01 julho 2009

Regularização fundiária e desenvolvimento na Amazônia

Na noite do dia 3 de junho último (2009), em sessão tumultuada que se estendeu noite adentro, o Senado Federal aprovou sem alterações o Projeto de Lei de Conversão da Medida Provisória nº 458. A nova lei define parâmetros para a regularização fundiária de ocupações em terras públicas federais não afetadas, ou seja, aquelas que, tendo sido arrecadadas, não foram destinadas à conservação, reforma agrária ou outra finalidade. O ato também criou condições para a transferência simplificada, aos municípios, de terras rurais que perderam sua vocação agrícola. A regularização fundiária rural deve beneficiar cerca de 60% dos estabelecimentos rurais da Amazônia, ou cerca de 400 mil famílias. A transferência das áreas urbanas aos municípios resultará na titulação de mais de 500 mil lotes urbanos.

A regularização fundiária é a iniciativa mais importante em mais de três décadas de intervenção federal nas terras da Amazônia. O choque de legalidade deve reduzir os conflitos e a violência fundiária. O preço da terra tende a se elevar. O crédito tende a ser mais abundante e mais barato. Em suma, além de propiciar segurança jurídica aos produtores, com a legalização de situações de fato consolidadas e irreversíveis, o ordenamento fundiário desencadeia processos mais amplos de modernização e intensificação produtiva.
O propósito deste artigo é duplo. A primeira parte discute as causas da desordem fundiária, que veio se agravando na Amazônia desde os anos 1960. A segunda parte discute algumas das questões mais polêmicas que surgiram desde que o ministro Mangabeira Unger e os governadores dos estados da Amazônia atribuíram prioridade máxima ao ordenamento fundiário e traduziram essa prioridade em uma proposta prática e simples de mudança institucional.


Raízes da desordem fundiária na Amazônia

Desde a primeira Constituição da República, as terras devolutas da Amazônia pertenciam aos estados. Terra não era mercadoria. As relações de produção se calcavam sobre o controle do acesso aos recursos naturais, como no caso clássico do aviamento na economia da borracha. O Estado administrava concessões e direitos de exploração de recursos naturais, às vezes perpétuos, tais como os aforamentos nos castanhais de Marabá e nos seringais de várias partes da Amazônia. Décadas mais tardes, tais aforamentos se tornariam uma dimensão a mais na confusa arena de conflitos e disputas judiciais pela propriedade da terra.

Tão logo a terra começou a ser transacionada em mercado, os governantes passaram a usar a alienação de terras públicas como recurso político, ou simplesmente para enriquecimento pessoal. Este foi, por exemplo, o caso do Pará. De todas as terras públicas estaduais que este estado alienou entre 1924 e 1980, nada menos que 93%, cerca de sete milhões de hectares, foram vendidos no curto período entre a abertura da Belém – Brasília e o golpe militar de 1964. No Mato Grosso, o governador José Fragelli, já nos anos 1970, aprovou uma lei tornando compulsória a venda de terras públicas estaduais consideradas excedentes. Vendeu 2 milhões de hectares para quatro grandes empresas, ao preço histórico de U$ 4,00 por hectare, antes que o governador seguinte cancelasse lei tão esdrúxula. Não surpreende que o regime autoritário visse com extrema desconfiança a capacidade das elites regionais de cuidarem daquela parcela magnífica do patrimônio nacional.

As causas principais da desordem fundiária na Amazônia de hoje têm raízes na transição radical da estratégia do governo federal para a região, a partir de 1964. Os militares tinham um ambicioso projeto geopolítico de integração e controle da Amazônia. Em consonância com a modernização conservadora na estrutura de regulação econômica, também o desenvolvimento da Amazônia passa a ser visto como uma tarefa da grande empresa, devidamente incentivada por crédito farto, incentivos fiscais e grandes investimentos em rodovias estratégicas.

O soluço populista do governo Medici

Porém, a estratégia inicial de privilégio à grande empresa sofre um solavanco quando, em 1970, o presidente Médici, impressionado com o quadro de uma grave seca no Nordeste, decide transformar a Amazônia em solução para tensões sociais, a seu ver geradas por excedentes demográficos nas regiões mais pobres. Sob o absurdo slogan “terra sem homens para homens sem terra”, a decisão do presidente da República inaugurou a breve fase populista do regime militar em relação à Amazônia. As rodovias estratégicas serviriam como espaço de colonização do que se percebia como um vazio demográfico, e que, na verdade, era área habitada por indígenas, populações tradicionais e posseiros que vinham do Nordeste em busca da Terra Liberta. O contato entre os territórios dessas populações e as frentes de grilagem de terras ainda hoje faz vítimas.

Em 1º de abril de 1971, o Diário Oficial publicou o Decreto-lei no 1 164. Ao cabo de seis artigos, o Decreto-lei tomava para o patrimônio da União todas as terras devolutas situadas a 100 km de cada lado do eixo de todas as rodovias federais existentes, em construção ou mesmo projetadas na Amazônia Legal. As 18 rodovias mencionadas no decreto, várias delas jamais construídas, somavam quase 24 mil km de extensão, do que resultava uma área federalizada de dimensões continentais. O Pará, por exemplo, teve mais de 70% de suas terras transferidas para a União. O Acre perdeu o domínio sobre quase todas suas terras e Rondônia teve literalmente todo o seu território federalizado. Apenas o Amazonas, cortado por poucas estradas, logrou manter controle sobre parte expressiva de suas terras.

Todo esse gigantesco patrimônio fundiário foi transferido para o Instituto de Colonização e Reforma Agrária (Incra), criado em 1970. A nova autarquia nasceu poderosa. Embora pertencesse ao organograma do Ministério do Agricultura, subordinava-se, na realidade ao Conselho de Segurança Nacional. Por ser extremamente amplo, o mandato do Incra acabava sendo contraditório. Era responsável por: exame e validação de títulos e de situações de ocupação (regularização fundiária); alienação de terras públicas até três mil hectares (ou mais, desde que com aprovação do Congresso); organização do cadastro rural e coleta do imposto sobre a propriedade da terra; regulação e supervisão da colonização privada; responsabilidade integral pelos projetos federais de colonização; promoção da reforma agrária, conforme o Estatuto da Terra; e regulação e supervisão de cooperativas. Na prática, o Incra sempre se esquivou da regularização fundiária, tarefa penosa, pois sujeita a resistência política e judicial, preferindo as atividades de alienação de terras públicas e colonização, que geravam expressiva receita e extraordinários dividendos políticos. Assim, o passivo de desordem veio-se acumulando ao longo do tempo, até a decisão histórica do atual governo.

A primeira fase da intervenção do regime militar nas terras da Amazônia privilegiou a colonização oficial, realizada sob a égide do Programa de Integração Nacional (PIN), principalmente às margens da Rodovia Transamazônica. O então ministro dos Transportes, Mário Andreazza, delirava, prevendo o assentamento potencial de dez milhões de pessoas. O Incra, no entanto, definiu uma meta bem menos ambiciosa: cem mil famílias. Entre 1970 e 1974, quando o esforço de colonização na Transamazônica foi subitamente interrompido, foram instaladas apenas 4 969 famílias.

Rondônia, a farmer road autoritária

Enquanto o PIN era estrangulado no Pará e a colonização era entregue às empresas privadas no Mato Grosso, Rondônia se tornou a farmer road autoritária. Em sintonia com a ideologia do PIN e se antecipando ao contexto gerador de tensões políticas no campo, o regime militar decidiu transformar Rondônia, região de boas terras, em espaço de colonização dos pequenos e médios. Para tanto, colocou um oficial do Exército e membro do SNi, agrimensor de ofício, o capitão Sílvio Cavalcante de Farias, como interventor do Incra em Porto Velho. Assim, o Incra do SNi conduz o mais completo trabalho de discriminação e arrecadação de terras jamais realizado em toda a Amazônia. Ao fim da década de 1970, cerca de 93% de Rondônia eram terras federais discriminadas e arrecadadas.
 
A BR 364 fora aberta ao tráfego em 1965, embora só funcionasse como via de ligação com o Sul no período de seca. Os primeiros migrantes começam a chegar em 1970, quando é aberto o Projeto Integrado de Colonização (PIC) Ouro Preto. Nos anos seguintes, outros PICs foram criados e, todos eles, serviram de núcleo original das cidades que se formaram ao longo da rodovia federal. Em 1975, em consonância com a nova diretriz do regime de ocupar a Amazônia com grandes produtores, vistos como mais aptos tecnologicamente, são criados os Projetos de Assentamento Dirigidos, com lotes que variavam de um mil a três mil hectares, vendidos a baixo preço em licitações. Hoje, 34 anos depois, a situação desses lotes é ainda incerta e a Medida Provisória no 458 provê sobre sua regularização.

Contudo, Rondônia se destaca na Amazônia pelo baixo grau de concentração fundiária. Rondônia é, provavelmente, o estado brasileiro com a mais democrática estrutura de propriedade da terra, o que talvez explique os níveis de renda e qualidade de vida mais elevados do que nas regiões onde predominou a estrutura fundiá¬ria concentrada. Por outro lado, Rondônia é o estado com maior porcentagem de área desmatada, desmatamento que ocorreu integralmente ao longo dos últimos trinta anos.

A Amazônia domada pela pata do boi

O interregno populista na Amazônia Ori¬ental foi breve. Já em 1974, o novo governo decidiu pelo retorno à estratégia original de se valer da grande empresa, devidamente incentivada, para tornar produtivas as terras do Norte. Mesmo a colonização deveria ser conduzida por empresas particulares. As extensões de terra adquiridas a baixo preço e beneficiadas por créditos da SUDAM, fortemente subsidiados, são impressionantes. O Grupo Ometto comprou 680 mil hectares e chegou a acumular 1,7 milhão de hectares, antes de vender a famosa Fazenda Suiá-Missu ao grupo italiano Liquigás. A Volkswagen adquiriu a Fazenda Rio Cristalino, de 140 mil hectares. Mas a maior alienação de terra pública federal favoreceu a empresa Jari Celulose, do bilionário norte-americano Daniel Ludwig: 3,5 milhões de hectares.

Conduzir grandes fazendas de pecuária na Amazônia não implicava grandes riscos, a menos que se tentasse, de fato, criar gado. Entre 1970 e 1985, dos 950 projetos incentivados com recursos da SUDAM, 631 eram de pecuária extensiva. Enquanto a média dos estabelecimentos rurais na Amazônia era de 95 hectares, o tamanho médio das fazendas incentivadas era de 24 mil hectares. José Gasques e Clando Yokomizo, do IPEA, avaliaram uma amostra de 26 dos projetos de pecuária apoiados pela SUDAM. A produção média era de 9% do que fora projetado. Embora a idade média dos projetos fosse de 16 anos, doze dos 26 ranchos nada produziam. Algumas fazendas apoiadas com incentivos jamais existiram. O que existiu, de fato, foi o conflito crônico entre as grandes fazendas e as populações camponesas que já habitavam a suposta “terra sem homens”. O Médio Araguaia e a região de contato entre as bacias do Araguaia e do Xingu foram palco de inúmeros conflitos violentos entre posseiros, apoiados pela Igreja Católica, e grandes fazendeiros, que reclamavam a posse de imensas porções de terra.

O outro braço da estratégia de ocupação da Amazônia com o grande capital foi o avanço da colonização privada. Entre o começo dos anos 1970 e meados dos anos 1980, principalmente no Norte do Mato Grosso, empresários como Ênio Pepino, Ariosto da Riva e João Carlos Meireles compraram do Incra ou do estado do Mato Grosso, com financiamento fundiário do Proterra, imensas glebas para divisão e venda de lotes a colonos do Sul, expulsos pela modernização excludente da agricultura ou afetados pela construção de hidrelétricas. Os nomes das cidades na metade norte do estado são reveladores de suas origens na empresa privada: Sinop (Sociedade Imobiliária Noroeste do Paraná), Confresa (Colonizadora Frenova Sapesa), Contriguaçu (Cooperativa Central Regional Iguaçu), Codeara (Companhia de Desenvolvimento do Araguaia, do Banco de Crédito Nacional) e outros nomes menos reveladores, mas de mesma origem, como Alta Floresta (Indeco), Nova Mutum (Agropecuária Mutum), Vila Rica (Colonizadora Vila Rica), Tucumã (Construtora Andrade Gutierrez, no Pará), entre vários outros.

A correlação entre colonização privada e desordem fundiária é mais fraca. Os projetos privados partem, em geral, da alienação legal (ainda que por preços escandalosamente baixos e sob fortes suspeitas de corrupção) de terras públicas, o que propicia cadeias dominiais reconhecidas.


Crise do Estado, competição política e mais desordem fundiária

Até o fim dos anos 1970, embora já se notassem as falhas no projeto estratégico para a Amazônia, o Estado ainda mantinha um razoável grau de controle sobre a ocupação do território. Essa situação iria se alterar ao longo da extensa crise dos anos 1980, que, além da estagnação de uma década, amputou a capacidade de gasto do governo e debilitou o funcionamento do já insuficiente aparato de controle da ocupação do território. Na Amazônia, a atuação ordenadora do Estado se retrai bruscamente e se degenera aos poucos em corrupção.

Na crise, a demanda por terras crescia. A inflação com estagnação econômica, combinada com a rápida modernização excludente da agricultura, erodia o emprego rural e alimentava fluxos migratórios em direção à fronteira agrícola. No entanto, o Incra tinha menos recursos a cada ano e era cada vez menos capaz de assentar os migrantes com um mínimo de estrutura e planejamento, o que provocava um aumento da informalidade. Os Projetos Integrados de Colonização (PICs), dotados de boa infraestrutura, mas caros e demorados, logo dão lugar aos Projetos de Assentamento Rápido (PARs), mais precários e, depois, ao mero acompanhamento do avanço espontâneo e desordenado sobre a floresta. Evidência dessa entropia fundiária crescente é que, a partir dos anos 1980, o Incra praticamente não emitiu mais títulos definitivos de propriedade e passou a gerir a rápida ocupação do território por meio de instrumentos precários, como Autorizações de Ocupação (AOs) e Licenças de Ocupação (LOs), ou Certificados de Cadastro de Imóveis Rurais (CCIRs), não mais que fases iniciais do processo de titulação ou mesmo meros protocolos administrativos.

A introdução da competição político-eleitoral neste cenário de desordem fundiária no início dos anos 1980 só agrava a situação de informalidade e descontrole, pois elimina a pouca autonomia burocrática de que a instituição fundiária ainda dispunha na região. O Incra, a despeito da resistência de parte do corpo técnico, foi capturado por elites políticas locais e passou a gerir a situação generalizada de incerteza sobre a propriedade da terra como um precioso ativo político. Na anedota em que os médicos dizem: “cliente curado é cliente perdido”, as facções que controlavam o Incra diriam: “título definitivo emitido é voto perdido”.

O controle da autarquia fundiária passa a ser a joia da coroa na negociação para a construção de maioria parlamentar entre o Executivo federal e as bancadas regionais. A indicação de seu superintendente foi, em geral, entregue à coalizão do senador dominante. Em Rondônia, nos anos 1980, um dos partidos mais fortes era o “partido do Incra”, sob qualquer legenda disponível. O Incra elegeu (e ainda elege!) senadores, deputados federais, deputados estaduais e uma legião de prefeitos.

Dois outros fatores contribuíram decisivamente na conformação do caos fundiário que hoje se pretende enfrentar: a torrente de ocupações espontâneas, à margem mesma dos controles precários do Incra; e a intensa rotatividade de ocupantes dos lotes e áreas. Em ambos, subjaz a mesma anomalia: a aderência formal a planos e normas inexequíveis e a aversão à experimentação com soluções práticas, diferenciadas e includentes.

A ocupação espontânea, à revelia do Incra, ganhou importância relativa crescente na conformação da fronteira na Amazônia e assumiu várias formas. Por um lado, a distensão do controle político gerou a proliferação de máfias locais, que, atuando à revelia do Incra, organizavam invasões, em que a participação direta de famílias pobres servia de biombo para a grilagem de porções maiores de terra pelos organizadores e financiadores, em geral madeireiros interessados em madeira e terra de novas áreas. Essa competição provocou uma corrida a blocos de terra pública não-destinada a assentamentos ou à conservação, alterando o comportamento do próprio Incra, que, para manter a influência política, acelerou as próprias ações de expansão da fronteira de assentados precários.

Outro processo ocorreu não apenas nas áreas novas, de contato com a floresta, mas em todas as áreas ocupadas. É o intenso rodízio de ocupantes, que compram e vendem suas posses ou lotes em assentamentos. A experiência econômica nas áreas rurais da Amazônia é caracterizada por alto risco, especialmente para os produtores familiares, descapitalizados e que constituem a maioria dos estabelecimentos. As causas do processo conhecido como “desistência dos colonos” (colonist attrition) são diversas. A principal é o fracasso na produção, que tanto pode ser provocado por fatores econômicos – em geral falta de crédito, de assistência técnica e de estruturas adequadas de comercialização – quanto pelo impacto de doenças crônicas, como a malária, ou por dissolução familiar. O fato é que o comércio das posses resultou em aumento da concentração fundiária, tanto dentro dos projetos de assentamento quanto nas áreas de colonização espontânea. Hoje não se sabe quem ocupa os lotes originais dos projetos de assentamento, qual é o grau de concentração dentro desses projetos, e muito menos quem possui que quantidade de terra nas áreas não-afetadas (destinadas oficialmente para assentamento, por exemplo).

Neste ponto, é preciso destacar a importância crucial da indústria extrativa de madeira, quase toda ilegal, na indução da ocupação espontânea de terras públicas. Como as florestas privadas se limitavam praticamente às existentes em lotes de assentados oficiais, quase toda a exploração se dava sobre florestas públicas. Os madeireiros financiavam (e ainda financiam!) políticos locais, que organizavam as invasões e abriam as estradas que viabilizavam a penetração dos posseiros na mata. Ao comprarem por baixo preço a madeira existente nas ocupações (quando não a retiravam à força), os madeireiros supriam o capital inicial para a formação das primeiras lavouras. Num primeiro momento histórico, quando a madeira era abundante e o capital escasso, os madeireiros se limitavam à atividade mais rentável de extração e beneficiamento primário da madeira. Na última década, porém, passaram a combinar o saque às florestas públicas com a grilagem de terras. Poucos estudiosos duvidam que, sem o controle da extração ilegal e sem oferta de alternativas sustentáveis para a indústria madeireira, a expansão contínua da ocupação de terras públicas dificilmente será contida.

A face urbana da desordem fundiária

Uma dimensão menos conhecida do problema fundiário na Amazônia são as cidades-fantasma, que foram surgindo no rastro da expansão da fronteira agrícola. Assim como o Incra não foi capaz de regular e organizar os fluxos migratórios e a disputa pela terra, também não reagiu institucionalmente à acelerada transformação de áreas rurais em espaços urbanizados. Assim, ao longo das estradas e ramais abertos na selva, foram surgindo núcleos urbanos, quase sempre espontâneos e não-planejados, que hoje constituem a quase totalidade da rede de cidades no chamado Arco do Desmatamento. Também as cidades já existentes, em geral capitais ou polos de comércio à beira dos rios, cresceram muito e a expansão avançou sobre seu entorno rural, também federalizado pelo Decreto-lei no 1 164 de 1971. Hoje, mais da metade da área urbana de Boa Vista e quase a metade de Porto Velho, por exemplo, estão fundadas sobre terras do Incra. Como consequência, nenhuma família ou empresa tem a escritura da casa em que mora ou da sede que ocupa.

A dimensão do passivo fundiário urbano não é precisamente conhecida. O Ministério do Desenvolvimento Agrário aponta a existência de 172 municípios constituídos integralmente em terras do Incra. É provável que dezenas, e mesmo centenas, de outros núcleos urbanos já existentes quando da edição do Decreto-lei no 1 164, tenham sua área de expansão, sempre maior que o núcleo original, em terras rurais do Incra.

Também se formaram ou se expandiram cidades nas margens de rios federais e suas várzeas na Amazônia. Cidades como Careiro da Várzea (AM), à beira do rio Amazonas, toda ela erguida sobre palafitas. Também esses núcleos urbanos demandam regularização, neste caso pela Secretaria do Patrimônio da União (SPU). Estima-se que pelo menos 500 mil famílias habitem lotes urbanos informais em terras do Incra e da SPU, e que serão titulados como consequência da lei aprovada no Congresso com base na MP 458.

Breve balanço do caos fundiário na Amazônia

Ninguém sabe exatamente quem ocupa que área na Amazônia. As melhores informações são os dados cadastrais do Incra e mesmo essas são extremamente precárias. As ocupações foram, em grande parte, informais, jamais registradas em cartório. Outras, registradas em cadastro, foram vendidas e os novos dados jamais atualizados. Mesmo nas áreas afetadas para projetos de assentamento, o que está registrado não bate com a situação real da propriedade. Assim, não se sabe o coeficiente agregado de concentração da terra nos estados ou mesmo a concentração de lotes dentro de projetos de assentamento. Mesmo a extensão total das áreas federais não é conhecida com certeza. Só há certeza sobre a parcela de terras federais discriminadas, arrecadadas e registradas em nome do Incra.

Também não se sabe exatamente quanto e quais são as terras federais inalienáveis, cuja gestão está sob responsabilidade da SPU, do Ministério do Planejamento. Na Amazônia, nem sempre as várzeas e margens de rios federais são precisamente delimitáveis. Alguns rios migram, ao sabor dos efeitos geológicos das cheias sobre terras baixas e pouco estruturadas. Compreende-se então a dificuldade de delimitar o que é o bem da União, baseado no conceito de linha média das enchentes ordinárias, quando se trata de rios mutantes.

O Ministério do Desenvolvimento Agrário publicou uma primeira estimativa sobre o universo de ocupações potencialmente regularizáveis pelo Programa Terra Legal. Seriam 296 854 posses, das quais 95,5% seriam pequenas (até quatro módulos fiscais de área). A Secretaria de Assuntos Estratégicos estima que o número de ocupantes regularizáveis nas áreas rurais possa atingir 400 mil. A área passível de regularização seria superior a 67 milhões de hectares, ou seja, equivalente à soma da áreas des Goiás e Maranhão. Também os estados não têm uma estimativa precisa de seu patrimônio fundiário. A maior parte das terras estaduais pertence ao estado do Amazonas, que tem cerca de 50 milhões de hectares arrecadados. Pará e Mato Grosso começam a enfrentar sua própria tarefa de arrecadação e regularização de terras.

Tampouco a desordem fundiária se limita às terras federais arrecadadas e não-destinadas, que se beneficiarão do Programa Terra Legal. O status das terras federais afetadas para Reforma Agrária ou para conservação ambiental e desenvolvimento sustentável é também precário. Das 87 Reservas Extrativistas e Reservas de Desenvolvimento Sustentável federais e estaduais da Amazônia, apenas duas foram regularizadas. As demais Unidades de Conservação não estão em melhor situação. Várias estão invadidas e em outras, de proteção integral, remanescentes de populações tradicionais jamais foram indenizados e realocados. Mesmo as áreas destinadas a assentamentos de reforma agrária se encontram permeadas de irregularidade. Não raro, a maioria dos ocupantes dos lotes de projetos de assentamento não são os parceleiros originais. Muitos lotes foram comercializados, a despeito da proibição constitucional de venda desses imóveis.

Em síntese, a dimensão do passivo fundiário na Amazônia pode ser, na melhor das hipóteses, estimada em seus contornos gerais. As próprias ações de regularização e a desejada convergência da sociedade no sentido de buscar a legalidade é que, aos poucos, irão revelando a real extensão do caos gerado a partir dos projetos geopolíticos e dos arroubos populistas do regime autoritário nos anos 1970 e o custo da correção de rumos.

Por que não se regularizava?

A pergunta pode parecer desnecessária. No entanto, até há pouco tempo, a coalizão de interesses contrária à regularização prevaleceu. Por um lado, facções políticas que controlavam o Incra derivavam seu poder justamente do quadro de indefinição fundiária, pois quem está na terra reconhece o próprio status precário e depende das decisões administrativas da autoridade fundiária. Quem almeja a posse de terra, como em qualquer relação clientelista, mantém a expectativa de benefício discricionário, advindo da relação pessoal, ainda que assimétrica, e se dispõe à reciprocidade. Resolver definitivamente as situações de indefinição acaba tornando desnecessária a presença da própria instituição. Nas áreas rurais da Amazônia, o Incra é senhor dos destinos. Em outras regiões do Brasil, onde a situação fundiária é clara, o setor fundiário da autarquia se limita a cobrar impostos e emitir certidões.

Nas áreas em que a fronteira se encontra em franca expansão, a regularização não é bem-vinda. Avançar sobre o patrimônio público beneficia direta e indiretamente a quase toda a sociedade local. Grandes grileiros, por razões óbvias, têm nenhum interesse em gestão fundiá¬ria baseada na lei. Também pequenos posseiros podem preferir invasões à longa espera nas filas da reforma agrária. Elites políticas locais reduzem o custo do voto ao organizarem invasões e, finalmente, mas não menos importante, os madeireiros preferem o acesso contínuo aos estoques de madeira em área pública desregulada. É verdade que nas áreas de ocupação mais antiga, onde os benefícios de avançar sobre floresta pública já foram exauridos, a maioria deveria preferir a regularização das situações consolidadas. Porém, mesmo nessas regiões, diversos agentes têm mais a perder do que a ganhar. Ocupantes de grandes áreas sabem que perderiam terra, dados os limites máximos à regularização. Embora não sejam muitos, eles têm poder econômico e político desproporcional. Os sucessionários de ocupantes originais de projetos de assentamento sabem que não serão regularizados e resistem. Os demais, embora pudessem ganhar com a titulação, não atribuem tanta importância ao processo, pelo menos até que alguma alteração regulatória aumente os custos da ilegalidade.

Por que se decidiu regularizar

Nos últimos anos, o quadro se alterou. A principal mudança foi o crescimento da reação ambiental ao modelo de informalidade premiado com o avanço constante sobre a floresta. A pressão política sobre os governantes, órgãos de regulação do Estado e instituições da sociedade civil altera aos poucos o quadro de expectativas dos agentes, sinalizando custos crescentes à desordem fundiária e ambiental. Especialmente importante foi o efeito da Resolução no 3 545 do Conselho Monetário Nacional, que proibiu o crédito a estabelecimentos rurais irregulares em termos ambientais e fundiários, inclusive para empréstimos do Pronaf. O custo da irregularidade fundiária subiu muito.

Além disso, altera-se a proporção entre áreas consolidadas, onde é maior o interesse pela formalização do statu quo, e áreas de fronteira, onde se prefere regulação fraca. Quanto mais antiga e consolidada a região, maior a probabilidade de que o mercado selecione agentes com maior aversão ao risco e à ilegalidade. Sistemas produtivos mais complexos dependem mais de relações institucionais que requerem formalização.

Por outro lado, neste governo aumentou a autonomia burocrática do Incra, tanto pelo menor poder de patronagem de políticos, quanto pela pressão, especialmente de ambientalistas e Ministério Público, sobre as ações da instituição. Operações da Polícia Federal prenderam quadrilhas envolvidas com desapropriações fraudulentas e falsificação de documentos com participação de funcionários do Incra. Ações do Ministério Público impediram a criação de projetos de assentamento suspeitos de servirem à lavagem de madeira ilegal. Tudo isso reduziu o espaço de manobra clientelista no Incra e favoreceu as demandas por regularização.

Em suma, o balanço de forças se alterou. Mais e mais setores sociais anteviram benefícios no ordenamento fundiário. A resistência se limitou à extrema-esquerda agrária, contrária ao que percebem como “avanço do capitalismo na Amazônia”. Grileiros e madeireiros ilegais, que têm razões objetivas para se opor à regularização, não tiveram espaço político de manobra a partir do momento em que a proposta galvanizou atenção política e da mídia.

No campo político, o ministro de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, coordenador do Programa Amazônia Sustentável, construiu uma relação política forte com os governadores dos estados e, como conse¬quência de inúmeras visitas à região, também com prefeitos, parlamentares e líderes da sociedade civil. Daí emergiu a clara prioridade da regularização fundiária. Ela representará um choque de legalidade que irá beneficiar a maioria dos agentes econômicos da região. Tendo o aval das forças políticas da Amazônia, a sae construiu uma proposta simples e prática de regularização, que recebeu o endosso do presidente da República. Preparada por representantes dos ministérios, sob a coordenação da Casa Civil, a medida provisória foi promulgada em tempo recorde.

Dilemas da regularização fundiária

Algumas questões suscitaram intenso debate na fase de preparação da MP 458, continuaram polêmicas durante a discussão e votação nas duas casas do Congresso e no debate público que acompanhou todo o processo. As dimensões mais controversas da política de regularização fundiária são: o tamanho máximo das ocupações passíveis de regularização; o grau de subsídio admitido para ressarcimento pelos regularizados junto aos cofres públicos; a possibilidade de regularizar ocupações de terra por pessoa jurídica e ocupações indiretas; o período de proibição à venda das ocupações regularizadas; e, finalmente, mas mais importante, as consequências ambientais da regularização, em especial a relação causal entre regularização e desmatamento.

Até quanto regularizar?

Qualquer extensão de terra pública é passível de alienação ou concessão pelo Estado, desde que respeitado o princípio da publicidade, ou seja, desde que por meio de processo licitatório definido por lei. No entanto, o artigo 49, inciso XVII, da Constituição Federal, exige a aprovação do Congresso Nacional para alienação ou concessão de área superior a 2 500 hectares, o que, na prática acaba funcionando como limite máximo. Na verdade, a discussão é sobre a extensão máxima permitida com dispensa de licitação.

O limite máximo à alienação com dispensa de licitação já fora ampliado duas vezes neste governo. Em 2005, a Lei no 11 196, resultante da conversão da chamada “MP do bem”, definira 500 hectares como o limite máximo e apenas para a legitimação de posses constituídas na Amazônia Legal. Em 2008, o Executivo editou a MP 422, depois convertida na Lei no 11 763, ampliando o limite para 15 módulos fiscais e não mais do que 1 500 hectares. Em ambos os casos, a intenção foi ampliar a abrangência da legitimação de posses, dada a percepção de que grande parte da área dos estabelecimentos na Amazônia estava em poder de médios e grandes proprietários. Alienar os médios ocupantes da regularização não só aumentaria a resistência política à medida, como também manteria situa¬ções de fato em situação de crônica ilegalidade. Assim, as duas casas do Congresso confirmaram a proposta do Executivo de aceitar como limite a definição dada pela Lei no 8 629 de 1993 para média propriedade: a área compreendida entre quatro e quinze módulos fiscais. A MP 458 e seu Projeto de Lei de Conversão mantiveram a decisão.

O debate público em geral ignorou a definição de área máxima por módulos fiscais, preferindo a referência ao limite máximo: 1 500 hectares, ou seja, a área nos municípios onde o módulo fiscal é de cem hectares. Mas esta não é a situação predominante na Amazônia, onde o módulo fiscal varia de trinta hectares a cem hectares. O Ministério do Desenvolvimento Agrário estimou que a extensão média do módulo fiscal para efeito de regularização é de 76 hectares. Portanto, a média dos limites de área regularizável por município é de 1 140 hectares, não muito para os padrões da Amazônia, especialmente considerando que para o bioma floresta a área passível de desmatamento é de apenas 20% da propriedade.

A iniciativa de regularização fundiária com os limites mencionados acima foi criticada como um “benefício aos grandes”, quando é exatamente o contrário. Toda a área das ocupações que exceder quinze módulos fiscais é passível de retomada pela União. Se essa prerrogativa for, de fato, exercida, a regularização fundiária provocará a maior e mais abrangente redução na concentração fundiária da história do Brasil.

Quem paga e quanto paga?

Outra questão controversa foi o pagamento pelas terras regularizadas sem licitação. A regularização poderia se dar sem ônus? Alguns ocupantes mereceriam subsídio parcial? Quem deveria pagar o valor de mercado? Estavam em choque dois princípios frequentemente contraditórios: o princípio da justiça e o princípio da racionalidade econômica. Por um lado, como admitir que num país com tantas famílias absolutamente destituídas de propriedade, o Estado entregue gratuitamente bens imóveis de valor? Por outro, qual é a racionalidade de cobrar renda fundiária dos produtores menos capitalizados amputando-lhes a capacidade de investimento e impedindo a intensificação produtiva?

Optou-se por uma solução de compromisso. Para os ocupantes de áreas com até um módulo fiscal, estimados pelo MDA em cerca de 190 mil famílias, ou 63% dos beneficiários, estabeleceu-se a gratuidade. Não havia dúvida sobre a constitucionalidade da regularização não-onerosa. Como os ocupantes de áreas desse estrato são extremamente pobres, o eventual pagamento pela terra agravaria a situação, provocaria a desistência das famílias e redundaria em concentração fundiária.

Para os ocupantes de área entre um e quatro módulos fiscais, cerca de 97 mil famílias, ou 33% dos beneficiários, concedeu-se subsídio parcial. Neste caso, a solução interme¬diária – pagamento com subsídio parcial – foi de compromisso. O grau de subsídio não foi ainda definido, mas estima-se que oscile entre 20% e 50% do valor de mercado.

Para os médios, cerca de 13 mil famílias, ou 5,5% dos beneficiários, mas que detêm parcela desproporcional de área, previu-se pagamento por valor de mercado. Para ocupantes desse estrato de área, a solução foi incontroversa. A lei também estabeleceu prazo de financiamento em 20 anos, com três anos de carência, para todos os ocupantes de áreas superiores a um módulo fiscal.
Por que contemplar pessoa jurídica ou ocupações indiretas?

A disputa sobre a conveniência de regularizar pessoas jurídicas ou ocupações geridas por prepostos é um debate deslocado pela incompreensão da lei, por imprecisão de conceitos e pela ignorância sobre as consequências de se adotar uma ou outra opção.

Em primeiro lugar, “pessoa jurídica” vem sendo entendido no sentido estrito de “empresa” e não de cooperativas ou outra espécie de associação da sociedade civil. São poucas as empresas formais na Amazônia rural, pois não há vantagem fiscal ou na legislação trabalhista. A administração indireta, por outro lado, é uma situação relativamente frequente entre os estabelecimentos de maior porte ou mais modernos, como as fazendas de agricultura tecnificada no Mato Grosso, administradas por gerentes contratados. Tanto a resistência contra as empresas como aquela contra as posses administradas à distância têm fundo ideológico, mas nenhuma efetividade contra o aprofundamento de relações capitalistas no campo, ou contra a modernização das atividades agropecuárias.

O mais interessante é que a lei está sendo criticada por supostamente abrir a possibilidade de regularização a empresas e proprietários ausentes, quando o que ela faz, na verdade, é restringir a possibilidade legal que existe desde a promulgação da Constituição de 1988. Antes da MP 458, a regularização era perfeitamente possível, desde que limitada a 2 500 hectares e por licitação.
A MP 458, enviada pelo Executivo, reiterou a possibilidade, apenas impondo a condição de que a licitação com direito de preferência passe a depender da aquiescência do ocupante em desistir da área ocupada que exceder 2. 500 hectares. O plc construído na Câmara e aprovado também no Senado admite a regularização de empresas e áreas sob exploração indireta, desde que por licitação, mas limitada a 15 módulos fiscais ou 1 500 hectares. Em outras palavras, o art. 7, incisos I e II do plc apenas reduzem a área máxima passível de regularização de 2 500 hectares para quinze módulos fiscais.

Talvez o melhor argumento em favor da regularização de pessoas jurídicas e de ocupações indiretas seja uma pergunta: qual é a alternativa? Recuperar tais áreas para o patrimônio da União? Mantê-las no limbo da ilegalidade, em meio à grande maioria de ocupações legalizadas? Empresas e fazendas geridas por administradores especializados são as mais modernas e produtivas da Amazônia. Retomar as terras ou mantê-las no limbo significaria desestabilizar a vanguarda da produção, gerar tremenda reação política em toda a região e despender preciosos recursos fiscais e humanos em milhares de ações judiciais de retomada, sem justificativa alguma que não a irrefletida servidão a dogmas ideológicos superados pela realidade.

Por que proibir a venda das ocupações regularizadas?

A proposta original da sae limitava a inalienabilidade a um ano. O MDA defendia a proibição de venda por dez anos. O presidente da República arbitrou a diferença em favor da cláusula de inalienabilidade por dez anos. No plc da Câmara, inalterado pelo Senado, a restrição foi atenuada para as ocupações médias (três anos para posses acima de quatro módulos fiscais) e mantida para os pequenos.

O propósito manifesto da cláusula de inalienabilidade é proteger as propriedades familiares de uma corrida de grandes proprietários e investidores de outras regiões para comprar os lotes legalizados. Há também uma rejeição política ao mercado de terras, sempre visto com suspeição pela esquerda agrária.

A preocupação com a integridade da agricultura familiar é nobre e, em parte, razoável. É possível que agentes com aversão ao risco se decidam por investir na Amazônia após a regularização, por si uma consequência desejável. É possível que alguns tentem mesmo comprar as propriedades dos pequenos, mas não deve ser um movimento expressivo. Médios e grandes investidores preferem adquirir propriedades médias e grandes de proprietários do mesmo porte e não áreas pequenas, fragmentadas, incompatíveis com a escala em que operam. Na Amazônia os pequenos vendem suas posses para vizinhos mais capitalizados ou para médios empresários locais.

Mas o argumento mais simples contra a proibição é que ela não irá afastar o mercado de terras, apenas transformá-lo em mercado negro de terras. Os produtores familiares vendem seus lotes quando decidem que é o melhor a fazer. E decidem pela venda por uma série de razões. Vendem porque fracassam, se endividam ou simplesmente percebem que a vida é melhor em outro lugar, com outra ocupação. Vendem pressionados por doença. Vendem em razão da morte do chefe de família. Vendem até para comprar outra terra mais adiante. É inútil proibir. É pior proibir.

É pior proibir porque a venda ilegal, por contrato de gaveta, sempre se fará por preço muito inferior ao da terra legal. Como quase todos os que vendem são os mais pobres e os que compram são os mais ricos, a venda ilegal é concentradora e socialmente perversa. É pior porque a venda ocorrerá de qualquer forma, mas não poderá ser registrada, eliminando assim preciosa informação sobre onde e por que a estrutura de produção familiar está sendo abalada. Mercado negro de terras e boa governança fundiária são dimensões absolutamente incompatíveis.

Se, como previsto, a proibição resultar na proliferação de “laranjas” e contratos de gaveta, o choque de legalidade promovido pela regularização fundiária será gradualmente erodido pela volta da ilegalidade. A defesa da integridade da propriedade familiar é crucial, mas deve ser feita por meio de ações positivas, tais como: eletrificação rural, melhores estradas vicinais, extensão rural, crédito fácil e adequado, melhores estruturas de comercialização de safras etc. A proibição absoluta já foi testada e o resultado foi o pior possível.

Regularização é prêmio à grilagem de terras?

No debate que se seguiu à aprovação do plc no Congresso, a regularização foi atacada por políticos e colunistas constrangedoramente desinformados como “um bônus à grilagem de terras”. Comentaristas se referiam à MP 458 como “a MP da grilagem”, ou “a MP que beneficiou grileiros”. Essa visão ofende os produtores rurais da Amazônia e obscurece a relação entre regularização fundiária e grilagem.

A verdade é exatamente o contrário. A regularização fundiária não beneficia grileiro algum e é o vetor mais importante no controle e repressão à grilagem de terras. As centenas de milhares de beneficiários da regularização adquiriram suas terras de ocupantes anteriores ou mesmo de grileiros. Muitos estão na região, produzindo e aguardando seus títulos há décadas. Eles são mais de 60% dos estabelecimentos rurais da Amazônia, responsáveis por mais de 2/3 da produção agrícola e pecuária. Não são marginais, são os produtores.

O Estado jamais teve uma política de regularização, assim como jamais combateu a grilagem de terras. Os que estudam a Amazônia sabem exatamente onde a terra pública federal e estadual está sendo grilada neste momento. Parte da dificuldade em combater a grilagem é justamente a ausência de regularização das situações consolidadas, que permitiria isolar politicamente os grileiros dos que produzem e aguardam títulos. A grilagem é conduzida por máfias e, assim como os mafiosos que abrem loteamentos clandestinos nas cidades não moram nos lotes, também os grileiros não se apoderam de terra pública para montar fazendas de até 15 módulos fiscais. Regularização fundiária separa o passado do futuro. Permite o que é realmente importante: deter o saque organizado ao patrimônio público.

Regularização fundiária causa desmatamento?

A dimensão mais absurda do debate que se sucedeu à aprovação da lei da regularização fundiária foi a suposição difusa de que a floresta estaria ameaçada pela medida legal. É difícil responder e esclarecer esse ponto, pois nem os porta-vozes de algumas ONGs, nem a senadora Marina Silva, nem os jornalistas conhecidos que repetiram existir a correlação sinistra explicaram minimamente por que a regularização fundiária ameaça a floresta.

A verdade é que a legalização das situações de fato protege a floresta e cria, finalmente, condições práticas para a gestão ambiental. São três as razões básicas para tanto.
Em primeiro lugar, existe abundante evidência empírica de que a insegurança quanto à propriedade induz a “garimpagem” de recursos, ou seja, receosos de que a propriedade lhes seja subtraída, ocupantes tendem a extrair rápida e predatoriamente os recursos existentes, sem preocupação com a sustentabilidade.

Em segundo lugar, a regularização fundiária cria condições para uma efetiva repressão à grilagem. Desmatamento na Amazônia é essencialmente grilagem. Cerca de 80% do desmatamento ocorre em terras públicas, a maior parte na fronteira da apropriação de terras públicas. Ao conter a fronteira, controla-se o desmatamento.

Finalmente, a regularização fundiária cria as condições, até hoje inexistentes, para a gestão ambiental no nível da propriedade. Hoje não se sabe quem ocupa o quê, portanto, não se sabe quem é responsável pelo passivo ambiental dos estabelecimentos. Regularizar é delimitar por georreferenciamento e atribuir responsabilidade individual. Assim, o monitoramento ambiental da propriedade pode ser feito até por sensoriamento remoto.

A regularização fundiária representa o ponto de partida para uma nova era de desenvolvimento. Vai aumentar os investimentos, a produtividade e o bem-estar, mudando assim a Amazônia. Vai provar que entraves estratégicos podem ser resolvidos com propostas claras e ação política aberta, mudando o Brasil. E vai criar condições para que o País caminhe em direção ao desmatamento zero, o que reduziria as emissões brutas de gases-estufa em mais da metade, mostrando que é possível mudar o mundo.

É gestor federal e diretor de Amazônia da secretaria de Assuntos Estratégicos da presidência da República. Tem curso de doutorado na School of Public Affairs da Universidade da Califórnia, Los Angeles.

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