30 junho 2022

Transição energética cria oportunidade para o Brasil tornar-se grande player da energia verde

Liderado pelo professor Jank, o artigo escrito a seis mãos indica caminho para o Brasil vir a ser grande participante no processo de transição energética global, com a finalidade de redução da emissão de gases de efeito estufa. O contexto da guerra na Ucrânia evidenciou a necessidade de diminuição a dependência em relação a combustíveis fósseis. A falta de alternativa torna urgente a busca por soluções viáveis e desperta o interesse por tecnologias que se mostravam pouco atraentes por custo de exploração, caso do uso de hidrogênio.

Marcos Sawaya Jank é professor de Agronegócio do Insper e coordenador do Centro Insper Agro Global. Trabalhou nos EUA, Europa e Ásia. É engenheiro agrônomo, mestre em política agrícola em Montpellier-França, doutor pela FEA-USP e livre-docente pela ESALQ

Claudia Cheron Koenig é doutora em Administração pela Universidade de São Paulo e mestre em Negócios Internacionais pela Universität Erlangen-Nürnberg, Alemanha, com pós-doutorado em Economia das Organizações pela USP

Leandro Gilio é economista e mestre e doutor em economia pela ESALQ-USP e pesquisador sênior do Insper Agro Global

Nos últimos meses o mundo, sobretudo a Europa, viu a necessidade de acelerar a transição energética e reduzir a emissão de gases de efeito estufa. O contexto da guerra entre a Rússia e a Ucrânia evidenciou que, muito além da redução da emissão de gases de efeito estufa (GEE), a transição energética é fundamental para que os países possam garantir a segurança energética e diminuir a dependência em relação a combustíveis fósseis, principalmente importados da Rússia. A falta de alternativas energéticas torna urgente a busca por soluções viáveis e desperta o interesse por tecnologias que, até então, se mostravam financeira e tecnicamente pouco atraentes. 

Os combustíveis fósseis continuam sendo fonte de 85% da matriz energética mundial, apesar da alta dos preços e das pressões pela redução das emissões de GEE (gráfico 1). No que se refere a transportes, o mundo tende ao caminho da eletrificação, mas essa solução incorre em custos elevados e exigirá vultosos investimentos nas próximas décadas, principalmente na extração de metais raros para a construção das baterias, na montagem da infraestrutura elétrica e de manutenção de uma rede energética, que ainda é abastecida por energia essencialmente fóssil em âmbito global. É neste contexto que o uso do hidrogênio (H2) pode ser o próximo passo tecnológico necessário e se tornar uma alternativa viável em alguns países nos próximos anos, entre eles o Brasil.

Gráfico 1 – Consumo global por fonte de energia
Quantidades estimadas e convertidas em exajaules equivalentes

Mas qual é o potencial do hidrogênio? Apesar de ser o elemento mais abundante no universo e essencial para a vida, o hidrogênio puro é muito escasso na Terra. Diferentemente do petróleo, que é uma fonte de energia primária, o hidrogênio é um ‘transportador de energia’, produzido a partir de outras moléculas, como as de combustíveis fósseis, biomassa ou água. As leis da termodinâmica determinam que a produção de hidrogênio, a partir de um desses precursores, sempre exigirá mais energia do que a obtida no seu uso. Por isso, o hidrogênio é empregado apenas em processos em que a adição química de seus átomos é essencial, como a fabricação de amônia para fertilizantes e de metanol para uso em plásticos e explosivos.

Mas essa realidade está mudando. Com o ganho de escala e a queda nos preços da eletricidade renovável, além do desenvolvimento de eletrolisadores mais eficientes e baratos, o preço do hidrogênio produzido a partir de fontes renováveis ​​está caindo. Isso o coloca como um dos maiores aliados na descarbonização da economia, já que, diferentemente de carvão, petróleo e gás natural, que quando queimados geram dióxido de carbono e aquecem o planeta, o hidrogênio tem como resíduo água pura e potável.

De acordo com projeções realizadas pela consultoria McKinsey, em fevereiro de 2021, a demanda por hidrogênio deve crescer pelo menos seis vezes até 2050, subindo dos atuais 80 para 536 milhões de toneladas/ano, dependendo da sua aceitação na indústria pesada, no setor de transportes e na indústria química e de refino. Isso porque, mesmo com o ganho de escala das energias renováveis, há partes da economia que parecem resistir à eletrificação, como a siderurgia, que usa substancialmente o carvão na fabricação de aço e cimento em processos que exigem altas temperaturas – difíceis de serem obtidas com eletricidade, mas não com o hidrogênio. Exemplo disso é o projeto piloto da SSAB, que produzirá 5 milhões de toneladas/ano de aço plano à base de hidrogênio verde até 2030, no norte da Suécia. Apesar de ser uma quantidade ainda pequena, é significativa se considerarmos o consumo anual da União Europeia, de 90 milhões de toneladas.

A guerra pode acelerar o processo

O desenvolvimento do mercado de hidrogênio nos últimos dois anos foi impressionante, e a invasão da Ucrânia pela Rússia só vai acelerar o processo. Do final de 2019 até hoje, foram mais de 350 projetos de grande escala anunciados em toda a cadeia de valor, com uma previsão de US$ 500 bilhões em investimentos, 85% localizados na Europa, na Ásia e na Austrália. Esperam-se mais de US$ 160 bilhões em investimentos até 2030. Governos de todo o mundo já se comprometeram com US$ 70 bilhões.

Com o apoio público, futuras regulamentações ambientais, precificação rigorosa de carbono e estrutura regulatória estimulando a demanda, o custo de produção de hidrogênio renovável pode cair mais rápido do que o estimado. Isso tornaria o hidrogênio uma das soluções de baixo carbono mais competitivas até 2030 em setores como transporte rodoviário de longa distância e aço – que sofrem com as limitações da eletrificação pura.

Montadoras tradicionais, como a Volvo e a Daimler-Benz, na Europa, além de startups como a Hyzon, estão na corrida para fazer caminhões pesados ​​movidos a hidrogênio. Apesar de a célula de combustível a hidrogênio aumentar o preço e a complexidade de um veículo elétrico, os pesados, que percorrem longas distâncias, seriam beneficiados, visto que não precisariam depender da rede elétrica, baixa autonomia e do ainda elevado tempo de recarga das baterias. O hidrogênio é muito mais denso em energia, o que significa que em um sistema de armazenamento de alta pressão, ocupa muito menos espaço e fornece autonomia muito superior às baterias. A americana Cummins, que tem foco em veículos pesados, já aposta que caminhões movidos a hidrogênio terão o mesmo valor dos caminhões a diesel no custo total de propriedade até 2030.

Cenário semelhante se desenvolve para o transporte ferroviário. A Boston Consulting Group (BCG) avalia que o hidrogênio pode ser competitivo em preço com outras formas de abastecer trens até 2030, mesmo sem precificação de carbono. A francesa Alstom, maior fabricante de trens fora da China, já opera trens movidos a hidrogênio na Alemanha e estima que, até 2035, substituirá grande parte da frota de 5.000 trens a diesel na Europa.

O mesmo movimento se observa nos veículos de passeio. Apesar de o futuro da eletrificação dos carros nas cidades ser inquestionável, apenas algumas empresas automotivas têm investido seriamente em hidrogênio em carros. A Toyota tem a meta de utilizar um mix de soluções para reduzir a emissão de CO2, além de desenvolver um esforço mais amplo para comercializar a tecnologia de células de combustível a hidrogênio no Japão, país que desativou todas as suas usinas nucleares e importa a maior parte de seus combustíveis fósseis. A ideia é encontrar a tecnologia adequada para cada país. A empresa já tem disponível ao consumidor o modelo Mirai (movido a hidrogênio), elétricos, hibridos flex e, agora, avalia a possibilidade de híbrido de etanol com célula de combustível.

A Nissan também aposta nessa tecnologia e a vem desenvolvendo, em parceria com a Unicamp, um veículo híbrido de etanol com célula de combustível que já alcança 600 km de autonomia com o uso de 30 litros de etanol para a obtenção do elemento energético. Em emissões, o sistema libera pelo escapamento vapor de água e CO2 na mesma condição em que é encontrado na atmosfera. Portanto, o gás é reabsorvido pela cana de açúcar na produção, resultando em ciclo de carbono neutro. Já a Volkswagen aposta em um mix de veículo elétrico na cidade, híbrido para viagens maiores e células de combustível para distâncias acima de 250 km.

Barreiras no custo de produção

Apesar do imenso potencial do hidrogênio, o processo de produção requer combustíveis ou muita eletricidade. Mesmo que a fonte energética usada no processo de eletrólise seja renovável, o volume liberado de energia no uso do hidrogênio será inferior ao que entra na sua produção, o que alguns sugerem ser apenas um desperdício de energia renovável.

Porém, o cenário é diferente quando olhamos para um país com energia renovável abundante como o Brasil. Com uma matriz energética entre as mais limpas do mundo, composta por 45% de renováveis, e uma matriz elétrica com mais de 80% proveniente de fontes limpas (Gráfico 2), o país tem enorme potencial de produção desse “petróleo verde”. Poderíamos rodar uma usina de hidrogênio verde por 24 horas, sem interrupção, uma vez que temos diversas fontes renováveis que se complementam. Apesar da sazonalidade das fontes renováveis, temos a grande vantagem da biomassa, que pode ser estocada e utilizada nos momentos que se desejar. Além disso, pensando em todos os aspectos ambientais, a produção de hidrogênio a partir de biomassa também tem vantagens em relação à produção baseada em energia nuclear, que é o caso de alguns países da Europa. A demanda potencial por hidrogênio é gigantesca e, para supri-la até 2050, será necessário utilizar todas essas tecnologias de forma complementar.

Gráfico 2 – Matrizes energéticas e elétricas (participação por grupo)
Valores em percentual, comparação do Brasil com a média mundial,
dados de 2019

 

O mercado de hidrogênio está se estruturando com a precificação por níveis de pureza diferente, quando se computa o CO2 emitido, baseado em sua fonte de produção. Em pesquisa realizada pela KPMG em 2021 sobre as diversas fontes de produção de hidrogênio no país, especialistas do setor mencionaram resíduos orgânicos (50,1%), sol (43,3%), etanol (39,5%), água (32,7%), vento (30,2%) e gás natural (17,0%) como alternativas viáveis no Brasil, e, focando no grupo dos executivos, o etanol aparece como principal fonte, seguido pelos resíduos.

A Bloomberg NEF prevê que o Brasil tem potencial para ter o hidrogênio verde mais barato do mundo até 2050. Isso mostra o potencial que essa transição energética mundial pode trazer ao país. Além da possibilidade de se tornar um exportador dessa commodity verde e sustentável, ainda teríamos a chance de aproveitar o mercado para desenvolver uma de nossas regiões mais carentes, uma vez que sol e vento são abundantes no nordeste do Brasil, por exemplo. O hidrogênio também representa uma grande oportunidade para o agronegócio, um dos setores mais competitivos do país. Ao contrário do que poderia se imaginar, o hidrogênio não compete com os biocombustíveis, mas pode complementá-lo e abrir novas oportunidades ao setor.

A biomassa residual gerada no processamento industrial da cana-de-açúcar tem aproveitamento energético, sendo destinada ao autoconsumo e à produção de excedentes de energia elétrica. Segundo a Abiogás, o potencial de produção de biogás e biometano no Brasil está estimado em 120 milhões de m³/dia. Esse volume significa quatro vezes a capacidade do gasoduto Brasil-Bolívia e equivale a 44% do consumo de diesel do país. Diferentemente do gás fóssil, que é distribuído na região costeira onde há gasoduto, o biogás e o biometano chegam ao interior porque são gerados dentro do país, com o aproveitamento de resíduos sólidos urbanos e resíduos agroindustriais. O biogás tem a vantagem, além disso, de não ter material particulado e reduzir a poluição com queima de óleo diesel para geração de eletricidade. Dessa forma, o biogás resolve dois problemas: neutraliza a carga poluidora de efluentes e gera energia, possibilitando a produção de hidrogênio, gerando receita por meio de resíduos.

Uso de etanol nos veículos elétricos

Outro caminho é a utilização do etanol diretamente em veículos elétricos movidos a célula de combustível. O mecanismo de funcionamento é relativamente simples: um tanque de combustível é conectado a um reformador catalítico, onde o álcool — puro ou com até 55% de água — é aquecido e tem suas moléculas quebradas, num processo que resulta em hidrogênio, oxigênio e carbono. Os elementos são enviados para a célula de combustível, que transforma os dois primeiros em água e isola o hidrogênio, que é transformado em energia na célula de combustível. A eletricidade gerada é armazenada na bateria e transferida ao motor. Princípio similar ao da pilha, com a diferença de que a célula a combustível apenas converte a energia, mas não consegue armazená-la. A transformação do hidrogênio pelo etanol garante alto desempenho, sem a necessidade da produção de hidrogênio puro, de uma infraestrutura de abastecimento e armazenamento do gás, e, dependendo do catalisador, seria possível fazer o flex do etanol com o metano. 

Mas vale ressaltar que, apesar do imenso potencial, a viabilidade da produção do hidrogênio dependerá da ‘construção’ de um novo ecossistema e de uma política em que ele tenha papel pré-definido, no qual, mais do que solução para o transporte, seja um sistema de armazenamento e fonte de energia para a matriz industrial. Ou seja, o país terá que desenvolver infraestrutura logística, capacitação de recursos humanos e políticas públicas de apoio ao desenvolvimento da cadeia.

Já temos vários projetos-pilotos no país, inclusive com estação de produção e abastecimento de hidrogênio baseados em hidrelétricas. Em fevereiro de 2021, o Ceará colocou o Brasil no mapa de grandes projetos mundiais, criando o primeiro hub de hidrogênio verde no país. O estado já assinou com 17 empresas e receberá investimento de 20 bilhões de dólares. Nessa mesma toada, o Rio Grande do Norte e o Rio Grande do Sul assinaram memorandos de entendimento para a produção de hidrogênio e amônia verde nos estados. Porto Açu (RJ) e Porto de Suape (PE) anunciaram projetos que incluem produção, armazenamento e liquefação de H2 verde. A CSN, em Volta Redonda (RJ) anunciou que iniciou projeto-piloto com tecnologia da empresa portuguesa UTIS, que fará a injeção de hidrogênio verde no processo produtivo de algumas áreas da usina.

Outro setor que também tem muito a ganhar é o de fertilizantes, que já vinha com preços elevados no ano passado e está enfrentando várias restrições de oferta, uma vez que a Rússia é um dos grandes produtores. Neste setor, a Raízen, grande produtora de etanol, estabeleceu um contrato de cinco anos com a Yara para a produção de hidrogênio e amônia verde. Serão 20 mil m3/dia de biometano produzidos com resíduos do processo de produção de etanol, vinhaça e torta de filtro, nos parques de bioenergia do grupo. Outro projeto que está previsto para entrar em operação em 2027, anunciado pelas empresas Aker, Statkraft e Sowitec, é o de geração de energia renovável e produção de hidrogênio e amônia, na Bahia, com o intuito de atender a indústria de fertilizantes.

Voltando para a mobilidade, a eletrificação é o caminho globalmente adotado e será inevitável no Brasil, mas há várias formas de carregar essa bateria. Há a necessidade de se pensar em estratégia plural para tecnologias de redução de emissão. Para o Brasil, que tem a infraestrutura de etanol em toda sua rede de abastecimento, a célula a combustível aliada ao etanol para o carregamento de baterias, seria a tecnologia mais viável com possibilidade de adoção imediata. Com a tecnologia da segunda geração de etanol, isso seria ainda mais interessante, reduzindo o questionamento sobre possível conflito entre produção de energia e alimentos em terras agricultáveis, principalmente em um momento em que a segurança alimentar se torna prioridade mundial.

A boa notícia é que o mercado global de hidrogênio já é realidade, e é estratégico para a Europa e outras regiões do planeta. O Brasil poderá produzir para o mercado interno e externo, mas o governo ainda precisa estruturar adequadamente a legislação. Investimentos vultosos na área de mobilidade e infraestrutura necessitam de política energética clara e estratégica para gerar vantagens competitivas para o país. A transição vai percorrer um longo caminho, e é fundamental definir aonde queremos chegar para atrair investimentos pesados que trarão desenvolvimento econômico, tecnologia e empregos. O aproveitamento pleno das fontes renováveis de energia do futuro pode ser um dos principais elementos de reposicionamento da imagem do país no cenário global. 


GLOSSÁRIO

Veículo com motor a combustão: motor tradicional baseado na combustão de combustíveis fósseis ou etanol.
Veículo elétrico (bateria carregada com eletricidade – sem motor de combustão). Plug-in na tomada: o veículo é conectado à rede elétrica para carregar a bateria.
Veículo híbrido (combustão + elétrico) – o veículo pode ser movido tanto pelo motor a combustão, quanto por eletricidade da bateria. Os veículos possuem um sistema que gera eletricidade através do movimento das rodas, carregando a bateria sem a necessidade de conectá-lo a uma rede elétrica.
Hidrogênio: o veículo é abastecido com hidrogênio, que é transformado em célula de combustível, gerando eletricidade que carrega a bateria.
Etanol: o veículo é abastecido com etanol, que vai para um reformador catalítico, onde o álcool — puro ou com até 55% de água — é aquecido e tem suas moléculas quebradas, num processo que resulta em hidrogênio, oxigênio e carbono. Os elementos são enviados para a célula de combustível, onde o hidrogênio é transformado, gerando eletricidade que carrega a bateria.
Biometano: processo igual ao do etanol, porém utilizando outro catalisador no reformador catalítico.

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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