01 abril 2009

Relações Brasil-EUA sob Obama: Agenda e Perspectivas

Os brasileiros não devem esperar muito da política do governo do presidente Barack Obama para o país e a região. Manter as expectativas baixas e sob controle não é, porém, necessariamente uma má notícia para as relações entre o Brasil e os Estados Unidos. Pode mesmo ser positiva, se a nova administração americana entender que o Brasil é parte da solução da crise econômica que ameaça a estabilidade internacional, e agir de acordo; se focalizar os temas nos quais os dois países têm interesse em jogo e encontrar em Brasília receptividade e disposição de engajamento na busca de solução dos problemas nos dois anos finais da atual administração petista. 


Do lado americano, os primeiros sinais da nova administração foram positivos. O convite de Obama ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva, para uma conversa em Washington antes de completar o segundo mês de sua administração, foi um fato político significativo por um par de razões. O líder brasileiro foi o primeiro da América Latina a visitar a Casa Branca desde a posse de Obama. Mais importante, o encontro aconteceu num momento em que, pressionada pela crise histórica que herdou de George W. Bush, a nova administração limitou a agenda presidencial aos assuntos efetivamente importantes e urgentes para os interesses dos EUA.


A conversa em Washington, os dois outros encontros que Lula e Obama terão até meados de abril, na reunião do g-20, em Londres, e na Cúpula das Américas, em Port of Spain, mais a visita que o líder americano pretende fazer logo ao Brasil pouco antes ou pouco depois da reunião hemisférica em Trinidad e Tobago, dão aos dois líderes ampla oportunidade para definir o tom e o rumo do diálogo bilateral num momento crítico e de transformação da realidade global.


Para Brasília, o desafio é compreender que a virulência da debacle econômica desencadeada pelo colapso de Wall Street, no segundo semestre de 2008, e a forte perda de prestígio internacional dos EUA durante os oito anos de Bush limitaram dramaticamente as opções de Obama. A necessidade de conter a catástrofe interna e de repensar o envolvimento dos EUA nas questões externas prioritárias – os conflitos Afeganistão/Paquistão, o Iraque, o Oriente Médio e as relações com a China – introduziu um elemento novo de realismo na maneira de Washington perceber e hierarquizar seus interesses em relação a seus vizinhos no Hemisfério.


Trata-se de algo potencialmente salutar para as relações bilaterais, na medida em que força Washington e Brasília a concentrar a atenção e os esforços em questões de interesse mútuo que os dois governos identificam como cruciais e em relação às quais ambos têm muito a dizer e a fazer: a necessidade de resistir às pressões protecionistas e buscar uma maneira de retomar as negociações da Rodada Doha da Organização Mundial de Comércio, sob pena de agravar a crise econômica em lugar de facilitar sua superação; a urgência de chegar a um entendimento sobre a adoção, no final deste ano, na reunião das Nações Unidas em Copenhagen, de um acordo global eficaz para reduzir as emissões de carbono e deter o aquecimento global; o imperativo da reforma dos órgãos de governança global de forma a incluir novos atores como o Brasil na busca de solução para os problemas internacionais, a começar pela mais urgente, ou seja, a reconstrução do sistema financeiro.


Crise e realismo


Impedida pelas crises que enfrenta de repetir a balela segundo a qual o Hemisfério Ocidental é região prioritária para Washington – isso simplesmente não é verdade e soaria obviamente falso fazer tal afirmação nas circunstâncias atuais –, a nova administração americana começou a desenhar sua política regional premida pela necessidade de preparar a participação do presidente Barack Obama na Quinta Cúpula das Américas, em Trinidad e Tobago, em meados de abril. Será a primeira oportunidade para o novo líder americano dirigir-se à região. A julgar pela franqueza com que tem falado aos americanos sobre a calamidade econômica que os EUA vivem e o imperativo de enfrentá-la e superá-la, o presidente americano levará a Port of Spain uma oferta de engajamento substantivo mas realista, ancorado no tratamento de questões concretas do interesse americano e dos países presentes.


É instrutiva, nesse sentido, a conspícua ausência de propostas de grandes estratégias hemisféricas nas discussões sobre a região levadas a cabo em meses recentes em universidades americanas e think tanks em Washington e refletidas nos relatórios produzidos pelas inevitáveis forças-tarefa que se formam nos períodos de transição de governo em Washington para fazer recomendações à nova administração. Propostas desse tipo pontuaram o debate sobre a política regional americana em décadas recentes, com pouco ou nenhum resultado. A crise reduziu o espaço para visões delirantes. Um relatório divulgado em novembro de 2008 por uma comissão de notáveis reunida pela Fundação Brookings para repensar as relações regionais, por exemplo, começa advertindo que “não oferece um grande esquema para a reinvenção das relações hemisféricas”. Em lugar disso, faz uma série de “recomendações modestas e pragmáticas” baseadas em duas proposições um tanto óbvias, ou seja, que os países do hemisfério compartilham interesses comuns e os EUA devem engajar-se com seus vizinhos hemisféricos em temas nos quais têm com eles os mesmos interesses e objetivos e em relação aos quais há soluções facilmente identificáveis e que podem servir de base para uma parceria efetiva.


O realismo orienta também a agenda de dez pontos para o Hemisfério que o Diálogo Interamericano sugeriu em meados de março à administração Obama. “O que propomos não é tão ambicioso quanto outros relatórios”, explicou o presidente do Diálogo, Peter Hakim. “Não propomos uma nova visão ou um redirecionamento radical das relações dos Estados Unidos com a América Latina e o Caribe, nem sugerimos que os EUA devem retornar a seu papel tradicional na região.” O documento oferece sugestões de políticas pragmáticas para lidar com problemas concretos, e aconselha a consulta e a cooperação como método de interação com a região. O relatório enfatiza que, no futuro imediato, conter a crise econômica e administrar suas consequências sociais e políticas será a mais alta prioridade para os EUA e seus vizinhos das Américas. Os demais temas importantes para as relações de Washington com a região, relacionados pelo Diálogo, são todos de teor negativo – a deterioração da segurança pública no México e outros países, as problemáticas relações entre os EUA e Cuba, a encalacrada reforma das leis americanas de imigração, as políticas disruptivas na Venezuela, a situação desesperada do Haiti e o acordo de comércio EUA–Colômbia, que está travado. A única exceção na lista é a crescente influência regional e global do Brasil.


A abordagem realista e cautelosa é amplamente compartilhada pelos dois experientes diplomatas que a Casa Branca escalou para cuidar dos preparativos da Cúpula de Port of Spain e mapear as interações iniciais da nova administração com seus vizinhos.


Thomas Shannon, o secretário de Estado adjunto para o Hemisfério Ocidental no segundo governo Bush, foi mantido no posto pelo menos até a reunião de Trinidad e Tobago. Diplomata de carreira, trabalhou anteriormente no Conselho de Segurança da Casa Branca, inicialmente sob as ordens de Arturo Valenzuela, latino-americanista da Universidade de Georgetown que poderá vir a ter um papel influente na política hemisférica no departamento de Estado sob Hillary Clinton. Outros nomes cotados para orientar a política regional da administração Obama são Anne Patterson e Kristie Kenney, ambas experientes diplomatas. Shannon, um nome possível para a embaixada dos EUA em Brasília, foi figura-chave, do lado americano, para a preservação do relacionamento cordial entre os EUA e o Brasil durante os oito anos do governo de George W. Bush. Trata-se de um feito não desprezível quando se consideram o maldisfarçado desprezo que o presidente Fernando Henrique Cardoso tinha pelo colega americano e as inclinações ideológicas divergentes entre este e o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem falar das diferenças substantivas sobre política comercial, que são há três décadas o tema dominante do diálogo bilateral.


Jeffrey Davidow, diplomata aposentado que teve a mesma posição de Shannon no departamento de Estado no governo Clinton, antes de servir como embaixador no México, é também um pragmático. No final de fevereiro, licenciou-se da direção do Instituto das Américas, que dirige, no campus da Universidade da Califórnia em San Diego, para coordenar a participação de Obama na Cúpula das Américas. Especialista em temas mexicanos, Davidow ampliou sua visão da região nos últimos dois anos e passou a prestar mais atenção no Brasil, em função da importância crescente que o país vem conquistando no campo da energia, o assunto dominante da agenda do Instituto das Américas.


Obviamente, o engajamento da administração Obama com o governo Lula dependerá da disposição do Planalto e do Itamaraty de explorar um diálogo mais profundo com Washington. Há dúvidas, em Washington, de que tal disposição exista. A percepção sobre a reticência brasileira deriva em parte da conhecida antipatia que setores do governo nutrem pelos EUA. Ela é reforçada por divergências concretas. A principal são as posições protecionistas que o candidato Obama e seus correligionários democratas assumiram durante a campanha à presidência e ao Congresso. O sucesso eleitoral dos democratas em novembro de 2008 e a inclusão de medidas como o programa “Buy American” no pacote aprovado em fevereiro de 2009 para estimular a economia apontam para a continuação e até o agravamento dos desentendimentos sobre política comercial entre os dois países.


Algumas farpas lançadas por Brasília na direção da nova administração, entre a eleição e a posse, evidenciaram a possibilidade de uma colisão. Em dezembro de 2008, às vésperas da última sessão de negociação da Rodada de Doha realizada durante a administração Bush, o chanceler Celso Amorim chegou a atribuir o fracasso da Rodada de Doha ao silêncio de Obama, que já estava eleito mas ainda não tinha sido empossado, de quem o chefe da diplomacia brasileira aparentemente esperava uma manifestação pública em favor de um acordo. O espaço para uma trombada certamente aumentará se o governo Obama não tiver êxito em seus esforços para conter e reverter a crise econômica, cuja resolução é a tarefa mais importante e urgente que os EUA podem cumprir em relação a si mesmos, ao Brasil e ao mundo. Somam-se a isso fatores hoje imponderáveis ligados à campanha presidencial brasileira no ano que vem. No calor da disputa, a tentação de culpar os EUA pelas repercussões negativas da crise para o Brasil poderá tornar-se irresistível para os candidatos à sucessão de Lula se a economia americana continuar no vermelho no segundo semestre de 2010.


Lula e Obama: química favorável?


A despeito da gravidade da atual crise, a história recomenda não exagerar a importância das visões preconcebidas nas relações entre o Brasil e os EUA. Quando Luiz Inácio Lula da Silva elegeu-se presidente, no final de 2002, o preconceito era mútuo e incomparavelmente maior do que o que existe hoje. Numa Washington governada pela direita fundamentalista de Bush, congressistas republicanos ultraconversadores e uma clique de analistas saudosos da Guerra Fria fizeram de tudo para envenenar as relações bilaterais. Em cartas dirigidas a Bush e ao então secretário de Estado Colin Powell, alguns parlamentares chegaram mesmo a conclamar o executivo a agir preventivamente para impedir que o Brasil, sob Lula, formasse com a Venezuela de Hugo Chávez e a Cuba de Fidel Castro um novo “eixo do mal” – uma alusão ao “eixo do mal” original integrado pelo Iraque, Irã e Coreia do Norte, cuja existência Bush anunciou ao mundo num discurso ao Congresso, no início de 2002, e que usaria para justificar sua trágica política externa. No Brasil, por outro lado, não faltaram assessores petistas para defender uma atitude de confrontação.


A visita que Lula fez a Washington semanas antes de tomar posse e as ações de diplomatas e empresários dos dois países evitaram a trombada esperada por muitos em Brasília e Washington e abriram caminho para uma relação que, se não conseguiu aproximar posições em questões de fundo, permaneceu cordial e permitiu o lançamento de algumas iniciativas de interesse mútuo. São exemplos disso a cooperação para a propagação da produção e consumo de biocumbustíveis em terceiros países e a colaboração em projetos-piloto na África. O fator que mais contribuiu para que isso acontecesse foi a surpreendente boa relação pessoal que se estabeleceu entre Lula e Bush a partir de seu primeiro encontro na Casa Branca. A empatia entre os dois presidentes – ambos líderes intuitivos e homens afáveis – revelou-se mais importante do que as divergências ideológicas e políticas que os separavam, e a seus governos.
É plausível esperar que Lula mantenha com Obama uma relação ao menos tão cordial quanto a que cultivou com o arquiconservador Bush. Os dois líderes são ideologicamente aparentados. Ambos representam opções progressistas em seus países – fato sublinhado, no caso de Obama, pela ousada proposta orçamentária que enviou ao Congresso nos últimos dias de fevereiro, pondo um fim ao processo de privatização gradual do seguro médico federal no país. A proposta, escreveu o economista Paul Krugman, “representa uma enorme ruptura não apenas com as políticas dos últimos oito anos, mas dos últimos 30 anos”. Há também um importante paralelo entre as trajetórias pessoais de Lula e Obama que pode aproximá-los. Os dois presidentes personificam o progresso de seus respectivos países no campo da inclusão social. Nada disso é garantia de que os dois líderes se entenderão. No Brasil, há mesmo quem afirme que o refinamento intelectual de Obama, um brilhante ex-aluno de Harvard que escreveu dois livros autobiográficos antes de completar 47 anos de idade, faz dele um membro da elite americana e um político que teria problemas para entender-se com o presidente brasileiro, um político intuitivo que prima pelo estilo informal. O argumento em relação a Obama é curiosamente semelhante ao que os conservadores americanos usaram contra Obama na campanha eleitoral e ignora dados da vida do presidente americano que Lula provavelmente valoriza: a militância de Obama em atividades de mobilização e organização comunitária em Chicago, que o prepararam para o corpo-a-corpo do jogo político; e fato de sua mãe ter-se valido por algum tempo do selo alimentação – um programa federal de combate à fome entre os pobres nos EUA –, ou ainda a história da família de sua mulher, Michelle, oriunda dos guetos negros do sul de Chicago.


Seria surpreendente e no mínimo irônico se Lula, que pessoalmente se deu bem com o ultradireitista Bush, filho da aristocracia WASP na Nova Inglaterra e ex-aluno de Yale e Harvard, não conseguisse entabular um diálogo cordial e desarmado com Obama, de quem é ideologicamente mais próximo. Dois presidentes populares em seus países, Lula e Obama chegaram aonde estão porque são políticos talentosos e competentes, que entendem os mandatos que receberam das urnas e sabem que serão julgados não pela pureza ideológica de suas posições mas pelos resultados que seus governos produzirem em termos de bem-estar econômico e social. Parece razoável supor, assim, que esse é o critério que pautará a decisão que os dois presidentes tomarão em suas primeiras conversas – e que só eles podem tomar – sobre o tamanho do investimento pessoal e político que farão na relação bilateral.

Pontos cruciais da agenda bilateral


Como sugeriu a secretária de Estado Hillary Clinton em sua primeira reunião com Celso Amorim, no final de fevereiro, não será por falta de responsabilidades compartilhadas e de oportunidades para cooperar que os governos Obama e Lula deixarão de trabalhar juntos pela promoção de interesses comuns.


Grupo dos 20


A presença dos dois países no Grupo dos 20 oferece a mais importante e urgente dessas oportunidades de cooperação. Revitalizado pela crise financeira global, o g-20 financeiro reuniu-se pela segunda vez em nível de chefe de Estado no início de abril, em Londres. Trata-se de um foro que, se se mostrar efetivo, confirmará a necessidade da reforma dos órgãos de governança global, que é uma das grandes prioridades da política externa brasileira desde antes da democratização, em 1985. Há duas questões centrais para os EUA e o Brasil no processo do g-20. A primeira é se os países dominantes do sistema financeiro incentivarão uma participação substantiva e consequente de todos os membros ou tentarão usar o g-20 como foro para legitimar suas propostas de reconstrução do sistema financeiro global. Há dúvidas sobre o grau de relevância que Obama atribui a esse foro. Sabe-se, também, que a demora na nomeação do segundo escalão da administração dificultou os preparativos para a particiação dos EUA na reunião do g-20 em Londres. A segunda é se, na hipótese de uma resposta positiva à primeira questão, o governo Lula usará o g-20 com vistas a produzir dividendos políticos imediatos em casa, ou se, em lugar disso, participará das deliberações oferecendo propostas concretas de reforma do sistema.


A necessidade de conter as pressões protecionistas, que se multiplicaram com a crise, foi proclamada na primeira reunião de chefes de governo do g-20, realizada em novembro de 2008, em Washington. Desde então, vários países-membros do grupo, entre eles os EUA, a União Europeia e a Argentina, ignoraram o compromisso assumido e adotaram leis e normas protecionistas. A cláusula “Buy American” do pacote de estímulo de quase us$ 800 bilhões aprovado pelo Congresso dos Estados Unidos e sancionado por Obama em fevereiro último estipula que os produtos de ferro e aço e os demais manufaturados usados em projetos de infraestrutura financiados pelo pacote devem ser de origem americana. Cientes de que o dispositivo poderia ser o estopim de uma guerra comercial indesejável em meio a uma recessão, os assessores econômicos de Obama atenuaram consideravelmente a legislação e deram ao Executivo amplo espaço para administrar a aplicação da lei de forma a que não fira as obrigações internacionais do país ou produza efeitos recessivos. A expectativa é que Obama se associe à advertência contra o recurso ao protecionismo que deverá ser reiterada pelo g-20 em Londres.


No caso do Brasil, nação historicamente fechada e que tem apenas quinze anos de história de redução de barreiras ao comércio, isso não soará necessariamente como falsidade. A razão é que o impacto adverso do “Buy American” deverá ser amortecido pelo menos no suprimento de produtos acabados de aço. Estimativas preliminares divulgadas pelo jornal Valor Econômico em 20 de fevereiro indicaram que o efeito do “Buy American” para as exportações brasileiras será muito pequeno e fazem com que sejam consideradas remotas as possibilidades de o Brasil iniciar processo contra os EUA na Organização Mundial de Comércio, como Celso Amorim chegou a aventar. De acordo com uma projeção do Instituto Brasileiro de Siderurgia (IBS) citada pelo jornal, as restrições da legislação americana à utilização de aço importado nas obras previstas no pacote prejudicariam apenas 1,6% das exportações brasileiras de aço para os EUA.
Em entrevista ao Valor, Marco Polo de Mello Lopes, vice-presidente-executivo do IBS, disse que o setor ainda não tomara uma decisão sobre a abertura do processo, porque o impacto político da medida é importante, mas não valeria a pena pelos resultados econômicos. “A situação exige prudência. É legítimo que o governo americano invista para estimular o consumo interno. Meu grande desejo é a retomada no Brasil com aço brasileiro”, ponderou Lopes. “A questão é saber como será implementado. Existe o temor de que sirva de exemplo para outros países. Pode ter um efeito dominó.” Outras fontes do setor citadas pelo Valor afirmaram que, ao invés de beneficiar o Brasil, uma reação diplomática mais dura, como a abertura de um painel na OMC, pode gerar um mal-estar com o Congresso e acabar prejudicando os interesses da Gerdau, multinacional brasileira com unidades nos EUA. A Gerdau, que anos passou instalando uma fábrica na Califórnia para driblar o protecionismo, deve ser uma das mais beneficiadas pelo pacote de Obama. Segundo Mario Longhi, presidente da Gerdau Ameristeel, cerca de 30% das vendas da empresa são para projetos de infraestrutura. “O pacote vai nos beneficiar diretamente”, afirmou ele.


Supondo que essas avaliações sejam confirmadas pela realidade, não será o “Buy American” que impedirá que os chefes de governo reunidos no g-20 renovem a conclamação que fizeram em sua primeira reunião em favor da conclusão da Rodada Doha como parte das iniciativas necessárias para reativar a economia internacional. Trata-se da prioridade máxima da política externa de Lula desde que a China travou o processo de reforma do Conselho de Segurança das Nações Unidas, em 2005, e adiou para não se sabe quando a realização da ambição brasileira de conquistar uma cadeira permanente no principal foro político mundial.


Rodada Doha


No caso da Rodada Doha, que foi travada pela recusa dos EUA de reduzir subsídios à agricultura, não há em Washington indícios sobre o desejo de retomada das negociações e é improvável que o ambiente político doméstico permita que isso aconteça antes de a economia começar a dar sinais de vida. As novidades trazidas pela administração Obama não são, contudo, uniformemente negativas, a despeito do clima francamente desfavorável a iniciativas de liberalização comercial que prevalece hoje na sociedade americana e, em especial, entre os congressistas. Haverá, sem dúvida, um endurecimento da posição negociadora americana. A administração Obama já assinalou que a liberalização de mercados dos grandes países emergentes, especialmente China e Índia, é precondição para avanços em negociações globais. O governo democrata pretende também introduzir novos parâmetros na política comercial. Uma declaração divulgada no início de março pelo USTR, que faz as vezes de Ministério de Comércio Exterior, informa que a politica comercial americana incluirá um novo elemento de “responsabilidade social”, incluindo temas como mudança climática. “Devemos ter como objetivo tornar o comércio parte dos instrumentos para a solução dos desafios ambientais internacionais”, afirma o documento. Não está claro como isso se traduzirá, na prática. Acordos de comércio negociados pelo governo Bush com o Panamá, Colômbia e Coreia do Sul mas ainda não ratificados devem permanecer no limbo. O novo responsável pelo USTR, Ron Kirk, afirmou que o tratado negociado com a Coreia do Sul, sob protesto do sindicato dos trabalhadores da indústria automobilística, “é patentemente injusto” e que a a nova administração está preparada para abandoná-lo, se ele não for “retrabalhado”. Por outro lado, o presidente Barack Obama voltou atrás na promessa que fez durante a campanha de renegociar o Acordo Norte-americano de Livre Comércio, o Nafta, entre os EUA, Canadá e México. Ao mesmo tempo, o presidente fez várias declarações sobre a necessidade de conter pressões protecionistas.


Em seu primeiro discurso ao Congresso, o novo líder americano surpreendeu o setor agrícola ao anunciar que pretende limitar os subsídios sob a forma de pagamentos diretos à produção aos fazendeiros com receitas anuais inferiores a us$ 500 mil. A proposta, se aprovada, tiraria mais de 80 mil fazendeiros da lista de beneficiários. A receita fiscal resultante da redução dos pagamentos de subsídios agrícolas proposta pelo Executivo será usada, em parte, em programas de nutrição infantil voltados a reduzir o problema epidêmico de obesidade nos EUA e, em outra parte, no fortalecimento do Serviço Florestal, que opera sob o Ministério da Agricultura americano. Talvez isso seja insuficiente para produzir movimento em Doha. O fato é que os beneficiários do protecionismo agrícola não gostaram. “A guerra começou”, reagiu o presidente da Federação Americana das Associações de Fazendeiros, Bob Stallman, indicando o erro que comete quem parte da premissa de que a administração Obama evitará buscar um acordo na Rodada por não querer antagonizar o setor agrícola.


Etanol e Mudança Climática


O mesmo cálculo deve ser evitado no tocante à proteção federal à produção do etanol a partir do milho, nos EUA. Embora tenha manifestado seu apoio ao programa durante a campanha, e escalado para o Departamento de Agricultura Tom Vilsack, um ex-governador de Iowa, o estado que mais produz etanol nos EUA, não se deve concluir que nada mudará na política para o setor na atual administração. De acordo com o relatório final de uma comissão que o Council of Foreign Relations reuniu no ano passado, sob a presidência de Vilsack, para estudar a indústria dos combustíveis renováveis nos EUA, “remover as tarifas sobre o biocombusível importado, sobretudo do etanol de cana do Brasil, reforçaria a segurança energética dos Estados Unidos, aumentando a oferta de fontes alternativas de petróleo; poderia também, em tese, desonerar os custos da redução de emissões dos EUA de gases do efeito estufa […] já que vários biocombustíveis importados são melhores em termos ambientais do que o produto nacional”. Em fevereiro de 2007, em entrevista à CNBC, Vilsack já se mostrara aberto a criar espaço para o etanol brasileiro no mercado americano. “Precisamos encorajar pesquisa e desenvolvimento de alternativa ao (etanol de) milho”, disse ele. “Precisamos reexaminar as tarifas aplicadas ao Brasil. O objetivo final deve ser eliminar essas tarifas, trazer o etanol brasileiro, gerar demanda para o E85 (mistura de 85% de gasolina com 15% de etanol) e pressionar Detroit a produzir mais carros flex e reduzir a dependência dos EUA do petróleo”.


Em janeiro passado, uma semana antes de assumir a Casa Branca, o próprio Obama reconheceu que o etanol brasileiro é superior ao dos EUA. “O etanol de milho não é o ideal”, disse ele. “Eu sempre fui um grande defensor do etanol de milho. Venho de um estado que produz milho – Illinois. É uma boa solução para a transição, mas na verdade o etanol de milho não é tão eficiente quanto o que os brasileiros estão produzindo de cana-de-açúcar.”


Uma expansão efetiva da cooperação entre o Brasil e os EUA na área dos biocombustíveis, iniciada por Lula e Bush com a assinatura de um memorando de entendimento em março de 2007, é um dos tópicos das conversas iniciais entre o presidente e seu colega americano. Há dois fatos novos que podem contribuir para a aproximação dos dois países nesse campo. O governo Obama elevou o combate à mudança climática ao topo de sua agenda internacional. Washington passou a ver no Brasil um importante parceiro potencial nesse tópico em dezembro passado, quando o governo Lula distanciou-se da política de alinhamento automático que vinha mantendo com a China e a Índia em relação ao aquecimento global e anunciou ambiciosa meta de redução de 70% dos desmatamentos na Amazônia em dez anos durante a COP-14, a conferência das Nações Unidas sobre Mudança Climática realizada em Poznam, Polônia. De difícil mas necessária execução, a meta de redução do desmatamento tirou o Brasil da defensiva e o colocou numa posição mais consistente com a de um país que exibe a melhor matriz energética do planeta, com cerca de 50% da energia consumida oriundos de fontes renováveis. Esse número é 6% entre os membros da OCDE e 14% na média mundial. É neste novo contexto político que Lula e Obama podem chegar a um entendimento capaz de resultar num maior acesso do etanol brasileiro ao mercado americano e na realização de um dos objetivos do memorando de março de 2007: a difusão das técnicas de cultivo de cana e produção de etanol e cogeração de bioeletricidade no mundo em desenvolvimento, com ganhos potenciais importantes para as empresas brasileiras. Não menos significativos são os dividendos políticos que o país pode colher, em termos de projeção global, num tema que ganha espaço na agenda da paz e segurança internacionais e já é como tal reconhecido pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas.


É com esse promissor cenário em mente que o economista Marcos Jank, presidente da UNICA, a associação da indústria do etanol brasileiro, vem pregando que “o Brasil deve liderar o debate sobre clima”. Ele lembra que as medidas fiscais expansionistas propostas pela nova administração americana e aprovadas pelo Congresso destinam dezenas de bilhões de dólares ao desenvolvimento de fontes renováveis de energia e à reinvenção da hoje altamente poluente matriz energética dos EUA. “Os Estados Unidos se apresentarão em Copenhague com posições inovadoras, assumindo um papel de liderança nas negociações do acordo pós-Kyoto”, previu Jank em dezembro passado, em artigo no Estado de S.Paulo. “No segundo semestre de 2009, a União Europeia será presidida pela Suécia, um país exemplar na área do meio ambiente e da ampla utilização de bioenergias. O ambiente em Poznam mostrou claramente que não basta vontade política para lutar contra a mudança do clima. Estados Unidos, União Europeia, Brasil, China, Índia e Indonésia são atores centrais que precisam exercer liderança na discussão de novas metodologias e mecanismos de incentivo e em compromissos mais ambiciosos de redução de emissões.”

Transição em Cuba


O peso internacional do Brasil no campo da energia, sublinhado também pelas descobertas de importantes reservas de petróleo nos últimos dois anos, reforça o cacife do país para exercer sua crescente influência nos assuntos globais, a começar pelas Américas. Os investimentos da Petrobrás em prospecção de petróleo em Cuba e as iniciativas do governo voltadas a ajudar Havana a recuperar a indústria canavieira da ilha com vistas à produção de energia coincidem com o início do degelo da obsoleta política de isolamento do país que os EUA seguiram no último meio século. O levantamento das restrições a viagens e remessas de dinheiro à ilha impostas pelo governo Bush é esperado para o primeiro semestre de 2009. A evolução recente da política interna cubana, num rumo que aponta para reformas econômicas na ilha, e a sinalização de desejo de diálogo com Obama, feita pelo presidente Raul Castro, respaldam a posição dos empresários e dos setores da sociedade americana favoráveis a um normalização das relações com Cuba. O Brasil, que deu os primeiros passos em favor da reintegração da ilha nos órgãos de representação política das Américas durante a cúpula de líderes da América Latina e Caribe, realizada em Sauípe, em dezembro passado, tem interesse na aproximação entre Washington e Havana e pode contribuir para que ela aconteça, conforme indicaram fontes oficiais cubanas em artigo recente publicado pelo diário espanhol El País.


Estabilidade na América do Sul


Maior fornecedora regional de petróleo para o mercado americano, a Venezuela de Hugo Chávez pode beneficiar-se de um bom entendimento entre Lula e Obama, com bons efeitos também para os EUA. As declarações de Chávez, dando “luz verde” a Lula para facilitar a abertura de uma linha de comunicação entre seu governo e o líder americano, atestam o trânsito internacional do Brasil e apontam para a possibilidade de o líder venezuelano deixar de ser uma fonte constante de irritação para Washington, quando não para Brasília. Isso e o interesse permanente do Brasil na manutenção da estabilidade política na América do Sul auguram uma conversa produtiva entre os líderes do Brasil e dos EUA. Não haverá queixas em Washington se o governo Lula e a administração que o suceder, em janeiro de 2011, derem à Bolívia, ao Paraguai e à Argentina a atenção correspondente ao interesse nacional brasileiro nesses três países, que é maior do que o dos EUA. A aproximação recente do Brasil e da Colômbia, impulsionada pelo relativo sucesso do governo Uribe na campanha contra os narcoguerrilheiros das FARCs e pela percepção de que o tráfico de drogas ilícitas e suas repercussões são um problema também do Brasil, tende a diminuir o potencial para que a assistência de Washington a Bogotá gere atritos com Brasília.


Cooperação na África


Filho de um queniano, Obama tem interesse no aprofundamento da cooperação dos EUA com a África. O investimento que o governo Lula fez nas relações com países africanos e a presença significativa de empresas globais brasileiras no continente tornam a África uma área propícia para ações coordenadas de cooperação. Há precedentes. Duas dessas ações foram levadas adiante nos últimos três anos em projetos-piloto que o Brasil e os EUA patrocinaram na Guiné-Bissau, para o aprimoramento institucional do país, e em São Tomé, no combate à malária. A propagação do biocombustível é uma área natural para a cooperação entre os dois países na África, além da saúde, em que o Brasil já atua e na qual existe interesse de fundações beneméritas dos EUA e de outros países no envolvimento brasileiro.


Energia nuclear


Energia está também na raiz de um tema que pode-se revelar o mais difícil e complexo das relações entre o Brasil e os EUA nos anos à frente. O retorno dos democratas ao poder trouxe de volta aos círculos do poder em Washington defensores de uma estratégia mais robusta de controle do uso pacífico do átomo em nome do combate à proliferação nuclear. Nos primeiros anos do governo Bush, proponentes dessa estratégia chegaram a ensaiar uma ofensiva contra o programa brasileiro de enriquecimento de urânio. Alguns chegaram a sustentar que Washington deveria pressionar Brasília a não ativar a usina de Resende, que opera sob plenas salvaguardas internacionais, sob o argumento de que a entrada em linha da planta brasileira de enriquecimento de urânio minaria a ofensiva internacional contra o programa nuclear iraniano, sobre o qual pesa a suspeita de ter um forte componente militar.


A Casa Branca rejeitou a sugestão e o então secretário de Estado chegou a dizer que “o Brasil é parte da solução e não do problema”. Esse mesmo argumento poderá ser aventado com o objetivo de atrair o país para um esquema hemisférico de cooperação sobre o uso pacífico de energia nuclear. A proposta, que existe em diferentes versões e motiva hoje estudos técnicos de especialistas, tem por objetivo final a criação de um banco internacional de combustível físsil. Uma de suas versões consta de recomendação incluída no relatório da Fundação Brookings, já mencionado. “A demanda crescente por energia nuclear aumentará os riscos de proliferação e requer uma maior supervisão internacional do enriquecimento de urânio e do reprocessamento do combustível nuclear utilizado”, afirmam os membros da comissão, presidida pelo ex-presidente do México, Ernesto Zedillo, e pelo ex-subsecretário de Estado para assuntos políticos, embaixador Thomas Pickering. Dois brasileiros, o ex-chanceler Celso Lafer e o presidente da Fundação Getúlio Vargas, Carlos Ivan Simonsen Leal, integraram a comissão que produziu o documento.
O texto propõe que os EUA, em cooperação com outros países do hemisfério, incluindo o Brasil e o Canadá, estabeleçam uma moldura e um diálogo para assegurar que estados não detentores de armas nucleares tenham acesso “à energia nuclear civil” mas observem, ao mesmo tempo, “salvaguardas apropriadas para evitar o desvio de tecnologia e materiais nucleares para propósitos militares”. De acordo com o relatório, temas-chave em relação aos quais “é necessário um consenso hemisférico” incluem “um acordo sobre o banco internacional de combustível nuclear, a supervisão internacional do ciclo do combustível e do reprocessamento do combustível utilizado e a aceitação universal de um protocolo adicional sobre inspeções e o manejo efetivo do lixo nuclear”.


Vários aspectos da proposta, se e quando for apresentada, são vistos com ceticismo em Brasília. E é provável que continuem a sê-lo mesmo na hipótese de o governo Lula ser sucedido pela oposição. Na ausência de uma política mais consequente sobre desarmamento, que é a outra perna necessária de qualquer política de não-proliferação que pretenda ter credibilidade, o Brasil até agora não acolheu a ideia do banco internacional de combustível nuclear. A eventual aceitação de métodos mais invasivos de inspeção das instalações nucleares do país, previstos num protocolo adicional ao Tratado de Não Proliferação que vem sendo negociado há anos, esperará até que os signatários do TNP consigam entender-se. A última conferência de revisão do tratado, realizada em 2005, terminou em fiasco. E desde então o governo brasileiro confirmou o acordo de cooperação em defesa com a França, que inclui a instalação de um reator nuclear em um de cinco submarinos que o país construirá nos próximos anos.


Um fator crucial na evolução da posição do governo Obama nesse assunto será o sucesso ou o fracasso de seus esforços para abrir um canal de diálogo com Teerã, que é parte da estratégia mais ampla de Washington no Oriente Médio. Nesse capítulo, a presença do Brasil entre os atores coadjuvantes na região, ilustrada pela participação do país no processo de paz iniciado na conferência de Anápolis, em 2007, e pelo giro que Celso Amorim fez pela região no final de 2008, sugere uma pergunta que gera perplexidade entre especialistas no Brasil e por ora não tem resposta. Trata-se de saber se a atual administração continuará a acolher solicitação de outros atores – no caso, a Autoridade Palestina – para que o Brasil seja incluído.


Conclusão


Independentemente da qualidade do diálogo que Obama e Lula entabularem e das orientações que derem às suas administrações sobre como tratar as relações entre o Brasil e os EUA, a variável que determinará a qualidade e a substância do diálogo bilateral é controlada apenas em parte pelos líderes. Ela depende fundamentalmente da duração da atual recessão global, da qualidade das respostas que os países darão a ela e da capacidade do governo de coordenar suas ações. Para os presidentes dos EUA e do Brasil, entender-se sobre isso será um bom começo.

Paulo Sotero é jornalista, professor visitante da Universidade de George Washington e colaborador do jornal O Estado de S.Paulo, do qual foi correspondente na capital americana entre 1989 e 2006. Dirigiu por 14 anos, o Brazil Institute, do Woodrow Wilson International Center for Scholars, no qual permanece como pesquisador sênior.

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

Cadastre-se para receber nossa Newsletter