Vitória de radical em eleições japonesas mostra interesse renovado por temas sensíveis
Especialista em relações internacionais explica o crescimento do Sanseito, que se inspira na retórica de Donald Trump e defende “japoneses em primeiro lugar”. Agremiação surgida após a pandemia levou 14 cadeiras na votação para a Câmara Alta e virou desafio para os políticos tradicionais, defensores da ordem estabelecida após a Segunda Guerra Mundial.

Por Renato Coelho
As eleições legislativas ocorridas no Japão em fins de julho trouxeram uma inesperada reconfiguração no panorama da política do país, após décadas de relativa estabilidade. O Partido Liberal Democrático (PLD), que governa o país quase ininterruptamente desde 1995, perdeu 16 assentos e a maioria na Câmara Alta do Parlamento, conquistando 47 cadeiras. Já o novato partido Sanseito, ou Partido da Participação Política, saltou de 1 para 14 cadeiras.
Criado em meio à pandemia, o Sanseito é um partido de extrema direita liderado pelo ex-gerente de supermercado e reservista das Forças de Autodefesa, Sohei Kamiya. Kamiya recebeu o apelido de “Trump japonês” devido à semelhança entre suas falas e aquelas do líder norte-americano, que incluem ataques à imigração e o lema “Nihonjin Fāsuto”, “Japoneses em primeiro lugar”, quase uma tradução direta do “America First”.
O partido surgiu a partir de um canal no YouTube, onde Kamiya e outros criadores digitais expressavam descontentamento com a política e a economia, debatiam teorias conspiratórias sobre as origens da pandemia e criticavam as vacinas. Posteriormente, os discursos no canal convergiram para a tônica nacionalista, e o Sanseito começou a reunir seguidores digitais.
Kamiya também já atacou políticas de igualdade de gênero e o casamento entre pessoas do mesmo sexo, além de defender a remilitarização do Japão sob o pretexto de que o país deve ser capaz de fazer ataques preventivos a um inimigo caso considere que um conflito é “inevitável”. Isso é proibido pela atual Constituição.
Estudioso do Japão e pesquisador em relações internacionais, Paulo Daniel Watanabe, ligado ao Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais da Unesp, explica as diferenças do Sanseito em relação à linha do PLD, descrita como a de uma direita moderada. “O Japão é governado pelo PLD há cinquenta, sessenta anos. Houve algumas interrupções, mas é o partido hegemônico do Parlamento. A política japonesa segue uma linha muito estável e constante em suas políticas. Agora surgiu essa perspectiva crítica, defendendo mudanças em algumas coisas”, diz Watanabe, que é pós-graduado em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-graduação San Thiago Dantas.
“As críticas sobre o partido envolvem a relação com as Forças Armadas, a relação com a China e, principalmente, a relação com os estrangeiros.”
Segundo o estudioso, assim como já aconteceu em tantos países, a nova direita japonesa está dando voz a ideias que já existiam na sociedade, mas não costumavam ser debatidas — quanto mais defendidas com ênfase. E os líderes da política tradicional ainda não sabem como lidar com o Sanseito e seus representantes. Diferentes abordagens estão sendo ensaiadas.
“A primeira é tratar esse grupo como um aliado, para conseguir usar seus assentos no Parlamento para formar maioria. Outra possibilidade é tratá-lo como oposição. Só que isso gera atritos e, inclusive, alguns desafios. Até porque a nova configuração do Parlamento não confere ao primeiro-ministro e ao seu partido os meios de que ele precisa para governar”, explica. Para Watanabe, trata-se de um novo polo de opinião política que está emergindo com grande intensidade, e ainda é cedo para avaliar qual será seu impacto efetivo.
Ainda mais complexo é o fato de que temas como reforma da Constituição, defesa e relações internacionais são extremamente delicados. “Talvez possa ocorrer uma transição na política japonesa em relação a esses temas delicados, e essas pautas ganhem força junto ao Parlamento, à população e a toda a sociedade”, diz.
Em relação à China, o Sanseito defende uma convivência um pouco mais dura. O PLD, porém, sabe que o país depende muito do comércio com seu vizinho gigante. Isso ficou claro principalmente nos últimos 15 anos, período durante o qual o país simplesmente foi reativo às políticas chinesas. E as relações com os EUA também não estão em um momento particularmente afável.
“A relação com Trump é muito incerta. Por mais que exista uma ideia de aproximação com os EUA, tanto no PLD quanto no Sanseito, os americanos também não estão tendo uma relação muito estreita com o Japão. Vimos isso com a discussão sobre tarifas recentemente”, diz. Mais do que a promessa de uma interlocução favorável, a figura de Trump serviu como exemplo de atuação política. “O Sanseito usa o discurso de Trump para acordar aqueles indivíduos que estavam calados. O partido praticamente deu voz a esses adeptos”, diz.
Watanabe aponta as semelhanças entre o Sanseito e partidos de direita que despontaram pelo mundo nos últimos anos. “Vejo como um novo pensamento dentro da política japonesa, mas que está seguindo o ritmo do que se vê nas outras potências econômicas, envolvendo um nacionalismo mais exagerado, proteção da economia, defesa da produção nacional”, diz.
“Cabe, agora, observar o que fará a população japonesa. Lembrando: os adeptos desse partido, e a população atual, não são sobreviventes da Segunda Guerra Mundial. Eles escutaram a história, não viveram a Guerra. Talvez, então, possuam outra percepção da realidade e outras ideias quanto ao que o Japão deve fazer na sua política externa”, diz.
Este texto é uma reprodução livre de artigo publicado pelo Jornal da Unesp - https://jornal.unesp.br/
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