em bitcoin. As instituições internacionais e a imprensa tradicional criticaram as ações do líder, mas com as ações inovadoras, Bukele alcançou palcos impensáveis para um líder de uma pequena nação da América Central.

O popular apresentador  Tucker Carlson entrevistou o salvadorenho uma série de vezes, sempre com um tom encantando e sem retrucar as proposições do autointitulado “ditador mais legal do mundo”. Nestes momentos, ao invés do Fundo Monetário Internacional (FMI) ou o Banco Mundial fazendo recomendações econômicas aos países em desenvolvimento, o que se vê é Bukele falando em uma falência do dólar e a necessidade de substituir o Fed.

‘O fim do dólar não é um tema popular apenas entre investidores de criptomoedas, e qualquer pequeno aceno dos Brics neste sentido costuma ganhar imensa popularidade’

As falas são extremamente atraentes para conspiracionistas e todos aqueles com apelo anti-institucional, que compõem as bases políticas mais fortes da internet. Vale lembrar que o fim do dólar não é um tema popular apenas entre investidores de criptomoedas, e que qualquer pequeno aceno dos Brics neste sentido costuma ganhar imensa popularidade, levando uma série de analistas a escreverem artigos ponderando, repetindo expressões como: “é um movimento relevante, mas sem a capacidade de substituir a moeda americana”, o que claramente não tem apelo online.

No entanto, grandes empresários passaram a ver o tema com bons olhos. A CEO do fundo de investimentos ARK, Cathie Wood, uma referência em Wall Street em inovações econômicas, se reuniu com Bukele e discutiu uma série de planos conjuntos com o salvadorenho. Wood fez ainda a afirmação um tanto mirabolante de que o presidente poderia multiplicar o PIB de El Salvador por dez ao longo do mandato de cinco anos.

‘Prometer um paraíso sem as “amarras do Estado” e com um novo sistema financeiro que não estaria “ligado às elites” é um argumento excelente para qualquer futuro líder em um ambiente digital’

As falas são mirabolantes, mas efetivas no contexto online definido pelo escritor brasileiro Andrés Bruzzone como “ciberpopulismo”. O filósofo descreve a questão como “a combinação eficiente de técnicas de propaganda do século XX com as possibilidades abertas pela tecnologia do século XXI”. Prometer um paraíso sem as “amarras do Estado” e com um novo sistema financeiro que não estaria “ligado às elites” é um argumento excelente para qualquer futuro líder em um ambiente digital.

Em o Homem Revoltado, Albert Camus disserta sobre como o enfraquecimento das religiões no Ocidente no século XIX e a tendência republicana levaram cada vez mais pessoas a apoiarem ideologias que oferecessem a salvação na Terra, ou seja, que fizessem com que o paraíso e as recompensas não viessem após a morte, mas com uma revolução em vida. Ao longo do século XX, movimentos de uma série de correntes surgiram com essa premissa, com destaque para os nacionalistas e comunistas. Nesta década, as criptomoedas aparecem como uma dessas promessas. O sinal mais evidente é a popularidade do bordão “bitcoin fix it” nestes meios. 

‘As reuniões tratando sobre criptomoedas já deixaram de serem encontros sobre investimentos e passaram a serem verdadeiros pronunciamentos políticos e promessas de uma “nova era”.’

Trump discursou na conferência anual do bitcoin neste ano, em Nashville. Pouco depois do atentado, o evento teve um tom ainda mais messiânico que os recentes, algo que cresceu nos últimos anos. O candidato prometeu fazer dos EUA a capital cripto do planeta, além da criação de uma reserva estratégica de bitcoin. As reuniões tratando sobre criptomoedas já deixaram de serem encontros sobre investimentos e passaram a serem verdadeiros pronunciamentos políticos e promessas de uma “nova era”.

Em coluna sobre o tema, Paul Krugman escreveu que muitos defensores do setor cripto agora parecem acreditar que, com Trump, eles têm o apoio político que precisam. Krugman lembra que eles já conseguiram inserir itens fundamentais de sua lista de desejos na plataforma do Partido Republicano de 2024: “Os republicanos acabarão com a repressão ilegal e antiamericana dos democratas às cripto e se oporão à criação de uma moeda digital do Banco Central”.

Seria tentador, mas simplista, falar em uma aliança de extrema-direita e o setor cripto. Bancos centrais são alvos ótimos para qualquer populista. Política monetária e estabilidade financeira são temas tão importantes quanto difíceis de serem entendidos pela população. Além disso, a tecnicidade do trabalho faz com que suas figuras sejam constantemente impopulares. Na Europa, o tema se junta ainda à União Europeia, que sofre com os mesmos problemas, e explica a razão de muitos líderes apontarem o Banco Central Europeu (BCE) como culpado ao menor sinal de crise.

‘Bancos centrais cumprem um papel bem além de definir a taxa de juros e o cenário seria muito pior caso não houvesse regulamentação’

A grande questão é que bancos centrais cumprem um papel bem além de definir a taxa de juros. O Fed foi criado em 1913 com o objetivo de garantir a saúde do sistema financeiro dos EUA. É verdade que o país contou com uma série de crises desde então, mas seguramente o cenário seria muito pior caso não houvesse regulamentação. A crise de 2008 com a quebra do Lehman Brothers pode vir à mente quando se fala no tema, mas não haver uma de 2023 após a falência do Silicon Valley Bank pode ser atribuído ao trabalho do Fed.

Atualmente, o valor de mercado das criptomoedas em circulação possivelmente não colocaria em risco a economia global em caso de uma crise do setor. No entanto, o mesmo não pode ser dito para os próximos anos, caso a tendência de adoção prossiga. Hoje, a soma destes ativos é de cerca de US$ 2,3 trilhões, o que globalmente ainda não é muito. No entanto, já há países com a adoção passando de 20% da população.

O triunfalismo da revolução cripto não pensa no tema, mas é muito razoável crer em um rompimento da bolha em algum momento nos próximos anos. Não é um juízo sobre recomendações de investimento, apenas uma constatação de que um novo caso como o Sam Bankman-Fried, que foi preso por uma fraude massiva de bilhões de sua corretora FTX poder colocar em risco a economia de milhões de pessoas, e mesmo o sistema financeiro como um todo.

Um dos grandes avanços dos bancos centrais são os fundos garantidores de crédito. É graças a eles que as pessoas podem deixar suas reservas nas instituições financeiras sem se preocupar se o banco irá quebrar. Isso é parte da regulamentação, justamente o que o ambiente cripto abomina. Com cada vez uma maior adoção desses ativos, o risco que a sociedade como um todo enfrenta de uma eventual crise fazer com que milhões de pessoas percam suas economias retidas em corretoras é real. E, neste cenário, o risco deixaria de ser para apenas parte dos investidores para ser um problema de toda a sociedade.

Matheus Gouvea de Andrade é jornalista focado em temas internacionais baseado na América Latina. Trabalhou no Grupo Estado e publicou em veículos como BBC, Rest of World, Climate Change News, DW Brasil, Folha de S. Paulo, Piauí e Público, escrevendo a partir de Lisboa, Medellín, Lima, Buenos Aires e São Paulo

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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