14 outubro 2011

Potências Emergentes e o Futuro da Promoção da Democracia

A decadência do domínio do Ocidente, simbolizada pela atual crise financeira e pela ascensão de atores emergentes, tais como a China, a Índia e o Brasil, mudará, fundamentalmente, a maneira como as decisões são tomadas no contexto internacional. O poder e as responsabilidades que a acompanham serão divididas de maneira mais uniforme entre um número maior de stakeholders, com o potencial de se criar uma ordem mundial mais equitativa. O poder recém-adquirido não permite apenas que os atores emergentes participem de negociações internacionais; permitirá também cada vez mais que países como a China, a Índia e o Brasil moldem o debate e decidam quais questões devem ser abordadas em primeiro lugar. Em outras palavras, as potências emergentes se tornarão cada vez mais formuladoras da agenda global. Isso terá um impacto importante no discurso internacional sobre os valores políticos e os sistemas de governança.

Formuladores emergentes da agenda internacional

O papel de coordenar perspectivas e discursos contrastantes foi reservado tradicionalmente para as potências ocidentais. Seja no contexto da onu, do Banco Mundial ou do G8, de modo geral, o Ocidente sempre foi capaz de moldar o debate global e decidir a quais desafios o mundo deve dar atenção. A decisão do então primeiro-ministro britânico Tony Blair de concentrar a atenção na redução da pobreza durante a Cúpula do G8 em Gleneagles, em 2005, e a reação que isso causou em escala global, é um exemplo de como um país relativamente pequeno era capaz de orientar a discussão em uma direção específica. Em 2008, o presidente americano Barack Obama obteve êxito ao mudar o formato e o foco do debate em torno da proliferação nuclear, quando defendeu um mundo livre de armas nucleares durante um discurso em Praga. As potências ocidentais continuarão a tomar parte na moldagem do discurso político global, mas terão de dividir o palco com várias potências emergentes, cada vez mais assertivas: China, Índia, Brasil, Turquia e África do Sul, entre outras. Este é um desenvolvimento tanto natural quanto necessário.

A consciência crescente de que as instituições internacionais deveriam refletir a atual distribuição do poder de maneira mais precisa, mantendo, desse modo, sua legitimidade, é o resultado direto de um esforço conjunto da parte das potências emergentes para justificar uma representação melhor. O Conselho de Segurança da onu perderá cada vez mais legitimidade se o número de membros com direito a veto não passar a incluir países como a Índia, o Brasil e alguma nação com liderança no continente africano. Enfrentar as mudanças climáticas com êxito seria absolutamente impossível sem a participação da China e da Índia. O mesmo vale para a solução do impasse comercial global, da proliferação nuclear, da pobreza e do terrorismo. Mas a tensão causada pelo esforço do Brasil e da Turquia de negociarem uma solução para a questão nuclear iraniana demonstra que também será mais difícil coordenar o processo decisório depois que um número maior de stakeholders tiver tomado parte na disputa.


Desse modo, além do número de participantes na discussão global e dos processos decisórios mais complexos, os próprios tópicos de discussão estão mudando, e as questões na agenda serão cada vez mais influenciadas por formuladores de políticas brasileiros, indianos e chineses. O país-sede de uma futura cúpula do G20, seja o Brasil ou a Índia, será tão capaz de conduzir a agenda quanto Tony Blair na Cúpula do G8 de 2005. Considerando que as potências emergentes justificam seu desejo por melhor inclusão mediante a necessidade de democratizar a ordem mundial, quão importante é, para essas potências, a promoção da democracia em outros países?

Promoção da democracia: um conceito ocidental?

A promoção da democracia, por vezes chamada de assistência para a democracia ou ajuda à democracia (que são termos com uma conotação menos intrusiva), refere-se, geralmente, às estratégias de atores governamentais e não governamentais para promover a propagação da democracia em países ao redor do mundo. A promoção da democracia pode tomar muitas formas diferentes, desde o financiamento de grupos de oposição, o monitoramento de eleições, o apoio à mídia e aos jornalistas independentes, a capacitação de instituições de Estado, o treinamento de juízes, de líderes de grupos cívicos e de legisladores, e a imposição de sanções a regimes não democráticos, até a oferta de auxílio para o desenvolvimento caso o receptor tome medidas em prol da democratização. Os regimes democráticos também podem engajar-se na promoção da democracia indireta, buscando laços mais estreitos com outros países democráticos, o que pode criar incentivos para que regimes não democráticos se reformem. Além disso, os países podem participar na retórica pró-democrática.

A promoção da democracia pode ser feita por agências governamentais (tais como a Usaid, Agência dos eua para o Desenvolvimento Internacional), por instituições internacionais ou por organizações não governamentais, como a Freedom House ou o National Endowment for Democracy (ned). Pode-se distinguir entre a abordagem política (focada em procedimentos específicos, tais como as eleições) e a abordagem desenvolvimentista (baseada em uma perspectiva social mais ampla e que frequentemente envolve métodos indiretos de promover a democracia). A promoção da democracia ao estilo americano geralmente tende a ser mais explícita, mais política e potencialmente antagonista, enquanto os europeus utilizam uma abordagem mais holística, muitas vezes buscando evitar o termo “promoção da democracia” de maneira a não alienar o governo-sede.

Embora, durante a maior parte da guerra fria, a política dos Estados Unidos estivesse preocupada sobretudo em vencer o comunismo e em manter a superioridade militar e o crescimento econômico, a promoção da democracia se tornou cada vez mais popular naquele país na década de 1980 e tem sido um princípio importante das políticas externas tanto de países europeus quanto dos próprios Estados Unidos desde então, recebendo atenção de alto nível depois dos ataques terroristas em 11 de setembro de 2001.

Os teóricos políticos normalmente explicam o desejo de Estados de promover a democracia por meio de variantes da teoria da paz democrática, cujas origens estão na visão de Immanuel Kant de uma “federação de repúblicas”. Segundo o filósofo, a divisão do poder impediria os líderes de declararem guerras sem argumentos fortemente raciocinados, moldados com base nos interesses coletivos. De acordo com a proposição da paz democrática, as democracias estabelecidas não apenas têm uma justificativa normativa, mas também um genuíno interesse estratégico em estender a democracia ao redor do globo.

Um mundo de democracias seria provavelmente mais pacífico e melhor para o comércio e o investimento (já que o estado de direito é geralmente mais fraco em regimes autoritários), oferecendo uma base para a paz internacional e a cooperação de benefício mútuo. Ao mitigar o dilema da segurança, as democracias possibilitam a maximização do bem-estar econômico por meio de interdependência de longo alcance. Além disso, os defensores da promoção da democracia argumentam que é “a coisa certa a fazer”, espalhando valores universalmente concebidos e ajudando todos os seres humanos a ser representados nos assuntos globais.

Embora a promoção da democracia não seja do interesse de governos autocráticos, como os da Rússia e da China, por razões óbvias, existe a expectativa de que países democráticos emergentes, como o Brasil, a África do Sul e a Índia, sejam fortes defensores do conceito e dos argumentos citados acima. Os líderes dos três países estiveram, frequentemente, envolvidos pessoalmente na luta pelos direitos democráticos. O primeiro-ministro Jawaharlal Nehru, o primeiro da Índia, foi uma das figuras centrais na luta pela independência contra os britânicos, e um dos maiores defensores da descolonização na Ásia e na África. Em 2005, o primeiro-ministro indiano Manmohan Singh argumentou que “a democracia liberal é a ordem natural da organização política no mundo de hoje”, dizendo que “todos os sistemas alternativos […] são uma aberração”.

Dan Twining enfatiza que “oficiais indianos reconhecem que o amplo apelo dos valores democráticos de seu país representa um ativo estratégico para a diplomacia indiana”, e tanto o Brasil quanto a Índia repetidamente enfatizam suas credenciais democráticas na busca por um assento permanente no Conselho de Segurança da onu. Na África do Sul, Nelson Mandela tornou-se um símbolo na luta pela liberdade e pelos direitos humanos, e prometeu, em 1993, que sua nação “atenderia ao grito pela democracia ao redor do mundo, e que a África do Sul estaria, portanto, à frente dos esforços globais para promover e fomentar sistemas de governo democráticos”. Os presidentes brasileiros Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), Lula da Silva (2003 -2010) e Dilma Rousseff (a partir de 2010) sofreram todos com alguma forma de repressão durante a ditadura militar no Brasil, e tanto Cardoso quanto Lula desempenharam papéis importantes no fortalecimento das instituições democráticas naquele país. Rousseff, a primeira mulher a assumir a presidência no Brasil, foi até submetida a tortura. Todos os líderes desses países frequentemente identificam seus regimes democráticos como um de seus maiores atributos.

E, de fato, Brasil e Índia ambos têm defendido a democracia no exterior em diversas instâncias. Em 1996, Fernando Henrique Cardoso, então presidente do Brasil, interveio no vizinho Paraguai para evitar um golpe militar, trabalhando por intermédio do Mercosul para ampliar sua influência. Em 2002, o Brasil engajou-se ativamente na Venezuela quando um grupo tentou remover Hugo Chávez ilegalmente. E, em 2009, o debate internacional sobre como lidar com o golpe em Honduras foi especificamente o resultado de um confronto entre o Brasil e os Estados Unidos quanto à melhor maneira de defender a democracia. Ao longo das últimas duas décadas, a diplomacia do Brasil inseriu sistematicamente referências e cláusulas democráticas nas cartas, nos protocolos e nas declarações de instituições subregionais das quais o país é membro. A importância da democracia na constituição e nas atividades do Grupo do Rio, do Mercosul e da União de Nações Sul-Americanas (Unasul) pode, de muitas maneiras, ser ligada ao ativismo do Brasil. Ao mesmo tempo, o Brasil buscou assegurar-se de que a proteção da ordem democrática fosse calibrada com o intervencionismo, combinando o princípio da não intervenção com o da não indiferença.

Os esforços da Índia de defender a democracia são ainda mais antigos. Em 1971, a Índia interveio no Paquistão Oriental para pôr fim aos abusos de direitos humanos cometidos lá pelo exército paquistanês, assumindo o papel de parteira na criação de uma nação democrática – uma estratégia corajosa pela qual a Índia foi, naquele momento, duramente criticada tanto pelos Estados Unidos quanto pelas Nações Unidas. Na década de 1980, a Índia interveio no Sri Lanka para proteger a minoria tâmil no país. Em 1988, o primeiro-ministro indiano Rajiv Gandhi enviou tropas indianas para as Maldivas para evitar um golpe de Estado, ajudando o presidente democraticamente eleito do país a reafirmar seu poder.

Contudo, as potências emergentes são também altamente ambivalentes quanto à promoção da democracia, e costuma-se desaprovar a propagação explícita de valores cultivados em casa, assim como a crítica de líderes estrangeiros que não adotam tais valores. A vasta maioria de estudos sobre a promoção da democracia inclui apenas as estratégias americanas e europeias, já que virtualmente inexistem programas formais de declarada promoção da democracia fora do Ocidente. Em 1990, o Brasil bloqueou apelos para uma intervenção militar no Suriname após um golpe militar naquele país, e quando Alberto Fujimori falsificou os resultados das eleições de 2000, o presidente Cardoso recusou-se a criticar o presidente peruano, sendo o Brasil o principal obstáculo para os esforços americanos e canadenses de condenar o Peru na Assembleia Geral da oea.

Ao resumir a política externa brasileira das últimas duas décadas, Sean Burges argumenta que “o Brasil não teve um comportamento consistente no apoio à execução de normas democráticas”, e que a ação decisiva para preservar a democracia foi ”tépida”. Por mais de uma década, a Índia tem seguido a chamada política do “engajamento construtivo” com a junta militar de Mianmar, na qual não faz crítica aos abusos de direitos humanos por parte do regime, nem mesmo quando acolhe grandes números de refugiados e exilados políticos birmaneses em seu próprio solo. Nova Déli tampouco assumiu uma posição mais firme, em prol de nenhum lado, quando eleições fraudulentas foram realizadas na Birmânia no ano passado, para o desapontamento de ativistas pró-democráticos. Raja Mohan argumenta que “a democracia como prioridade política tem estado em grande parte ausente na política externa da Índia”. Nos casos do Brasil e da Índia, essa ambiguidade indica um debate mais geral sobre o papel que ambas as potências emergentes deverão desempenhar na região. O que a liderança regional envolve ou requer? Em outras palavras, qual é seu “projeto regional”? A questão da promoção da democracia é apenas um dos desafios, porém um desafio importante, a derivar dessa questão mais abrangente.

Enquanto governos e organizações ocidentais democráticos continuam a gastar bilhões de dólares a cada ano em projetos relacionados com a democracia, há, no entanto, uma mudança notável de poder em direção a países que hesitam mais quando se trata de promoção sistemática da democracia, uma tendência que aponta para perguntas importantes quanto ao futuro dessa atividade.

Críticas ao estilo dos eua

Potências emergentes como o Brasil e a Índia oferecem um conjunto complexo de críticas da promoção da democracia ao estilo dos Estados Unidos. Primeiramente, embora essas potências possam concordar quanto às boas intenções por trás da promoção, afirmam que isso viola invariavelmente a soberania e a autodeterminação de outro país, conceitos centrais para todas as potências emergentes. Em segundo lugar, argumentam que a exclusão de regimes não democráticos, como por meio do lançamento da ideia da “Liga de Democracias”, cria uma dinâmica de “os que estão por dentro versus os que estão por fora” que semeia a desconfiança e possivelmente até o conflito, reduzindo o espaço para o diálogo .

Como Kissinger enfatiza, as preocupações com o caráter interno de regimes provocam resistência e colocam a ordem mundial em perigo . Em terceiro lugar, os oponentes de tal prática ressaltam que a democracia é um “conceito contestado” , difícil de medir, o que torna difícil, por vezes, decidir se certos países (como a Venezuela ou a Rússia, por exemplo) são democráticos ou não . A intervenção estrangeira de qualquer espécie, mesmo que seja por meio de conselhos bem-intencionados, tende a ser considerada, assim, como uma intrusão inapropriada nos assuntos internos de outro. Além disso, formuladores de políticas de potências emergentes também enfatizam a futilidade da promoção da democracia e argumentam que a democracia nunca pode ser imposta por agentes externos, devendo, ao invés disso, crescer de dentro para fora . Como ressalta Francis Fukuyama, “do ponto de vista conceitual, a construção do estado nacional, a criação do estado de direito liberal e a democracia são fases diferentes de desenvolvimento político, que ocorreram em uma sequência separada por décadas, quando não por séculos, na maioria dos países europeus”.

Formuladores de políticas de potências emergentes também questionam o raciocínio utilitário por trás do conceito. Caso o Iraque se tornasse uma democracia estável em algum momento, isso dificilmente justificaria uma guerra sangrenta que tirou a vida de mais de cem mil civis . Alguns críticos também descrevem a promoção da democracia como uma continuação do colonialismo, dizendo que pode ser explicada, em grande parte, por fatores culturais e por um exagerado “zelo missionário” por se lançar um “jihad para a democracia” ; apontando que tais fatores estão presentes sobretudo nas democracias ocidentais liberais.

Esses críticos certamente têm razão quanto à importância de fatores culturais; por exemplo, a vasta maioria de ongs engajadas na promoção da democracia vem da Europa e dos Estados Unidos . Por fim, veem o projeto ocidental de promoção da democracia como algo incoerente, pouco sincero, e que apenas disfarça os interesses econômicos, indicando a relutância do Ocidente em elevar o objetivo da promoção da democracia acima de todos os outros interesses a todo momento e promover, por exemplo, a democracia na Arábia Saudita, tão rica em petróleo. Quem decide qual país deve se democratizar e qual ditadura será permitida? A Guerra do Iraque, representada pelos Estados Unidos em parte como uma missão para democratizar aquele país, deixou uma grave mancha no conceito de promoção da democracia na política internacional, ofuscando atividades menos controversas, tais como garantir o apoio a eleições em jovens democracias, ou providenciar o monitoramento internacional de eleições de maneira a assegurar um resultado justo .

As fortes contradições entre a retórica da “agenda da liberdade” de Bush e o fenômeno da tortura de detentos em Abu Ghraib e em Guantánamo, assim como o do monitoramento sem mandado, causaram consternação até entre aliados dos Estados Unidos abertos à ideia de promoção da democracia . Além de provocar um debate global sobre a legitimidade e os limites da imposição da democracia, essas questões têm contribuído ainda mais para a aversão de potências emergentes ao estilo americano de promoção da democracia . Desse modo, em vez de surgir um duelo entre países que apoiam a promoção da democracia e aqueles que a rejeitam completamente, está surgindo um debate mais sutil e mais complexo sobre quando e como a promoção da democracia é legítima, e que forma deve tomar. Não o conceito em si, e, sim, sua interpretação e sua aplicação é que estarão cada vez mais abertas à contestação e à competição entre as democracias estabelecidas e as emergentes.

O fim da promoção da democracia tal como a conhecemos?

A inda não ficou claro como essa contestação se desenvolverá, mas é provável que os Estados Unidos, enfraquecidos, terão cada vez mais de lutar para defender seu tipo de promoção da democracia. Embora a democracia como norma internacional permaneça forte – visto que a exigência por democracia foi uma questão-chave durante as recentes revoluções no mundo árabe – há também evidências a sugerir que, diante da ascensão da China, os governos e agências ocidentais passarão a promover a democracia de maneira menos aberta, ou apenas em circunstâncias específicas, como, por exemplo, quando o fato de promovê-la não impõe riscos à segurança, ou quando os abusos de direitos humanos de um ditador tornam-se óbvios demais para serem ignorados. Isso representa um forte contraste com o começo da década de 1990, quando os especialistas elogiavam o “movimento sem precedentes em direção à democracia” .

Hoje, os líderes da Rússia e da Ásia Central denunciam a assistência à democracia ocidental com frequência crescente . Em 2006, a Freedom House relatou que “a porcentagem de países designados como ‘livres’ não aumentou durante uma década” . No final de 2009, o programa de democracia da Usaid foi encerrado prematuramente por demanda do governo boliviano . Os chefes de Estado africanos estão cada vez mais interessados em não copiar o Ocidente, e buscam, em vez disso, emular o modelo chinês, que parece ser a maneira mais segura para que as elites possam manter o controle do poder e, ao mesmo tempo, assegurar o crescimento econômico para manter a estabilidade política. De fato, após a invasão americana do Iraque em 2003, a promoção da democracia parece ter assumido uma conotação tão negativa que menos líderes ocidentais a identificam abertamente como um objetivo-chave da política externa.

O ex-ministro das Relações Exteriores da França, Bernard Kouchner, um dos principais proponentes do “intervencionismo liberal” pró-democracia, foi demitido em 2010 porque o presidente Nicolas Sarkozy acreditava que sua retórica começava a colocar em perigo o interesse nacional da França . A experiência também sugere que os esforços do Ocidente de fortalecer as democracias têm tido sucesso limitado , e aqueles envolvidos na promoção da democracia in loco muitas vezes se queixam do fato que, embora os custos sejam imediatos, os efeitos são incertos e frequentemente levam décadas para aparecer . O objetivo de estabelecer uma democracia liberal no Afeganistão foi substituído discretamente por simplesmente deixar por trás um governo central estável que pudesse se defender contra a insurgência islâmica, sendo que mesmo os otimistas mais entusiasmados veem pouquíssimo progresso.

Dez anos após a queda do Talibã, o Afeganistão dificilmente pode ser considerado uma democracia estável . Como advertem os acadêmicos, as eleições competitivas podem levar à violência sectária e intensificar animosidades em sociedades etnicamente divididas . Durante décadas, os Estados Unidos trabalharam para fortalecer a capacitação da sociedade civil e o desenvolvimento de partidos políticos no mundo árabe, mas não há nenhuma indicação de que as insurreições que agitaram o mundo árabe ao longo dos últimos meses sejam o resultado da promoção da democracia ocidental . Por vezes, o oposto é verdadeiro.

O fato de ser associado com organizações ocidentais é, com frequência, um ônus para grupos de oposição. Em junho de 2009, por exemplo, a oposição iraniana distanciou-se explicitamente do Ocidente para evitar a perda de credibilidade e de legitimidade .

As potências emergentes podem aprender com os erros do Ocidente?

O Ocidente critica as potências emergentes por não defenderem a democracia de maneira mais vigorosa, argumentando, por exemplo, que o Brasil raramente expressa de maneira aberta quaisquer preocupações com a falta de democracia em Cuba, onde a situação é marcada por figuras de oposição encarceradas e pela falta de liberdade de imprensa.

O Brasil responde que procede assim por considerar o regime cubano um aliado em uma série de assuntos ligados à diplomacia multilateral, e não porque os brasileiros achem que a democracia não importa. Do mesmo modo, durante muito tempo, os Estados Unidos tiveram o cuidado de não antagonizar o Egito autocrático, pois era considerado um fator de equilíbrio importante em uma região volátil e estrategicamente importante. A crítica que faz a Europa de abusos de direitos humanos na Rússia tem seus limites, já que a Rússia tem um papel importante como fornecedor de energia para a União Europeia. Portanto, não são apenas as potências emergentes cuja postura pró-democrática por vezes é superada pela Realpolitik. 

Contudo, as posições dos países emergentes são mais importantes porque tais Estados estão localizados em regiões do mundo onde as bases da democracia ainda não são sólidas. Além disso, há indicações de que a credibilidade do Brasil e a da Índia entre os países pobres possa exceder aquela do mundo rico, talvez precisamente porque esses dois países raramente são percebidos como excessivamente paternalistas. Como foi dito acima, o Brasil pode indicar vários casos em que assumiu os riscos para defender a democracia – no Paraguai, na Venezuela e, mais recentemente, em Honduras.

A Índia, por sua vez, interveio no Paquistão Oriental, no Sri Lanka e nas Maldivas. Tais estratégias faziam parte de uma doutrina ou de uma crença, ou eram apenas intervenções ad hoc a serem decididas com base em cada caso? A defesa da democracia e do pluralismo político faz parte do interesse nacional de potências emergentes? Se for esse o caso, quais as melhores maneiras de incorporar essa defesa? Como as potências emergentes lidam com a tensão em sua perspectiva do mundo entre a noção de soberania e a da intervenção ? Como a participação do Brasil, da Índia e da Turquia na promoção da democracia é afetada por preocupações internas acerca da intervenção estrangeira na Amazônia, na Cachemira e no Curdistão, respectivamente? Como suas sociedades podem engajar-se em um debate útil sobre os prós e os contras da promoção da democracia sem ficarem presas a um debate limitante e carregado de ideologia que marca os entusiastas do conceito como defensores fanáticos do internacionalismo neowilsoniano e do imperialismo liberal, e seus oponentes como terceiro-mundistas de esquerda? As democracias do Brasil, da Índia e da África do Sul deveriam servir de modelo para aqueles que lutam pela democracia em autocracias nos países em desenvolvimento? Não deveriam essas potências emergentes não apenas engajar-se lá onde a democracia falha, mas também incitar os autocratas a liberarem? Quando é justificado intervir em defesa de valores universais superiores? Apenas depois de realizada essa discussão podem esses países responder à pergunta mais importante, isto é, se sua natureza democrática faz parte de sua identidade global. Caso faça, como isso se deve manifestar em sua política externa?

Papel da democracia na política externa

E ssas perguntas, ainda sem respostas satisfatórias, demonstram a necessidade de se realizar a discussão no Brasil, na Índia, na África do Sul e na Turquia sobre o papel da democracia em sua política externa. Isso é particularmente importante à medida que as potências emergentes se tornam formuladores da agenda global, com a capacidade crescente de influenciar regiões além de suas próprias. Cabe aos líderes em Brasília, em Pretória, em Nova Déli e em Ancara decidir quando existem as condições adequadas para justificar a defesa da democracia no exterior, assim como lhes cabe debater sobre o que é certo e o que é errado com o estado da promoção da democracia, e como dar substância à agenda acordada sobre promoção da democracia ao redor do mundo de maneira mais prática. Por exemplo, como a Índia pode fortalecer tendências democráticas na vizinha autocrática Birmânia e ao mesmo tempo defender seus interesses estratégicos naquele país diante da crescente influência chinesa? Como a Índia pode conciliar seus objetivos de curto prazo sem corroer os valores fundamentais acerca da democracia e dos direitos humanos47?

A urgência em torno do debate sobre essa questão deve aumentar. Com o crescimento das economias e o surgimento da necessidade de importar matéria-prima, as potências emergentes passarão a ter interesse ativo nas políticas internas de seus fornecedores e de seus parceiros comerciais. Os Estados Unidos, enfraquecidos, deixarão um vácuo de poder em várias regiões, o que criará tanto a necessidade quanto a oportunidade para as potências emergentes como a África do Sul, o Brasil, a Turquia e a Índia expandirem suas esferas de influência. Isso, por sua vez, os forçará a assumir uma postura assertiva caso a instabilidade aumente em sua vizinhança. Mas lhes caberá interpretar esse novo papel.

As potências emergentes farão bem de estudar os esforços do Ocidente na promoção da democracia, não para simplesmente copiá-los ou rejeitá-los, e, sim, para aprenderem com os erros cometidos e se tornarem agentes mais efetivos da paz e da estabilidade global.

É professor adjunto do Centro de Relações Internacionais, Fundação Getúlio Vargas (fgv).

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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