05 abril 2024

Tempos de insegurança jurídica

O advogado Joaquim Falcão e o procurador de Justiça
Roberto Livianu avaliam que o atual mundo de inconstância, de mudanças frenéticas, de instabilidade climática e com o império do digital trouxe uma avalanche de paradigmas que, nesse tempo de avidez, põe a democracia em xeque: “Será que já não é instituição vetusta para o mundo moderno e rápido? Não seria o príncipe, em todo seu monocratismo por excelência, aquele mais capaz de responder com a celeridade exigida?”

Por: Joaquim Falcão e Roberto Livianu

Revolução Francesa e Iluminismo são divisores de águas para a humanidade em diversos campos, sendo relevante sempre lembrar que, a partir daí, são reconfiguradas as relações entre Estado e Igreja, estabelecendo-se o estado laico e colocando-se o Homem como figura central das relações jurídicas, sociais, econômicas e políticas.

Pilares do constitucionalismo moderno, as ideias da tripartição do poder entre Executivo, Legislativo e Judiciário, concebida por Montesquieu, e o derivado princípio da separação dos poderes, de importância capital na nossa Constituição de 1988, são conceitos absolutamente consolidados nas democracias modernas.

1. Freedom House: mundo menos seguro e menos democrático

Segundo o Freedom House, o mundo está menos seguro e menos democrático. O pluralismo está sob ataque de líderes autoritários que ascenderam ao poder nos últimos anos. O ano de 2023 marcou o 18o ano consecutivo em que as liberdades civis e políticas se encontram em declínio ao redor do mundo, causando erosão na democracia.

Ao contrário do mainstream, a crise da democracia não é apenas política ou cultural – é de exclusão democrática, de exclusão da participação, do silêncio imposto, da pobreza, da falta do mínimo digno existencial, da falta de um lugar para se morar e ter família.

Há incerteza em quase todos os aspectos da convivência, inclusive na democracia. Não somente em escala global, mas nacional e local. Poucos Estados, poucas comunidades escapam dela. Estamos todos como Diógenes: com uma lanterna à procura de como a vencer. Vivemos a certeza da incerteza.

O mundo da inconstância, das mudanças frenéticas, da instabilidade climática, de revoluções tecnológicas sucessivas e – agora – do império do digital e do despontar da inteligência artificial trouxe uma avalanche de paradigmas originais.

Nesse tempo de rápidas mudanças, a única certeza de fato é o incerto. O futuro é um borrão. O que vai mudar? Quando vai mudar? Quem vai mudar? A democracia é posta em xeque. Será que já não é instituição vetusta para o mundo moderno e rápido? Não seria o príncipe, em todo seu monocratismo por excelência, aquele mais capaz de responder com a celeridade exigida?

Nosso sistema de separação de poderes respira há muitos anos por aparelhos, não obstante termos ganhado uma batalha, conseguindo pelo caminho democrático interromper o processo de autocratização antes do colapso, segundo o estudo do Instituto V-Dem, que acaba de ser publicizado por estudiosos de Gotemburgo, reunindo 4.200 pesquisadores de 202 países, medindo 600 atributos da democracia.

Temos a nítida impressão de que se estão perdendo os limites relacionados ao respeito à lei e à segurança jurídica, quer em sua dimensão objetiva, que diz respeito à estabilidade das relações jurídicas em si.

2.
Latinobarómetro: indiferença em relação à ascensão política do autoritarismo desde que resolva os problemas da sociedade

Segundo o chileno Latinobarómetro, a satisfação com o regime democrático atingiu baixa histórica em 2018, já que apenas 24% dos cidadãos latino-americanos se sentiam satisfeitos com a democracia.

Em 2023, quatro pontos percentuais foram recuperados, mas isso não indica nenhuma melhora substancial. Os cidadãos latino-americanos clamam por mudança. Os problemas pesam tanto no cotidiano que há disposição até para pagar o preço do autoritarismo, desde que seja oferecida como contrapartida a solução para as crises econômicas e as desigualdades.

Substancial parcela de 54% dos entrevistados não se importariam se um governo não democrático assumisse, desde que resolvesse esses problemas. E o número está em crescimento. 

3. Segurança jurídica deve combater o imprevisível

Assim como em relação à dimensão subjetiva, que tangencia o universo estatal em sua condição de gerador de confiança legítima dos administrados na interpretação consolidada das leis, bem como no poder público, ao realizar seus atos de gestão, nas palavras do jurista Miguel Reale Jr., a segurança jurídica deve ser instrumento permanente de combate ao imprevisível.

Se é necessária uma nova regra nestes tempos das leis líquidas, talvez inspirados nas teorias do saudoso sociólogo polonês Zygmunt Baumann, elabora-se o texto do projeto e se aprova de boiada nos termos nomenclaturais de um ex-ministro do Meio Ambiente, quando fez referência a aprovar projetos, tirando proveito da desatenção da mídia e da sociedade, angustiadas com a tragédia da pandemia do vírus da Covid-19. Pouco importa o que o povo pensa dela, assim como o tempo de vigência da lei anterior.

Aliás, igualmente vem chamando a atenção o uso abusivo do instrumento regimental do expediente da urgência de votação parlamentar, que deveria ser excepcional, que se amplificou em tempos de pandemia, e, hoje, a exceção se tornou regra na Câmara dos Deputados, em detrimento do sistema democrático, que passa por processo de grave erosão.

4. Tempos das Leis Líquidas

Na Câmara, onde as Comissões viraram verdadeiras peças de museu, sacrifica-se o debate parlamentar, o amadurecimento das discussões dos projetos, a oitiva dos especialistas em audiências públicas, sendo quase tudo decidido em acordos de liderança, e, muitas vezes, o líder sequer tem claro conhecimento do teor do projeto, sendo sucateado o poder de voto individual de cada deputado federal, naturalizando-se a insegurança jurídica no campo político.

Um ex-governador que acumula mais de 400 anos de condenações em 23 processos por corrupção confessa é solto pelo Supremo Tribunal Federal (STF), Tribunal que, em tempo recente, tomou decisões vitais em defesa do regime democrático. Entretanto, vai longe o tempo em que a previsão ou regulação de alguma matéria por lei gerava efeitos confiáveis, estáveis ou previsíveis.

5. Transparência Internacional: corrupção tem conseguido triunfar globalmente, a partir do enfraquecimento das instituições

Segundo a Transparência Internacional — conforme dados do índice de percepção da corrupção de 2023 —, a corrupção tem triunfado globalmente, aproveitando-se do enfraquecimento das instituições, especialmente do Judiciário.

Isto se constata tanto nos governos mais autoritários, quanto nos democráticos. De 2012 a 2023, pouquíssimo foi o progresso no combate à corrupção. Apenas 28 países mostraram melhora e 34 pioraram. Em 118 nações, nada mudou. O enfraquecimento democrático é que preocupa. É nesse regime que o controle de corrupção tem melhor performance.

No IPC, as democracias plenas (24 países) têm um índice médio de combate à corrupção de 74 (escala de 0 a 100). Quanto maior o número, melhor. Democracias falhas têm um índice médio de 48 (48 países). Já os regimes não democráticos (94 países) têm um índice de 32.

O combate à corrupção pressupõe independência institucional e transparência, o que falta a esses últimos. É preocupante que, como tendência geral, a corrupção tenha também se infiltrado nas cortes. Não por coincidência, a impunidade dos servidores públicos que se envolvem nesses delitos segue crescente.

Ao mesmo tempo, o Congresso Nacional já cogitou subjugar o STF nas decisões não unânimes e quis escolher o corregedor nacional do MP, além de permitir que o Conselho Nacional do Ministério Público interferisse em investigações de promotorias (PEC da Vingança), apontada como algo nefasto no quarto relatório de implantação da convenção antissuborno da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, o que nos proporcionou vergonha internacional.

Sente-se com amargor, de fato, as instituições enfraquecidas, o tecido social esgarçado e a erosão da democracia e da credibilidade. Perderam-se os limites, e as regras são violadas à luz do dia, sem cerimônia e sem qualquer preocupação com as consequências, porque a impunidade está garantida, inclusive por lei.

6.
Realidade do STF em 2023: 83% das decisões foram monocráticas

Mas, este quadro da insegurança jurídica fica ainda mais sério e preocupante quando detectamos que a principal fonte da qual esperamos o fornecimento deste precioso insumo vem falhando. Referimo-nos exatamente ao Supremo Tribunal Federal, que julgou em 2021 um total de 98.213 casos; em 2022, um total de 89.961 casos; e em 2023, um montante de 105.827 casos, dos quais 105.722 virtualmente.

Dos 105.827 casos decididos pelo STF em 2023, quase 83% (precisamente 82,81%) foram decididos de forma monocrática. Ou seja: 87.637 decisões em 2023 foram oriundas de um dos 11 ministros e apenas 18.190 decisões foram colegiadas. Ao todo, 105 casos foram examinados ao vivo.

Os tribunais são organismos do sistema de justiça concebidos dentro da lógica do duplo grau de jurisdição, para permitir e garantir aos jurisdicionados o pleno exercício do direito de acesso à justiça.

7.
World Justice Project: crescente autoritarismo com
enfraquecimento do acesso à justiça

Os dados do World Justice Project indicam uma recessão global do rule of law desde 2016, acompanhada de uma crescente de autoritarismo que somente agora mostra os primeiros sinais de frenagem.

A proteção aos direitos fundamentais — principalmente a liberdade de expressão e de reunião — apresenta queda em 77% dos países avaliados nesse mesmo período. Exatamente o acesso à Justiça, fundamental à garantia dos direitos na democracia, também se encontra enfraquecido. As próprias bases do sistema democrático se veem, por isso, estremecidas.

Voltando à nossa realidade, após a edição da sentença, que é monocrática por excelência, cabe dela recurso de apelação aos Tribunais de Justiça dos Estados ou aos Tribunais Regionais Federais, aos quais caberá rever no mérito as decisões de primeiro grau, de forma colegiada – são os Acórdãos.

Estas decisões poderão ser submetidas aos Tribunais Superiores em hipóteses especificamente previstas na Constituição. De todo modo, estes Tribunais, geralmente, devem decidir de forma colegiada, sendo a colegialidade e a presteza expectativas da sociedade.

A exceção monocrática em circunstâncias emergenciais obviamente deveria ser rara e incomum, mas está se tornando regra como evidenciam os números, como a urgência de votação na Câmara dos Deputados, que sacrifica a liturgia democrática.

8. Emenda Regimental 58 do STF: sopro de esperança

Visando remediar a situação, a sempre ministra Rosa Weber, em seu período como presidente do STF, tomou a iniciativa de propor a Emenda Regimental n° 58, aprovada em dezembro de 2022.

A nova regra trouxe dois importantes instrumentos inovadores no âmbito do STF. Em primeiro plano, em nome da colegialidade, a concessão de liminar em caráter monocrático deve ser excepcional em hipótese de grave dano e obrigatoriamente submetida de imediato à turma ou ao pleno do Tribunal.

Além disto, prestigiando a presteza, limitou-se o tempo de vista dos Ministros ao prazo de 90 dias, devendo após este período o processo ser devolvido com o respectivo voto.

As medidas propostas e aprovadas pelo STF são saudáveis e profiláticas, mas carecem de concretude de aplicação, mostrando-se importante estabelecer um conjunto eficaz de regras de autocontrole, espécie de sistema autorregulatório ou Código de Ética, a exemplo do que se fez, em novembro, nos Estados Unidos, estabelecendo-se, inclusive, limites para viagens de ministros financiadas por particulares, com o fim de evitar conflitos de interesses.

9. Realidade social

Segundo o IBGE, apenas 64,4% da população brasileira vive em domicílios próprios. Este número tem caído gradualmente desde o início da série, em 2016, quando era de 67,8%. Mas, mesmo quando a casa é própria, falta documentação comprobatória da propriedade para 13,6% dos cidadãos. Entre os 20% mais pobres, 18,5% dos que vivem em domicílios próprios não têm documentação.

Aqueles que não têm imóveis estão condenados ao aluguel. Em uma realidade na qual 23,3% dos inquilinos estão submetidos a ônus excessivos no aluguel (ou seja, gastam mais de 30% do rendimento domiciliar apenas para pagar o locador), é fácil entender o porquê de uma condenação.

E quando, finalmente, consegue-se morar em algum lugar, a situação também não é boa. Como mostrou o último censo do IBGE, apenas 62,5% da população brasileira mora em domicílios com acesso à rede de esgoto. E mais: 37,5% dos cidadãos do Brasil (ou 76,1 milhões de pessoas) não tem saneamento básico. E a desigualdade é gritante. Os 20% mais ricos registram R$ 4.484,00 de rendimento domiciliar per capita em comparação.

Não é surpreendente que 46% dos cidadãos brasileiros com mais de 25 anos tenham completado a educação básica obrigatória. A evasão escolar é preocupante, sendo certo que 2 milhões de crianças e adolescentes brasileiros em idade escolar não frequentavam as atividades letivas em 2022, segundo dados do Ipec/Unicef.

A maioria abandonou os estudos por conta de trabalho (48%), 30% porque não conseguiam acompanhar as explicações ou atividades, 28% porque precisavam cuidar de familiares, 18% por falta de transporte, 14% por conta de gravidez precoce, 9% por ter alguma deficiência e 6% por causa de razões relacionadas a racismo.

A pandemia e o ensino remoto foram grandes catalisadores de evasão diante, especialmente, da falta de infraestrutura das escolas e da exclusão tecnológica. A nova República, em toda sua ambição cidadã, ainda é excludente. A Constituição brasileira deu diversos passos para frente, mas ainda há caminhos de participação que precisam ser abertos. Enquanto não forem, o texto não é para valer.

Todo este cenário desastroso se agrava a cada dia diante do fato que a lei, lamentavelmente, deixou de ser fonte segura do Direito, importando muito mais algumas interpretações judiciais que se fazem de acordo com certas convenientes circunstâncias.

O poder das pessoas que são julgadas e outros elementos, muitas vezes, são peças decisivas, desafiando a independência judicial e a própria lógica milenar de Têmis, cuja venda simboliza a distribuição de justiça com igualdade para todos, sem olhar a riqueza ou poder dos destinatários, sem fazer distinções de qualquer natureza, sem casuísmos interpretativos.

O uso abusivo do poder, visando ao autobenefício, é retratado nas letras clássicas de Raymundo Faoro e apontado nos informes do já mencionado instituto chileno Latinobarómetro, levando-nos lamentável e pateticamente a discursos inflamados de figuras poderosas em prol do nepotismo, como suposta prática ética exemplar. Governadores estão hoje inacreditavelmente escalando as respectivas esposas como conselheiras, nos respectivos Tribunais de Contas das respectivas unidades da federação.

Neste aspecto, debate que está sendo retomado é relacionado ao estabelecimento de mandatos para os ministros do STF, a exemplo de diversos países do mundo, como Alemanha, Espanha, Itália, Portugal etc. Na Alemanha, por exemplo, o mandato é de 10 anos.

A discussão é cabível à luz dos cânones republicanos, assim como a própria mecânica de escolha dos ministros e a dinâmica da respectiva sabatina, que hoje raramente vai além de meros encontros laudatórios com pouca efetividade. Mandatos associados a um sistema autorregulatório podem ser importantes medidas na direção da recuperação da segurança jurídica perdida.  


Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional


JOAQUIM FALCÃO é advogado, mestre em Direito por Harvard e doutor em Educação pela Universidade de Genebra. É membro da Academia Brasileira de Letras e da Academia Brasileira de Direito Constitucional

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