05 abril 2019

Tempos Incertos para a Política Externa e o Itamaraty

Poucas vezes (se alguma) um governo teve início com sua política externa tão pouco delineada além de princípios ideológicos genéricos como ocorre com o de Jair Bolsonaro e seu ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo.
Surpreendente sob todos os pontos de vista, a indicação para o mais alto posto do Itamaraty de um diplomata jovem (51 anos), que nunca havia exercido a função de chefe de missão em um país ou organização multilateral e que se tornou conhecido apenas durante a campanha presidencial pelo entusiasmo da adesão às causas do candidato vencedor, parece ter abalado a autoconfiança da Casa, que já vinha sendo solapada nos oito anos anteriores.

Poucas vezes (se alguma) um governo teve início com sua política externa tão pouco delineada além de princípios ideológicos genéricos como ocorre com o de Jair Bolsonaro e seu ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo.
Surpreendente sob todos os pontos de vista, a indicação para o mais alto posto do Itamaraty de um diplomata jovem (51 anos), que nunca havia exercido a função de chefe de missão em um país ou organização multilateral e que se tornou conhecido apenas durante a campanha presidencial pelo entusiasmo da adesão às causas do candidato vencedor, parece ter abalado a autoconfiança da Casa, que já vinha sendo solapada nos oito anos anteriores.
Após períodos de grande exposição, em geral positiva, nas presidências de Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva, o Ministério das Relações Exteriores (MRE) sofreu agruras de várias espécies na gestão de Dilma Rousseff, uma presidente que não apreciava os temas de política externa nem os profissionais que tratam deles, e os efeitos da pior crise econômica da história do país e das desventuras políticas da administração Michel Temer, embora no seu período de 28 meses alguma autoestima tenha sido recuperada na casa,  diretrizes mais claras sobre o que fazer na área internacional tenham sido delineadas e equívocos de teor ideológico da era do PT tenham sido corrigidos.
Agora, o início atabalhoado da dupla Bolsonaro-Araújo traz a perspectiva de tempos talvez ineditamente complicados para o Itamaraty e para a política externa brasileira. Nos dois primeiros meses e meio de governo, muitos especialistas em relações internacionais desaprovaram a condução dada à política externa, inclusive alguns de seus expoentes (como Celso Lafer, Fernando Henrique Cardoso, Rubens Barbosa e Rubens Ricupero), por meio de críticas públicas muito duras sobre o que foi feito (ou desfeito ou não feito).
Bolsonaro durante a campanha e no discurso de vitória na noite de 28 de outubro de 2018 deu inusitado destaque às relações exteriores, explicitando em especial (e quase exclusivamente) sua deliberação de “libertar o Itamaraty” do que ele considerava ser a sua subjugação ao “globalismo cultural” de vertente marxista, por mais impreciso e discutível que seja esse conceito e por menos embasamento na realidade que ele tenha.
Foi este também o tom do discurso de posse do chanceler Araújo, o único documento escrito (ao menos até meados de março de 2019) em que as pessoas podiam ser capazes de basear possíveis análises de quais seriam as prioridades do novo governo no cenário internacional.
No discurso inaugural, em que expressou sua admiração por vários governos de extrema direita, Araújo também ressaltou que o maior problema do mundo atual não é a xenofobia, mas são, sim, a oikofobia (o ódio ao próprio lar) e a teofobia (o ódio a Deus). Ele ignorou em seu pronunciamento os temas da pasta que comanda, mas esbaldou-se em declarações que deixaram claro o teor de sua ideologia e de sua religiosidade.
Não foi divulgado nenhum documento programático sobre a política externa dos próximos quatro anos. Mas, tuítes, postagens em blogs, declarações rápidas a jornalistas, uma aula magna a novos diplomatas, a expressão de atitudes, os objetivos para os primeiros cem dias de governo e algumas medidas indicam linhas-mestras aparentes da gestão atual nas relações externas: completo e automático alinhamento com os Estados Unidos de Donald Trump, tomada de posição ao lado de Israel no Oriente Médio, menor importância para o Mercosul e em particular para a Argentina, oposição militante ao bolivarianismo na América do Sul a ponto de chegar a possíveis extremos, desengajamento de fóruns multilaterais (em especial dos do sistema das Nações Unidas), abandono de posições históricas do país quanto a temas como meio ambiente, migração e outros da agenda econômica e social.
Araújo, em artigos de jornais e revistas, enfatizou que iria aproximar o Itamaraty do “povo” e limpá-lo de ideologia. Seu discurso de posse, em que fez citações em grego, latim e tupi, não deve ter tido muito efeito para que o “povo” o entendesse. E, ao contrário do que prometeu, suas primeiras decisões e ações provam sem nenhuma dúvida que seu desejo é impor uma ideologia ao MRE, não a de torná-lo livre de ideologia.
Veja-se, por exemplo, a nova estrutura administrativa pela qual agora o Itamaraty se organiza. Temas como imigração, ambiente, Nações Unidas, apoio a comunidades de brasileiros no exterior perderam status e muitos deles foram agrupados sob uma Secretaria de Assuntos de Soberania Nacional e Cidadania, nomenclatura que revela a ideologia nacionalista e conservadora que caracteriza a atual administração federal.
“Gerontofobia”
A designação de responsáveis pelos cargos mais altos da hierarquia do novo MRE desnuda outro critério inusual para a escolha de chefias: quase todos estão em faixa etária similar ou inferior à do chanceler, que parece movido por uma “gerontofobia” (já que ele gosta de listar ódios) e estar disposto a criar uma “juvenocracia”, um governo de moços, que – como dizia o marquês de Maricá no século XIX – “não tolera conselheiros velhos”.
A cultura do Itamaraty preza muito, há mais de um século, a hierarquia, a exemplo das Forças Armadas. Essa característica pode não ter valor intrínseco indiscutível, mas é um dos instrumentos estruturadores da instituição, que, por mais controvertida que possa ser ou ter sido, costuma estar listada entre as mais efetivas e respeitadas do serviço público brasileiro. O açodamento com que o ministro vem agindo em relação a questões delicadas e sensíveis como essas tem grande potencial de desestabilizar o corpo de diplomatas.
Agrava ainda mais esse aspecto que uma das primeiras medidas provisórias assinadas por Bolsonaro, ainda no dia 1º de janeiro, tenha aberto a possibilidade de pessoas de fora da carreira diplomática ocuparem cargos de chefia ou de assessoria no Itamaraty, ato que soou como de hostilidade contra a própria casa, a qual – devido ao grande aumento de vagas durante as gestões de Lula – tem quadros qualificados de sobra para todas as necessidades do MRE. Mais tarde, tentou-se amenizar as reações com a explicação de que houvera um “mal-entendido” e que apenas alguns cargos comissionados teriam a possibilidade de ser preenchidos por não diplomatas. Como em muitas outras situações deste governo, este assunto ficou inconclusivo, mas o mal-estar entre diplomatas permaneceu.
A primeira das propostas de ação do MRE para os cem dias iniciais do governo Bolsonaro é a de uma visita do presidente a Washington para lançar as “bases de acordo de parceria Brasil-EUA ou instrumento similar, que incluirá o lançamento de um acordo comercial, bem como entendimentos em segurança, tecnologia e defesa”. Além da imprecisão conceitual, da desconexão entre frases e do péssimo vernáculo (caraterísticas de quase todos os discursos dos líderes desta administração), o texto passa a impressão de que “nunca antes na história deste país”, o Brasil teve acordos com os EUA, como se não houvesse sido lá, em 1905, que o Barão do Rio Branco estabeleceu a primeira missão diplomática brasileira em nível de embaixada, conforme recordou Rubens Ricupero em conferência no Cebri (Centro Brasileiro de Relações Internacionais) em 25 de fevereiro sobre a política externa de Bolsonaro, e como se Brasil e EUA já não tivessem uma longa história de cooperação bilateral às vezes mais, às vezes menos intensa.
Ainda assim, se há algo que está claro para todos no posicionamento do novo governo é a sua submissão ao presidente dos EUA. No provável desejo de adular Trump, a dupla Araújo e Bolsonaro abriu a possibilidade de os EUA terem uma base militar em território brasileiro. Isso, sim, teria sido uma novidade, mas não das melhores. Só uma vez houve bases militares estrangeiras no país, durante a Segunda Guerra Mundial, por motivos óbvios e justificáveis.
Bolsonaro e Araújo recuaram em relação à base devido à atuação, que está se tornando comum, do núcleo do Exército na administração federal, sob a liderança do vice-presidente Hamilton Mourão, que em apenas dois meses já era considerado por muitos como o ministro das Relações Exteriores de facto, tantas foram as vezes em que ele interveio para corrigir rotas desenhadas por Araújo e Bolsonaro que, levadas adiante, indiscutivelmente feririam o interesse nacional.
Por exemplo, a anunciada mudança da embaixada brasileira em Israel para Jerusalém, em parte também para imitar Trump. A simples menção a esta possibilidade já provocou retaliação de países árabes que são grandes importadores de produtos agropecuários brasileiros. A ala do agronegócio no governo, que é um dos seus principais bastiões de apoio político, também reagiu mal a essa iniciativa, que está em suspenso e é considerada pelo vice-presidente como apenas uma hipótese ou até menos do que isso.
O segundo objetivo para os cem dias é a visita de Bolsonaro a Israel, “com a criação de parcerias em segurança, tecnologia e defesa”. O primeiro-ministro Benjamin Netanyahu veio à posse de Bolsonaro, ouviu dele a promessa de que o Brasil mudaria sua embaixada para Jerusalém e deve estar esperando por uma ação concreta que a cumpra.
Além de mimetizar o presidente americano, a questão de Jerusalém tem também o intuito de agradar aos evangélicos, outras das principais bases de apoio a Bolsonaro. Aqui, como nos EUA, diversas denominações evangélicas dizem ter uma conexão especial com Israel porque Jesus, um judeu, teria tido como missão libertar seu povo, eleito por Deus. Jerusalém é sagrada para judeus e cristãos (também o é para muçulmanos, mas isso não parece ser muito levado em conta pela atual administração).
Neste e em outros episódios, Bolsonaro e Araújo inserem a religião na pauta da agenda diplomática. E, como argumenta Celso Lafer em artigo para o jornal “O Estado de S. Paulo”, publicado em 17 de fevereiro, “a laicidade está positivada no art. 19–I da Constituição, que veda à União estabelecer culto religioso ou igrejas e manter com eles ou seus representantes relação de dependência ou aliança. Não é do interesse público da política externa evocar, e de maneira inédita, suscitar o tema da religião na vida internacional, posto que contribui para a intolerância da geografia das paixões religiosas, que são uma das fontes das tensões internacionais contemporâneas, inserindo o nosso país numa problemática na qual não precisa envolver-se”.
Ainda na tentativa de clonar Trump, o governo Bolsonaro retirou o Brasil do Pacto Global para Migração e anunciou sua saída do Acordo de Paris sobre mudanças climáticas. Quanto à migração, além de a decisão contrariar toda a história da diplomacia brasileira nesse capítulo, ela não tem justificativa lógica, como argumenta Rubens Ricupero: “Em contraste com os EUA de Trump, o Brasil é hoje país de emigração, muito mais que de imigração. Que sentido tem então retirar a assinatura do Pacto Global para Migração, de cuja proteção poderiam beneficiar-se 3 milhões de brasileiros emigrantes?”
Recuo quanto ao Acordo de Paris: persuasão dos militares
Quanto ao Acordo de Paris, em nova demonstração de ignorância básica, o presidente Bolsonaro, como Trump, disse que ele fere a soberania nacional, quando, de fato, nele só há metas voluntárias definidas individualmente pelos países que o assinam. O presidente parece ter recuado em relação a esse assunto, de novo graças à persuasão dos militares no governo, que enxergam, como quase todos os cientistas do mundo e muitas das maiores empresas, que é o aquecimento global que ameaça a segurança nacional e internacional.
Se insistir em retirar o Brasil do Acordo de Paris, Bolsonaro poderá outra vez infringir a Constituição, como previne Celso Lafer: “O direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é um direito de titularidade coletiva do povo brasileiro, e cabe ao poder público defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações nos termos do art. 225 da Constituição Federal. É também um direito individual do cidadão (art. 5º, LXXIII). Meio ambiente é indivisível, por isso é internacional. Afeta a todos que vivem na Terra.”
Entre os objetivos dos primeiros cem dias há outra gentileza a Trump: “implementar a isenção unilateral de vistos para cidadãos norte-americanos e canadenses”. Depois, o governo anunciou que também japoneses e australianos terão também esse direito, sem reciprocidade para os brasileiros.
Mesmo nos casos em que os rumos dados à política externa brasileira por Bolsonaro e Araújo possam resultar em conclusões positivas para o país, o fato é que as perspectivas são nebulosas. Por exemplo, a contrapartida que os EUA poderiam dar ao alinhamento automático que o Brasil oferece a priori.
Dois objetivos são em geral citados: ajuda para o ingresso do Brasil na OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) e um acordo bilateral de livre comércio. Ambas são ambições justificáveis que, se alcançadas, trariam grandes benefícios ao Brasil.
Mas, corre-se o risco aqui de se ter desfecho parecido com o de outra demanda plausível e boa para o país, que se tornou uma obsessão do governo Lula: um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU. Foi feita uma leitura errônea das condições objetivas para que tal meta fosse atingida, o que levou o governo brasileiro a despender esforços em várias frentes sem que nada fosse alcançado.
Algo do mesmo gênero pode ocorrer agora. O desempenho de Trump na presidência americana demonstra sem dúvidas que seu estilo de negociação, tanto em política interna quanto externa, é de fazer pouquíssimas concessões e exigir o máximo do interlocutor, o qual só avança quando demonstra firmeza e agressividade, algo que o atual governo brasileiro está longe de fazer.
Trump tem muito pouca necessidade de ceder qualquer coisa ao Brasil, por mais que este possa lhe oferecer, inclusive (como aparenta) tornar-se uma espécie de cabeça de ponte para Washington no subcontinente sul-americano. A balança comercial entre os dois países é relativamente equilibrada, e, de 2007 a 2018, ela foi mais superavitária para Washington do que para Brasília. Em 2018, os EUA exportaram ao Brasil US$ 39,4 bilhões, enquanto as vendas brasileiras para aquele mercado somaram US$ 31,1 bilhões, o que resultou em um superávit para o lado americano de US$ 8,3 bilhões, segundo o US/Census.
Com uma pessoa no Palácio do Planalto que insistentemente demonstra sua admiração por Trump e outra no Itamaraty que o considera nada menos do que a salvação do Ocidente, não há por que o presidente dos EUA temer alguma coisa do Brasil ou lhe ser generoso, a não ser que ele fosse uma alma benévola, o que, todas as evidências mostram, está longe de ser o caso.
O processo de admissão plena à OCDE é longo e complexo. A política de Washington em relação ao ingresso de novos membros tem sido para limitá-lo ao mínimo possível. Trump já está publicamente comprometido com o presidente argentino, Maurício Macri, com quem fez negócios antes de ambos entrarem para a política, a apoiar o pleito de Buenos Aires. Além disso, o Peru e outros países também têm a mesma demanda e em estágio mais avançado do que o do Brasil. Mesmo uma declaração verbal de apoio à pretensão do Brasil não garante empenho da administração americana em endossá-la.
Quanto a um acordo de livre-comércio entre EUA e Brasil, basta lembrar o processo de negociação da Alca (Área de Livre Comércio das Américas) para saber como isso seria difícil, quase impossível. Embora o Brasil tenha trazido para si, no governo Lula, o ônus de um acordo não ter sido alcançado, a verdade é que Brasília e Washington nunca chegaram perto de um entendimento mínimo que pudesse satisfazer aos diversificados interesses de economias complexas como são as dos dois países.
Pelo menos por enquanto, o Brasil não pode se engajar em negociações de livre comércio solitariamente, sem a participação dos demais integrantes do Mercosul. O Congresso americano é muito infenso a acordos de livre comércio de qualquer espécie, e ainda terá de aprovar o dos três países da América do Norte, USMCA, que acaba de ser renegociado para substituir o Nafta. Trump já comunicou formalmente ao Congresso que pretende iniciar negociações para acordos comerciais com Japão, Reino Unido e União Europeia
O governo Trump está no primeiro trimestre de seu penúltimo ano, e é certo que terá imensas barreiras a superar até o fim do mandato, com a Câmara dos Representantes controlada pela oposição, diversas comissões de inquérito para investigar sua administração, possibilidade de processo de impeachment. Que Trump venha a dar prioridade a qualquer demanda mais ambiciosa do Brasil é uma hipótese muito remota, não importa o grau de bajulação nem a dose de subserviência que se esteja disposto a oferecer.
Gestos simbólicos podem ocorrer, como o Brasil classificado na categoria de “grande aliado de fora da Otan” dos EUA (“major non-Otan ally”), status de cerca de 20 outros países (da Argentina à Nova Zelândia), que só confere privilégios de monta para a compra por esses países por preço baixo de material bélico americano não mais utilizado pelas Forças Armadas americanas.
Um jovem general brasileiro, Alcides Valeriano de Faria Júnior, passou a integrar o Comando Sul das Forças Armadas dos EUA, outra demonstração de apreço entre os dois países, mas de pouca significância prática. Como subcomandante de Interoperabilidade, ele deverá atuar, especialmente, em catástrofes naturais e em crises humanitárias na América Latina e no Caribe.
Outro desdobramento que as lisonjas a Trump podem render a Bolsonaro é a maior utilização da base espacial de Alcântara para o lançamento de satélites americanos, com um acordo de salvaguardas tecnológicas que poderá ser positivo para o Brasil.
Fora isso, pode-se esperar muita retórica de lado a lado, mas pouco de concreto dos Estados Unidos que beneficie o Brasil. Trump já tem citado Bolsonaro em suas arengas pelo país, não para elogiá-lo, mas para engrandecer a si próprio por servir de modelo para o líder eleito de um país grande e importante.
Definições claras? Frustração
A lista de prioridades para os primeiros cem dias, que poderia ter servido de bússola para os princípios programáticos da política externa de Bolsonaro, acabou frustrando quem esperava por definições claras. Como disse Rubens Barbosa em artigo publicado em 22 de janeiro em “O Estado de S. Paulo”: “Repetindo promessas de campanha e declarações depois das eleições, as medidas não surgem como uma surpresa. São prioridades genéricas que precisam ser trabalhadas para que se transformem em diretrizes para a ação diplomática.”
A dúvida é se isso um dia será feito ou se as decisões continuarão sendo tomadas de maneira improvisada, anunciadas de modo destrambelhado e, quando exorbitantes, contidas por atores externos ao Itamaraty.
Entre os objetivos para os cem dias, está o “início do processo e revisão do Mercosul para aperfeiçoamento de instrumentos favoráveis ao setor produtivo, redução tarifária e dinamização da agenda externa”, vago assim, sem detalhamento. Mas, logo em seguida vem a meta de “retorno ao modelo de passaporte com o Brasão da República”, inequívoca demonstração de pequeno apego ao Mercosul, o qual, aliás, já tinha sido expressado em diversas ocasiões pelo presidente Bolsonaro e seu ministro da Economia, Paulo Guedes. O presidente também anunciou que pretende cancelar o uso de placas de veículos do Mercosul no país.
O fato de a primeira visita de um novo presidente brasileiro a outro país não ter sido à Argentina, como vinha sendo a tradição havia décadas, também indica o mesmo rumo. A Argentina não será nem o primeiro destino sul-americano de Bolsonaro, substituída pelo Chile, para missão de teor puramente ideológico: substituir uma organização de inspiração bolivariana, o Unasul, por outra de teor conservador, o Prosul, proposta pelos presidentes chileno e colombiano, ambos de direita. Na sua aula magna, Araújo disse sobre o Chile: “É um exemplo bom de um país que conseguiu essa coesão liberal-conservadora que é a chave para o que a gente pode fazer no mundo”.
A eliminação da disciplina sobre América Latina do currículo do Instituto Rio Branco também é muito expressiva sobre o rebaixamento de prioridade que o subcontinente terá na atual administração. E a primeira iniciativa de caráter de política comercial de Bolsonaro na região revela sua ignorância e seus pendores de sempre colocar crenças acima da razão. Ele anunciou que iria acabar com a importação de bananas do Equador porque a região do Vale do Ribeira em São Paulo, onde ele residiu, é grande produtora da fruta. Mas, quando Bolsonaro fez tal anúncio, a importação de bananas equatorianas já estava proibida, por razões fitossanitárias.
Bolsonaro e Araújo têm praticamente ignorado o Brics, embora este ano o Brasil ocupe a presidência de turno do grupo e esteja agendada para novembro uma cúpula a ser hospedada no Brasil. No ambiente geopolítico atual, em em que China e EUA e Rússia e EUA se confrontam em várias frentes, o atual governo brasileiro vai querer manter esse interessante exercício diplomático que reúne  Rússia e  China ao Brasil, Índia e África do Sul, dada sua inclinação para seguir os EUA sem maiores dúvidas em tudo? A única orientação explicitada pelo governo para o grupo foi a de que o Brasil vai instar a China e a Rússia a mudarem sua posição sobre o regime de Maduro na Venezuela, do qual são fiadoras, algo que poderá redundar em cisões no grupo.
Com relação especificamente à China, Araújo associa a cooperação comercial do Brasil com ela como causa de seus problemas econômicos, como deixou clara em sua aula magna no Instituto Rio Branco: “De fato, a China passou a ser o grande parceiro comercial do Brasil e, coincidência ou não, tem sido um período de estagnação do Brasil.”
Nessa mesma ocasião, ele condenou a aproximação do país com a Europa e a América Latina, empreendida por décadas pelo Itamaraty: “Houve apostas completamente equivocadas a partir dos anos 1950 e, mais ainda, nos anos 1970, com o terceiro-mundismo, o antiamericanismo e o antiocidentalismo, com uma aposta em parceiros que não foram capazes de nos ajudar no nosso desenvolvimento”.
Bolsonaro visitou Taiwan quando candidato e já deu várias declarações hostis à China. Isso pode animar Trump a exigir dele alinhamento ao seu lado na guerra comercial e tecnológica que trava com Beijing, uma péssima opção para o interesse nacional brasileiro.
Bolsonaro e Araújo também pouco ou nada têm falado sobre pontos específicos da política comercial brasileira (que não se sabe se continuará sob a liderança do Itamaraty) ou sobre suas prioridades em organismos multilaterais (os quais Araújo vê com ojeriza). Bolsonaro chegou a dizer que o Brasil iria sair da ONU, mas depois se corrigiu, dizendo que sairia do comitê de direitos humanos da ONU.
Na grande oportunidade que teve em janeiro de apresentar ao exterior o que o seu governo pretende fazer em relação ao mundo, no Fórum Econômico Mundial de Davos, o presidente decepcionou enormemente. Seu discurso minimalista (pouco menos de dez minutos) foi considerado “sem vida” e “engessado” pelo jornal “Financial Times”. Limitou-se a generalidades e platitudes, como “quero mais que um Brasil grande, quero um mundo de paz, liberdade e democracia” ou “estamos aqui porque queremos, além de aprofundar nossos laços de amizade, aprofundar nossas relações comerciais”.
Não foi nem radical na defesa do que todos sabem ser as suas ideias sobre temas como ambiente e direitos humanos, talvez receoso de ser alvo de manifestações hostis. Valeu-se de eufemismos mal formulados e evasivas para mencionar de raspão alguns de seus princípios que ele sabia que não seriam bem acolhidos pela plateia ou simplesmente os ignorou. Disse, por exemplo: “…vamos defender os verdadeiros direitos humanos…”, o que pode ter deixado muitos estrangeiros na dúvida sobre quais poderiam ser os falsos direitos humanos. Mas, não deixou de achar tempo para elogiar seu chanceler, por “implementar uma política sem viés ideológico”.
Bolsonaro em Davos: generalidades e platitudes
Lembrou que venceu a eleição com uma campanha pobre, disse que “pela primeira vez um presidente montou uma equipe de ministros qualificados”, que vai “investir pesado em segurança para que vocês nos visitem com suas famílias, pois somos um dos países primeiros em belezas naturais, mas não estamos entre os 40 destinos turísticos mais visitados do mundo”, que “nossa missão agora é avançar na compatibilização entre a preservação do meio ambiente e da biodiversidade com o necessário desenvolvimento econômico”. Falou em defender uma vaga reforma da OMC, a família, a propriedade privada. Ao encerrar, citou o seu lema “Deus acima de todos”, mas curiosamente não o completou com a outra metade (“o Brasil acima de tudo”).
Não tivesse sido o bom desempenho do ministro da Economia em outros momentos do Fórum, a viagem teria sido um absoluto fiasco para o Brasil. Paulo Guedes conseguiu passar confiança aos empresários e formadores de opinião em Davos sobre as chances de reformas econômicas consequentes no país. Mas, em relação aos propósitos do governo em política externa, praticamente nada foi esclarecido.
Na primeira crise internacional de sua administração, foi também o vice-presidente Mourão quem conteve os ímpetos belicistas do chanceler na condução do episódio de tentativa de entrega de ajuda humanitária à Venezuela de Maduro em fevereiro de 2019. A própria utilização de ajuda humanitária como instrumento de pressão em política externa já é atitude discutível, ainda mais nas condições em que se tentou forçar a entrada de caminhões que a transportavam num país cujo governo no poder se recusava a receber.
Mourão liderou a delegação brasileira à reunião do Grupo de Lima, o qual rechaçou a possibilidade de ações militares de outros países contra a Venezuela de Maduro (como Washington parecia pretender). As Forças Armadas brasileiras também não apreciaram a recepção de chefe de Estado conferida por Bolsonaro ao autoproclamado presidente da Venezuela Juan Guaidó. Mas o gesto simbólico transcorreu sem incidentes. A aparência é de que discursos e simbolismos são toleráveis, mas que os militares estabeleceram “linhas vermelhas”, as quais não podem ser transpostas para impedir dano potencial aos interesses do país.
Em janeiro, em reunião do Grupo de Lima, Araújo assinou um documento em que os 14 países que o integram decidiram tomar medidas para pressionar o governo de Nicolás Maduro. Entre eles, “suspender a cooperação militar” com o seu regime. Mas o chanceler não consultou os líderes das Foças Armadas do Brasil sobre esse item que lhes diz respeito direto. O vice-presidente Mourão foi adido militar na Venezuela, conhece bem o país, tem amigos entre os militares venezuelanos. Os canais de comunicação entre militares dos dois países são talvez os melhores para o governo brasileiro estar bem informado sobre o que ocorre na Venezuela e talvez sejam os únicos que restaram para o Brasil poder influir positivamente em qualquer tentativa de resolver a crise.
A capacidade de o chanceler Araújo ditar as linhas da política externa do Brasil se vê ameaçada em várias frentes. Ministros politicamente muito mais fortes do que ele, como Paulo Guedes e Sérgio Moro, são desenvoltos em tratar dos temas internacionais de suas pastas por conta própria. Entre os princípios do liberalismo econômico de Guedes e os do nacionalismo de raiz de Araújo há uma oposição absoluta. Se os dois entrarem em confronto por causa deles, as chances de Guedes prevalecer, com o suporte das comunidades de negócios nacional e estrangeira, são muito maiores do que as de Araújo. Até ministros não tão poderosos, como Tereza Cristina, da Agricultura, têm conseguido sucessos em quedas de braço com o chanceler.
Na crise venezuelana, o presidente reuniu um conselho formado pelos presidentes da Câmara, do Senado e do STF, mais os comandantes das Forças Armadas, além do chanceler, para discutir o que fazer, em claro sinal de esvaziamento do MRE.
Numa audiência pública na Comissão de Relações Exteriores do Senado, o senador Major Olímpio declarou: “Eu vejo as Relações Exteriores dizendo: “Força e arma”, e eu vejo os profissionais da força e da defesa nacional dizendo: “Cautela. Vamos mediar, vamos ser serenos”. É hora de ouvirmos mais os generais, que têm o tempo, os cabelos brancos, a vivência e o que já sofreram em outras situações.” Poucos chanceleres foram tratados assim no Congresso Nacional, ainda mais por um parlamentar do mesmo partido do presidente da República.
O chanceler dá seguidos tiros no próprio pé, como no episódio da troca do comando da Apex (Agência Brasileira de Promoção de Exportações) para a qual ele havia designado uma pessoa que não sabe falar inglês e durou uma semana no cargo, após ter criado confusão com ministros militares, funcionários da Agência e empresários. Ou na demissão, em março, do diplomata Paulo Roberto de Almeida da direção do IPRI (Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais) após ter este republicado em seu blog pessoal artigos do próprio ministro e do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e do ex-ministro Rubens Ricupero, uma demonstração inequívoca de que debate de ideias não é permitido no Itamaraty “sem viés ideológico” de Araújo e Bolsonaro. Note-se que Araújo não foi punido por seu predecessor, Aloysio Nunes Ferreira, por ter se engajado por meio do seu blog na campanha de Bolsonaro em 2018.
Em outro episódio talvez sem precedentes, o atual ministro das Relações Exteriores usou seu blog para atacar um ex-presidente da República e ex-chanceler, Fernando Henrique Cardoso, com agressividade incomum. Ali, ele ainda afirmou que foram os EUA que seguiram o Brasil na iniciativa da ajuda humanitária à Venezuela, e não o contrário, como todas as evidências apontam ter ocorrido.
Para corroborar sua versão, citou, sem dar o nome, “uma grande liderança democrática venezuelana”, que lhe teria assegurado que Washington só “rompeu a inércia” devido ao ativismo de Brasília.
A repercussão internacional dos exotismos do atual chanceler tem sido pouco simpática a ele, talvez porque o presidente Trump ainda não tenha conseguido completar a sua missão de salvar o Ocidente e o “globalismo cultural” de orientação marxista siga hegemônico. A revista “Foreign Affairs”, por exemplo, que evidentemente nada tem de marxista, publicou em 24 de janeiro artigo intitulado “Brazil’s Foreign Minister Wants to Save the West From Postmodernism – The Curious Case of Ernesto Araujo”, de autoria de Nick Burns, da Hoover Instititution e do Woodrow Wilson Center.
O presidente Bolsonaro também se incomoda com a sua própria imagem no exterior, e anunciou que vai trocar 15 embaixadores em cargos importantes porque eles não a sabem defender bem. Queixa-se de que está sendo chamado de ditador, homofóbico e racista, e que ele não é “nada disso”.
Itamaraty sob tutela militar
Claro que há manifestações de simpatia a Bolsonaro e mesmo a Araújo, pelo mundo, mas limitadas ao entorno ideológico inspirado pelo populismo autoritário de extrema direita maximamente simbolizado pelo presidente Trump.
A orientação que se pode intuir estar sendo dada à política externa brasileira, em contrariedade a toda a sua tradição, pode levar a uma situação como a descrita por Fernando Henrique Cardoso em artigo publicado em 3 de março no jornal “O Estado de S. Paulo”: “O Brasil está sendo confrontado com sua História. Diante dos ensaios de ruptura com as tradições de nossa política externa, empalidecem as diferenças de matiz político-ideológico observadas desde José Sarney até Michel Temer. Manteve-se certo consenso básico sobre o interesse nacional e sobre o modo de adequá-lo a mudanças nos ventos do mundo”.
Esta é muito provavelmente a situação mais constrangedora por que o Itamaraty já passou. É comum ver-se na imprensa e ouvir-se em círculos de especialistas em relações internacionais referências ao fato de ele estar sob “intervenção branca” ou “tutela” exercida pelo vice-presidente Mourão e pelo ministro do Gabinete de Segurança Institucional, general Augusto Heleno Ribeiro. Os dois recebem e visitam embaixadores estrangeiros, vêm a público “esclarecer” declarações mais controversas do chanceler e do presidente, corrigem projetos complicados do ministro que podem prejudicar o país. Esta avaliação pode até ser exagerada, mas as aparências induzem a conclusões deste tipo, o que, por si só, é suficientemente danoso à reputação da instituição, que ao longo da história sempre gozou de boa imagem.
Como triste símbolo da atual situação do Itamaraty, noticiou-se em 16 de março que dois quadros de Candido Portinari que adornam o seu palácio em Brasília estão danificados: “Jangadas do Nordeste”, com um rasgo de 10 centímetros, e “Cena Gaúcha”, com um furo na tela.
São Paulo,17 de março de 2019

É professor do Insper. Foi correspondente da Folha de S.Paulo nos EUA e editor da Revista Política Externa. É livre-docente e doutor pela USP e mestre pela Michigan State University. Membro do Conselho Curador da Fundação Padre Anchieta

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