Trump consolida criptomoedas como questão chave da política global
Candidato republicano à Presidência prometeu fazer dos EUA a capital cripto do planeta e criar uma reserva estratégica de bitcoin, o que atrai apoio e gera preocupação sobre a falta de regulamentação sobre o setor financeiro da maior potência mundial
A internet não é terra sem lei. Prova disso é que décadas após de cunhada, a Lei de Godwin segue inabalável. Com a escolha para o candidato a vice de Donald Trump, a lógica de que à medida que uma discussão online se alonga, a probabilidade de surgir uma comparação envolvendo Adolf Hitler ou os nazistas tender a 100% foi exaustivamente evocada. No entanto, a figura do senador James David Vance vai muito além da sua antiga comparação de Trump com Hitler, e pode ter implicações fundamentais para o futuro da economia mundial.
Um dos grandes focos de Vance, que pode se tornar presidente da maior potência do mundo, em caso de incapacitação de Trump, é a criptografia. O foco no tema é uma das grandes diferenças com relação às duas campanhas anteriores do republicano. Para 2024, o Federal Reserve (Fed, o banco central dos EUA) passou a ser alvo de constantes ataques de Trump. O sistema, referência mundial por sua independência, passou a constar nos planos de um eventual governo, algo impensável há alguns anos.
A campanha de Trump entendeu que oferecer alternativas ao sistema financeiro deixou de ser um tema técnico, ou de pequenos especuladores em fóruns on-line, e passou a ser uma proposta política de alta popularidade e com apoio de grandes empresários.
Na América Latina, Javier Milei ganhou forte tração para sua campanha ao criticar de maneira quase inédita o banco central. O resultado foi apoio internacional de setores tradicionalmente pouco preocupados com a política argentina, que incluem desde adolescentes anarcocapitalistas no Reddit a Elon Musk.
Em El Salvador, Nayib Bukele foi além. Além de propostas hipotéticas, realizou uma série de iniciativas buscando investimentos e atenção do setor de criptomoedas, chegando a colocar parte das reservas do país em bitcoin. As instituições internacionais e a imprensa tradicional criticaram as ações do líder, mas com as ações inovadoras, Bukele alcançou palcos impensáveis para um líder de uma pequena nação da América Central.
O popular apresentador Tucker Carlson entrevistou o salvadorenho uma série de vezes, sempre com um tom encantando e sem retrucar as proposições do autointitulado “ditador mais legal do mundo”. Nestes momentos, ao invés do Fundo Monetário Internacional (FMI) ou o Banco Mundial fazendo recomendações econômicas aos países em desenvolvimento, o que se vê é Bukele falando em uma falência do dólar e a necessidade de substituir o Fed.
As falas são extremamente atraentes para conspiracionistas e todos aqueles com apelo anti-institucional, que compõem as bases políticas mais fortes da internet. Vale lembrar que o fim do dólar não é um tema popular apenas entre investidores de criptomoedas, e que qualquer pequeno aceno dos Brics neste sentido costuma ganhar imensa popularidade, levando uma série de analistas a escreverem artigos ponderando, repetindo expressões como: “é um movimento relevante, mas sem a capacidade de substituir a moeda americana”, o que claramente não tem apelo online.
No entanto, grandes empresários passaram a ver o tema com bons olhos. A CEO do fundo de investimentos ARK, Cathie Wood, uma referência em Wall Street em inovações econômicas, se reuniu com Bukele e discutiu uma série de planos conjuntos com o salvadorenho. Wood fez ainda a afirmação um tanto mirabolante de que o presidente poderia multiplicar o PIB de El Salvador por dez ao longo do mandato de cinco anos.
As falas são mirabolantes, mas efetivas no contexto online definido pelo escritor brasileiro Andrés Bruzzone como “ciberpopulismo”. O filósofo descreve a questão como “a combinação eficiente de técnicas de propaganda do século XX com as possibilidades abertas pela tecnologia do século XXI”. Prometer um paraíso sem as “amarras do Estado” e com um novo sistema financeiro que não estaria “ligado às elites” é um argumento excelente para qualquer futuro líder em um ambiente digital.
Em o Homem Revoltado, Albert Camus disserta sobre como o enfraquecimento das religiões no Ocidente no século XIX e a tendência republicana levaram cada vez mais pessoas a apoiarem ideologias que oferecessem a salvação na Terra, ou seja, que fizessem com que o paraíso e as recompensas não viessem após a morte, mas com uma revolução em vida. Ao longo do século XX, movimentos de uma série de correntes surgiram com essa premissa, com destaque para os nacionalistas e comunistas. Nesta década, as criptomoedas aparecem como uma dessas promessas. O sinal mais evidente é a popularidade do bordão “bitcoin fix it” nestes meios.
Trump discursou na conferência anual do bitcoin neste ano, em Nashville. Pouco depois do atentado, o evento teve um tom ainda mais messiânico que os recentes, algo que cresceu nos últimos anos. O candidato prometeu fazer dos EUA a capital cripto do planeta, além da criação de uma reserva estratégica de bitcoin. As reuniões tratando sobre criptomoedas já deixaram de serem encontros sobre investimentos e passaram a serem verdadeiros pronunciamentos políticos e promessas de uma “nova era”.
Em coluna sobre o tema, Paul Krugman escreveu que muitos defensores do setor cripto agora parecem acreditar que, com Trump, eles têm o apoio político que precisam. Krugman lembra que eles já conseguiram inserir itens fundamentais de sua lista de desejos na plataforma do Partido Republicano de 2024: “Os republicanos acabarão com a repressão ilegal e antiamericana dos democratas às cripto e se oporão à criação de uma moeda digital do Banco Central”.
Seria tentador, mas simplista, falar em uma aliança de extrema-direita e o setor cripto. Bancos centrais são alvos ótimos para qualquer populista. Política monetária e estabilidade financeira são temas tão importantes quanto difíceis de serem entendidos pela população. Além disso, a tecnicidade do trabalho faz com que suas figuras sejam constantemente impopulares. Na Europa, o tema se junta ainda à União Europeia, que sofre com os mesmos problemas, e explica a razão de muitos líderes apontarem o Banco Central Europeu (BCE) como culpado ao menor sinal de crise.
A grande questão é que bancos centrais cumprem um papel bem além de definir a taxa de juros. O Fed foi criado em 1913 com o objetivo de garantir a saúde do sistema financeiro dos EUA. É verdade que o país contou com uma série de crises desde então, mas seguramente o cenário seria muito pior caso não houvesse regulamentação. A crise de 2008 com a quebra do Lehman Brothers pode vir à mente quando se fala no tema, mas não haver uma de 2023 após a falência do Silicon Valley Bank pode ser atribuído ao trabalho do Fed.
Atualmente, o valor de mercado das criptomoedas em circulação possivelmente não colocaria em risco a economia global em caso de uma crise do setor. No entanto, o mesmo não pode ser dito para os próximos anos, caso a tendência de adoção prossiga. Hoje, a soma destes ativos é de cerca de US$ 2,3 trilhões, o que globalmente ainda não é muito. No entanto, já há países com a adoção passando de 20% da população.
O triunfalismo da revolução cripto não pensa no tema, mas é muito razoável crer em um rompimento da bolha em algum momento nos próximos anos. Não é um juízo sobre recomendações de investimento, apenas uma constatação de que um novo caso como o Sam Bankman-Fried, que foi preso por uma fraude massiva de bilhões de sua corretora FTX poder colocar em risco a economia de milhões de pessoas, e mesmo o sistema financeiro como um todo.
Um dos grandes avanços dos bancos centrais são os fundos garantidores de crédito. É graças a eles que as pessoas podem deixar suas reservas nas instituições financeiras sem se preocupar se o banco irá quebrar. Isso é parte da regulamentação, justamente o que o ambiente cripto abomina. Com cada vez uma maior adoção desses ativos, o risco que a sociedade como um todo enfrenta de uma eventual crise fazer com que milhões de pessoas percam suas economias retidas em corretoras é real. E, neste cenário, o risco deixaria de ser para apenas parte dos investidores para ser um problema de toda a sociedade.
Matheus Gouvea de Andrade é jornalista focado em temas internacionais baseado na América Latina. Trabalhou no Grupo Estado e publicou em veículos como BBC, Rest of World, Climate Change News, DW Brasil, Folha de S. Paulo, Piauí e Público, escrevendo a partir de Lisboa, Medellín, Lima, Buenos Aires e São Paulo
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