Tecnologia Para Quê? Democracia e Autoritarismo em Tempos de Manifestações
Introdução
Com as manifestações de junho, no Brasil, muito se tem discutido acerca do papel da internet e das redes sociais na articu-
lação de movimentos sociais, protestos e mani- festações. A discussão, entretanto, precisa ir além disso. Internet, redes sociais e diversos ou- tros recursos tecnológicos, já disponíveis ou em desenvolvimento, servem não apenas como faci- litadores para as organizações da sociedade, mas também como fontes de dados valiosíssimas, para empresas e governos.
O uso dessas novas tecnologias é, sem dúvi- da, um facilitador para as mobilizações. Mas pode também representar um risco em direção a uma sociedade de controle, na qual a assimetria de informações entre a população, de um lado, e empresas e governos, de outro, termine por afe- tar o equilíbrio entre as forças componentes do estado democrático.
A título de exemplo, de acordo com estudo de 2012 da Intel1, em um único minuto são gerados na internet mais de 6 milhões de visualizações de postagens no Facebook. Mais de 200 milhões de e-mails são enviados. Mais de 2 milhões de pesquisas são realizadas no Google. E o número de dispositivos conectados irá dobrar até 2015. Isso sem considerar todos os dados que fornecemos para as empresas de telefonia móvel, para os bancos, para os supermercados com seus cartões de fidelidade.
- Disponível em http://scoop.intel.com/files/2012/03/ infographic_1080_logo.jpg [acesso em 01.09.2013]
Tais dados são importantes, não há dúvida. Não é à toa que o governo norte-americano está construindo para a NSA – National Security Agency (responsável pelo programa Prism), o maior data center já feito.
A questão que se coloca, então, é: toda essa grande variedade tecnológica acabará por servir a quem? À população e às suas organizações es- pontâneas? Ou às empresas e aos governos?
Os movimentos sociais
Diante de um quadro de mobilização social sem precedentes em território nacional, é tentador buscar comparações com os movimentos que eclodiram em países árabes, na Espanha e nos Es- tados Unidos. A comparação, entretanto, é extre- mamente perigosa, dadas as diferenças culturais, políticas e econômicas em cada caso concreto. Com efeito, em cada um destes locais, o estopim para a mobilização das massas foi diferente. En- tretanto, em todos os casos, o papel das novas tec- nologias é reconhecido como fundamental.
Atribuir à tecnologia um papel fundamental na viabilização das grandes manifestações não siginifica, contudo, afirmar que é a tecnologia que está a provocar convulsões sociais e mani- festações. Tampouco é o mesmo que dizer que
em cada um dos casos a tecnologia foi utilizada da mesma forma por um ou mais grupos com pa- pel de protagonismo político durante o período de reivindicações.
Trata-se tão somente de reconhecer que as novas tecnologias (entre as quais, a internet), constituiram-se numa infraestrutura necessá- ria, mas não suficiente, para que fosse disse- minada entre as mais diversas pessoas a sen- sação de comoção generalizada capaz de fa- zer com que milhões de pessoas fossem às ruas protestar.
As tecnologias de informação e comuni- cação foram capazes de modificar o modo de produção e compartilhamento da informação, desenhando um novo equilíbrio (ainda inde- finido) entre as forças políticas tradicionais, a mídia, o Estado e as emergentes insatisfa- ções populares.
A tecnologia que serve como aliada para a organização de grandes protestos que fortalecem a democracia pode ser utilizada com fins autori- tários contra os cidadãos.
O presente artigo não tem a pretensão de es- gotar o assunto ou resolver os dissensos e dispu- tas em torno da interpretação das manifestações de junho. Buscará, entretanto, elucidar alguns pontos importantes sobre a natureza da nova in- fraestrutura tecnológica com o objetivo de con- tribuir para a compreensão dos processos que estão por trás da emergência dos grandes protes- tos ocorridos no Brasil.
Observando as caracterísitcas das novas tec- nologias, é possível extrair alguns importantes insights sobre a forma de produção e de dissemi- nação das insatisfações que tomaram o País, a diversidade política que os protestos comporta- ram e a pressão gerada sobre as instituições polí- ticas tradicionais.
Por outro lado, eventos recentes nos Estados Unidos e no Brasil (para ficar em poucos exem- plos) indicam que a disputa em torno de qual fi- nalidade o Estado dará ao uso da tecnologia ain- da está longe de ser resolvida.
A questão está em aberto: tecnologia para quê?
1. A tecnologia para a democracia
O mercado brasileiro de telecomunicações cresceu, no ano de 2012, a uma taxa de 6,5% em relação ao ano de 2011, chegando a uma Receita Operacional Bruta de R$ 214,7 bilhões, segundo dados da Associação Brasilei- ra de Telecomunicações (Telebrasil). O desem- penho do setor, como se pode notar, é bastante superior ao do PIB nacional, que avançou menos de um ponto percentual (0,9%) em igual período. Estes dados ilustram o dinamismo do setor de telecomunicações e das tecnologias de informa- ção e comunicação (como computadores, telefo- nes móveis, tablets, roteadores, data centers, etc.). Movido pela inovação, o setor tem possibi- litado novas formas de comunicação a empresas e consumidores, permitindo que sejam estabele- cidas novas formas de relacionamento, em qual- quer esfera, a partir das Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs).
Ao ampliar a capacidade de comunicação e, por consequência, a autonomia dos cidadãos, as TICs desempenharam um papel de infraestrutura funda- mental para a eclosão das manifestações de junho.
a) Ampliação da autonomia individual
Alguns estudiosos, como Yochai Benkler, adotam uma postura otimista diante da evolução tecnológica. Em suas obras, dedicaram-se a des- crever as formas como as novas tecnologias in- crementaram a autonomia dos indivíduos, quer para fins exclusivamente pessoais ou para a cola- boração com outros indivíduos.
Para Benkler, a economia da informação em rede (conceito por ele desenvolvido na obra The Wealth of Networks) incrementa as capacidades do indivíduo em três dimensões: i) amplia sua capacidade de fazer mais para e por si próprio; ii) incrementa sua capacidade de fazer mais por meio de relações soltas/frouxas, ou seja, sem ser constrangido a se organizar por meio do mercado ou por modelos hierárquicos tradicionais; e iii) amplia a capacidade de ação de indivíduos em organizações que operam fora do mercado.
Para fins de compreensão das manifestações de junho, é predominantemente interessante analisar o ponto ii, ainda que elementos dos pontos i e iii se- jam importantes para entender de maneira comple- ta a forma como as tecnologias digitais e a rede mundial de computadores afetam nossas vidas.
Um dos pontos mais surpreendentes da efer- vescência política contida nas manifestações de junho foi o rápido crescimento e encolhimento dos protestos. Se observarmos o fenômeno a par- tir da lógica de comunicação estabelecida no sé- culo XX – batizada por Benkler de Economia Industrial da Informação e organizada a partir da mídia tradicional e dos meios de comunicação em massa –, seria de se imaginar que a capacida- de de aglutinar grandes multidões dependeria de uma vasta estrutura organizacional, grandes es- forços de comunicação, cooperação da grande mídia, bem como a clara liderança de uma ou várias organizações e personalidades em torno da pauta comum de protesto.
Excluido o protagonismo do Movimento Pas- se Livre (bastante relativizado com a ampliação dos protestos), as demais condições não se fize- ram presentes. Até mesmo a pauta comum dos protestos (o preço das passagens de ônibus) di- luiu-se em meio a outras reivindicações.
Diante da ausência dos requisitos necessários para mobilizar tamanho contingente de pessoas, que aspecto das novas tecnologias de comunica- ção e informação teria possibilitado a rápida or- ganização dos grandes protestos?
A análise de Benkler aponta para uma reorga- nização das estruturas de comunicação, que per- mitiu, entre outras coisas, uma maior desinter- mediação2 dos discursos e discussões sobre os rumos da coletividade, a redução dos custos de comunicação e a aceleração da velocidade da disseminação de informação.
- O uso da expressão desintermediação não significa ignorar o que houve. Na realidade, foi uma reintermediação dos discursos. Na nova sociedade da informação, os grandes meios de comunicação em massa perdem parte de sua relevância para os provedores da infraestrutura de telecomunicações (teles) e para os provedores de serviços on-line (redes sociais, serviços de transmissão de mensagens, imagens e vídeos, provedores de e-mail, etc.)
É a partir destas caracterísiticas que a rede mundial de computadores e as tecnologias di- gitais tornaram possível a rápida reunião e a atuação em rede de indivíduos com interesses comuns, permitindo o que o autor chamou de loose affiliation (ou associação solta/frouxa) de indivíduos.
Para Benkler, a internet e a comunicação em rede permitem aos indivíduos se filiarem de ma- neira temporária e informal a causas, grupos ou projetos, viabilizando a cooperação independen- temente da necessidade de constituir relações de longo prazo por meio da participação em organi- zações formais (como sindicatos ou partidos).
Uma adequada explicação para a rápida eclo- são dos protestos, portanto, deve considerar não apenas os fatores sociológicos e culturais envol- vidos na produção da insatisfação generalizada que conduziu a população às ruas, mas, também, a forma como a insatisfação com os mais diver- sos temas foi capaz de ressoar e ser reafirmada nas diversas redes de indivíduos que, graças à nova organização em rede, puderam se afiliar de maneira efêmera para sair em protesto.
Uma vez aplacada a insatisfação que mobili- zou os diversos grupos de indivíduos, os laços que os uniram para o fim de protestar podem se desfazer de maneira quase tão veloz quanto a que os constituiu. Contudo, isso não quer dizer que estes laços não possam se reconstituir em novas situações, especialmente se se replicarem as con- dições materiais, políticas e econômicas que per- mitiram a aglutinação de redes distintas de pes- soas em torno de múltiplas bandeiras, como po- derá ser observado mais adiante.
- Rede de redes e ressonância das insatisfações Outro aspecto da infraestrutura de comunica- ções que merece ser destacado para buscarmos uma melhor interpretação dos protestos de junho diz respeito ao fato de a internet possuir a carac- terística de ser uma rede de redes, ou seja, fun- cionar tecnicamente como um agrupamento de diversas redes que se comunicam através de protocolos comuns.
Tal fato, entretanto, não se limita às especifi- cações técnicas da rede mundial de computado- res. Da mesma forma que a internet caracteriza-se por ser uma rede de redes, a tecnologia e as aplicações e serviços prestados sobre esta infra- estrutura aproximam os diversos grupos sociais, independentemente da distância física, reduzin- do de maneira drástica os custos do compartilha- mento das informações e possibilitando uma in- teração entre diversos grupos distintos. Tal fato permite que informações antes restritas a deter- minados grupos possam ser replicadas rapida- mente por todo o tecido social e humano que constitui um Estado.
Pode-se argumentar que o mesmo seria possível antes da rede mundial de computado- res e das tecnologias digitais, graças aos meios de comunicação em massa. Entretanto, como já afirmado anteriormente, a internet e as tecnologias digitais criam as condições para a desintermediação do fluxo comunica- cional, liberando a circulação de informações da necessidade de autorização dos chamados gatekeepers (aqueles que decidem o que pode e o que não pode ser publicado) e a um custo muito mais baixo.
Diante disso, não constitui um exagero afir- mar que a internet atua como ponte que interliga os diversos grupos sociais presentes na rede, des- de os que se colocaram na linha de frente das manifestações por um transporte gratuito até os que sequer conheciam a proposta.
A força e o poder da internet para promover o compartilhamento e a circulação de informação devem, contudo, ser ponderadas pelo fator hu- mano. Como sabemos, a maioria dos tópicos e discussões não possui força suficiente para ultra- passar a barreira de aceitação social existente nos diversos grupos e replicar-se pelas várias redes de pessoas que compõem a sociedade (manifes- tações pró-aborto, por exemplo, não circulam com facilidade em meio a grupos religiosos). Do contrário, opiniões, via de regra, ficam presas dentro da mesma rede de interesses comuns em que foram originadas.
Esta questão é extremamente importante. Por que as manifestações de junho conseguiram rom- per estas barreiras e atingir um amplo espectro de pessoas, com opiniões diversas e pertencentes a grupos distintos? Haveria, afinal, um ponto co- mum capaz de unir todos os manifestantes que tomaram as ruas?
Este ponto tem sido um dos mais discutidos na mídia e por meio de artigos de opinião, quiçá no anseio de que seja apontado um conteúdo pro- gramático ou uma pauta comum de todos os ci- dadãos que saíram em protesto. Compreender quais reivindicações estariam por trás da grande mobilização, outrossim, interessaria a governan- tes e partidos, de modo a viabilizar a construção de uma resposta política inequívoca aos protes- tos, indicando que “a voz que vem das ruas” está realmente sendo ouvida e que as demandas cole- tivas serão, de fato, endereçadas.
Este esforço de análise mostrou-se, na maior parte das ocasiões, improdutivo. Isso porque as manifestações foram capazes de mobilizar cida- dãos dos mais diversos espectros políticos, a par- tir de causas e motivações distintas.
A prova da diversidade de motivações pôde se verificar ao observarmos grupos antagônicos marchando lado a lado, como aqueles que con- testavam a ordem institucional vigente e a repre- sentação partidária, clamando por uma manifes- tação “sem partido”, e os próprios integrantes de partidos, que chegaram a ser hostilizados em al- gumas ocasiões. De igual forma, foi possível ob- servar a tensão entre alguns manifestantes que promoveram a dilapidação de instituições públi- cas e privadas (notadamente as financeiras) e aqueles que discordavam da prática e compreen- diam que qualquer tipo de ação violenta repre- sentaria a desqualificação do movimento.
Em livro lançado recentemente no Brasil, chamado “Redes de Indignação e Esperança – Movimentos Sociais na era da Internet”, Manuel Castells fornece importantes insumos para que possamos compreender este fenômeno.
Para Castells, as manifestações de grande proporção observadas no Brasil e no mundo muitas vezes têm seu estopim a partir de emoções pro- vocadas “por algum evento significativo que aju- da os manifestantes a superar o medo e a desafiar os poderes constituídos apesar do perigo inerente a suas ações”.
Castells cita como exemplo a autoimolação por fogo de Mohamed Bouazizi, vendedor am- bulante da Tunísia, como um “último grito de protesto contra a humilhação que era para ele o repetido confisco de sua banca de frutas e verdu- ras pela polícia local, depois de ele recusar-se a pagar propina”. O evento, registrado em vídeo pelo seu primo, replicou-se rapidamente pela in- ternet, estimulando novas ações semelhantes e fazendo emergir a indignação coletiva, que aca- bou por desencadear diversas demonstrações nas capitais e nas províncias tunisianas.
O autor explica que, somente por meio da superação do medo do perigo, que ações de pro- testo naturalmente contêm, as grandes manifes- tações puderam se constituir. Tal superação, na opinião do autor, se daria por compartilhamento e identificação coletiva e recíproca de senti- mentos de revolta, raiva e indignação, ativando e mobilizando os indivíduos a agir a partir de suas emoções.
A ação coletiva, portanto, se daria muito mais pelo compartilhamento de um sentimen- to comum, do que pela unidade em torno de um conteúdo programático a ser reivindicado.
Diante disso, merece ser observado o fato de que internet e os serviços de redes sociais e de vídeo serviram como importante catalisador des- te sentimento comum ao permitirem a rápida dis- seminação e o diálogo sobre os eventos que ante- cederam as manifestações no Brasil (notadamen- te a violência policial), ao possibilitarem a resso- nância do sentimento de indignação individual, reforçando a sensação de injustiça entre a popu- lação e impulsionando a coletividade a agir.
É importante destacar este papel de “caixa de ressonância” das redes sociais, por meio da qual os seus usuários testam hipóteses argumentativase reafirmam suas opiniões por meio do diálogo com seus pares.
Cabe ressaltar, entretanto, que este papel não é desempenhado, necessariamente, a favor da mobilização política. Em grande parte do tempo, o que se pode observar nestas redes é a mera repercussão dos conteúdos exibidos nos grandes meios de comunicação em massa. Uma breve análise, em qualquer dia e horário, dos trending topics (assuntos mais comenta- dos) do twitter brasileiro revela a força que a grande mídia ainda possui para pautar as dis- cussões da sociedade.
Tal constatação nos leva a crer que, no caso específico das manifestações de junho, a mídia tradicional possuiu um papel importante ao re- forçar a indignação coletiva manifestada nas mí- dias sociais. Uma breve análise da cronologia dos eventos confirma esta hipótese.
No início, entretanto, parte da mídia adotou postura bastante refratária aos protestos, como demonstra o emblemático e agressivo editorial do jornal Folha de S. Paulo do dia 13 de junho de 2013, intitulado “Retomar a Paulista”3. Nesse editorial, o jornal desqualificou a manifestação organizada pelo Movimento Passe Livre e con- vocou o uso da repressão policial.
A dura repressão atingiu não apenas os ma- nifestantes mais exaltados, mas também jorna- listas, moradores e transeuntes. Nos dias se- guintes, registros em vídeo realizados a partir de telefones celulares e câmeras digitais (tecno- logias tão importantes quanto a internet no de- senvolvimento do sentimento de insatisfação geral) denunciaram a violência desproporcional das forças policiais.
Já no dia 14 de junho, grande mídia, jor- nalistas independentes, blogueiros e redes so- ciais ecoaram protestos contra a despropor- cional ação repressora do Estado, cada qual servindo como meio de repercussão para a indignação dos demais. Os protestos ingressaram na pauta em todos os canais de comu- nicação, criando as condições para que o nú- mero de manifestantes fosse significativa- mente ampliado, quase que independente- mente das causas e das reivindicações que os originaram. Redes on-line e offline, preexis- tentes e formadas no curso do movimento, constituíram-se e se uniram.
- Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ opiniao/113690-retomar-a-paulista.shtml [acesso em 01.09.2013]
As novas tecnologias tiveram papel funda- mental na documentação de todos os abusos. Mas a mídia tradicional emprestou força impor- tante para a catalização de todo o processo que deu origem às megamanifestações.
2. A tecnologia para o controle
Como visto, o uso das novas tecnologias pode desempenhar papel importante na ar- ticulação da população em torno de um debate mais maduro sobre o futuro da coletividade, bem como na mobilização dos cidadãos para lutar por direitos. Por outro lado, a mesma infraestrutura tecnológica pode servir para reforçar posições dominantes dos poderosos e tornar ainda mais vulneráveis os mais fracos.
O uso da tecnologia vem sendo incorporado ao Estado não apenas para viabilizar processos democráticos e tornar a gestão da máquina públi- ca mais eficiente, mas também para monitorar e fiscalizar o comportamento dos cidadãos.
Diversos órgãos, nesse sentido, têm adotado mecanismos de monitoramento das vias públi- cas, com o propósito de identificar problemas de tráfego de veículos, bem como de garantir a se- gurança dos cidadãos.
Esta tendência deve ser radicalizada nos próximos anos. Com cada vez mais dispositi- vos conectados à rede, os cidadãos estarão per- manentemente gerando dados sobre seus hábi- tos de consumo, saúde, preferências políticas, locais que frequentam, redes de relacionamen- to, etc. Com a evolução das técnicas de trata- mento de dados, empresas e governos terão total condição de extrair um perfil detalhado de cada indivíduo.
A título de exemplo: órgãos governamentais já adotam softwares de monitoramento de redes sociais e sites para indicação de temas de inte- resse público ou do governante. Tratando ape- nas da coleta de dados públicos, sem envolver qualquer questão de violação de regras de pri- vacidade, os órgãos púbicos conseguem agregar postagens de redes sociais, de sites, blogs e ou- tros, inclusive identificando os autores. Esses dados, isoladamente, podem não dizer muita coisa. Agregados, entretanto, podem represen- tar valiosa fonte de informações.
Imaginemos que as postagens de determinado cidadão em redes sociais contenham palavras con- sideradas “relevantes”, tais como “manifestação”, “greve”, “protesto”, entre outras. Cruzando tais dados com outros, como, por exemplo, os cadas- tros junto aos órgãos públicos, pode-se obter en- dereço, telefone, estado civil e até mesmo hábitos de consumo –, considerando que as notas fiscais eletrônicas permitem relacionar estabelecimentos e produtos ao cidadão por meio de seu CPF.
Essa situação é bastante mais grave quando incluímos os dados pertencentes a empresas. Bancos, por exemplo, são capazes de saber quem são nossos empregadores, quais os nos- sos salários e hábitos de consumo – note-se que os bancos sabem em quais estabelecimen- tos os cartões de crédito ou de débito são utili- zados, os horários, os valores. Empresas de telefonia móvel são capazes de saber nossa localidade por meio dos celulares que carrega- mos. Supermercados conseguem deduzir, sem grandes dificuldades, diversos detalhes da vida pessoal de cada cliente apenas com a análise do uso dos cartões de fidelidade. Um cliente que compra fraldas e talco, com certeza, tem filhos pequenos.
Mas, engana-se quem pensa que essa base de dados pode ser utilizada apenas para publici- dade direcionada. Ela pode, também, ser utili- zada para determinar investimentos, desenvol- vimento de produtos ou até mesmo para conhe- cer seu consumidor melhor do que ele conhece a si próprio.
O governo norte-americano, com certeza, não construiu o maior data center do mundo para a NSA a fim de produzir propaganda direcionada.
Esta realidade, como dito, pode realçar a condição de vulnerabilidade dos cidadãos dian- te dos Estados, bem como de consumidores diante de empresas. Nesse sentido, a assimetria de informações – tudo se sabe sobre os indiví- duos, mas pouco se conhece sobre grandes cor- porações e governos – cria condições para gra- ves abusos.
No que diz respeito ao exercício dos direitos democráticos, entre os quais se inclui o sagrado direito de protestar, a nova condição tecnológica pode favorecer o controle daqueles que desem- penham um papel catalisador na articulação de protestos, especialmente em governos que pos- suam um viés autoritário.
Como visto recentemente, com a divulgação por Edward Snowden, em maio de 2013, das práticas de espionagem e vigilância promovidas pela National Security Agency (NSA), dos Es- tados Unidos, a violação em massa de direitos humanos (notadamente a privacidade e a liber- dade de expressão) foi perpetrada não por um Estado autoritário, mas pelo governo de um país dito democrático e com o objetivo princi- pal (mas não único) de estender os mecanismos de vigilância e monitoramento sobre os cida- dãos de todo o mundo.
A confrontação deste episódio com as mani- festações de junho é extremamente interessante por colocar, lado a lado, correntes opostas acerca do papel das tecnologias de informação e comuni- cação no avanço ou no retrocesso da democracia e de suas instituições. De um lado, a visão otimista que afirma que as tecnologias desempenharão um papel fundamental na promoção da diversidade e da democracia, corroendo as bases de regimes au- toritários. De outro, a visão pessimista que reafir- ma a capacidade de vigilância dos Estados e sua incontrolável tendência ao autoritarismo.
Se não há uma resposta clara e inequívoca para esta questão, há algumas evidências de que o uso da tecnologia para o controle de movimen- tos sociais não é uma peculiaridade estrangeira. Reportagem de O Estado de S. Paulo4, do dia 19 de junho de 2013, expôs a reação do governo fe- deral aos protestos. Segundo a notícia, o governo federal destacou oficiais de inteligência para mo- nitorar redes sociais e serviços de mensagens com o intuito de acompanhar a movimentação dos manifestantes.
Mais do que isso, informa a reportagem que “o potencial das manifestações passou a ser medido e analisado diariamente pelo Mo- saico” (sistema que teria sido criado pela Abin para acompanhamento on-line de cerca de 700 temas, definidos pelo Gabinete de Se- gurança Institucional da Presidência da Re- pública). Atualmente, entretanto, há pouquís- sima informação pública e disponível sobre este sistema, deixando-o distante de qualquer escrutínio público.
As iniciativas de controle e vigilância deri- vadas das manifestações não se restringiram ao governo federal. No estado do Rio de Janeiro, o governador Sergio Cabral editou o Decreto Es- tadual n° 44.302, de 19 de julho de 2013, crian- do uma Comissão Especial de Investigação de Atos de Vandalismo em Manifestações Públi- cas, com poderes para solicitar informações de operadoras de telefonia e provedores de inter- net. Em seu artigo 3°, parágrafo único, o decre- to estabelecia prazo de 24 horas para as empre- sas repassarem os dados solicitados à Comis- são, sem fazer qualquer referência ao devido processo legal necessário para a quebra de sigi- lo das comunicações.
Diante de protestos e reclamações, o gover- nador publicou, no dia 25 de julho de 2013, o Decreto Estadual n° 44.305, que indicou ser ne- cessário observar “a reserva de jurisdição exigi- da para os casos que envolvam quebra de sigilo”.
Nesse contexto, cabe a pergunta: como os órgãos governamentais brasileiros atuam em rela- ção aos seus cidadãos?
- Disponível em: http://www.estadao.com.br/ noticias/cidades,abin-monta-rede-para-monitorar- internet,1044500,0.htm [acesso em 30.08.2013]
Os casos acima mencionados são ilustrativos das ameaças embutidas nas mesmas tecnologias que podem promover a democracia. Como o caso Snowden demonstrou, o uso dessas tecnologias, para fins de vigilância fora do controle democráti- co, é viável e já pode estar ocorrendo. A tecnologia de controle já existe e continua sendo aperfeiçoada para ser capaz de processar grandes (e cada vez maiores) quantidades de informação (big data).
Reside neste ponto outra importante ameaça à privacidade dos cidadãos.5 Por meio do trata- mento de dados (cruzamento de informações co- letadas), cada vez mais será possível traçar um perfil completo dos usuários das tecnologias de informação e comunicação.
Toda essa experimentação de controle dos cida- dãos por parte do Estado, importa ressaltar, pode es- tar ocorrendo no Brasil. E, o que é pior, em um am- biente jurídico que não estabelece as mínimas salva- guardas para os indivíduos. Enquanto países como os EUA possuem leis de proteção à privacidade há mais de 30 anos, o Brasil apresenta apenas algumas legislações esparsas e pontuais sobre o tema.
3. Considerações finais
Diante de fatos tão grandiosos como as ma- nifestações ocorridas no Brasil e a viola-
ção em massa dos direitos de cidadãos de todo o mundo, é difícil adotar uma posição ponderada em relação às novas tecnologias.
Entretanto, é precisamente isso que se espera de nós. Os próximos anos definirão, entre outras coisas, qual o regime jurídico que se aplicará às tecnologias de informação e comunicação, os contornos do direito à privacidade, os direitos ci- vis dos cidadãos na internet e o conceito de neu- tralidade de rede. Não se trata da regulação de um mercado qualquer, mas da economia da in- formação, que definirá se vivemos em um País verdadeiramente democrático ou não.
Nesse contexto, o alerta de Evgeny Morozov na introdução do seu livro “Net Dellusion” é mais do que necessário. Não podemos nos iludir com a utopia de que a internet, por si só, irá rea- lizar a tarefa de fortalecer a democracia contra regimes autoritários.
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