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Interesse Nacional
11 abril 2015

Um Novo conceito de Cultura

Há várias maneiras de começar este artigo, e a primeira seria afirmar que o ministério da Cultura foi criado segundo um modelo francês e hoje está preso a um modelo de orientação populista. Claro que tanto no modelo francês quanto no modelo populista introduzimos algumas originalidades e/ou contribuições. Há uma consonância entre essa política e a aproximação, sobretudo, com certos países latino-americanos. História tumultuada.
José Aparecido de Oliveira, em 1985, foi o primeiro ministro da Cultura (no governo Sarney). Ele tinha notícias do que André Malraux fez durante o tempo de De Gaulle e sabia o que Jack Lang, no governo socialista de Mitterrand, estava fazendo na França.
Retomemos a história: durante a ditatura de Getúlio (1930-1945), havia o MEC – Ministério da Educação e Saúde. O país tinha entre 30 milhões e 40 milhões de habitantes, era bem mais provinciano, e achava-se que ‘educação e saúde’ iam de par. A palavra ‘cultura’, portanto, nem aparecia. Era uma ausência subentendida.
Ao tempo de outra ditadura (1964-1985), também a palavra ‘cultura’ estava ausente. E na administração de Aloísio Magalhães (1979-1982), introduziram-se duas modificações: a Funarte e o Conselho Federal de Cultura. Desse conselho faziam parte alguns nomes conhecidos de intelectuais para dar respaldo às ações do governo. Contudo, convenhamos, o ‘ministério da Cultura’ não existia. Era uma secretaria dentro do MEC. (seria, aliás, interessante fazer a comparação entre o orçamento que essa secretaria tinha (ou teria) e o que o ministério da Cultura (MinC) dispõe hoje. É possível que tivesse uns 10 bilhões em vez dos atuais minguados R$ 2 bilhões).
Depois de ter desprezado a cultura, de ter posto em marcha o que ficou conhecido com o nome’desmonte’, o governo Collor mudou de rumo e nomeou o escritor/embaixador Sérgio Rouanet para secretário de Cultura. O ministério havia sido rebaixado ao nível de uma simples ‘secretaria’; e quem viveu aquela realidade, sabe que tal secretaria tinha uma estrutura precária para funcionar.
Trepidações políticas várias fizeram com que os ministros da Cultura se sucedessem de maneira atabalhoada. Aliás, essa era a norma, e muitos viam nisto também a desimportância da Cultura em relação aos demais ministérios.
Para se ter uma ideia, apenas no governo José Sarney tivemos: José Aparecido de Oliveira, Aluísio Pimenta e Celso Furtado.
No curto governo Collor: Ipojuca Pontes e Sérgio Paulo Rouanet.
No também curto governo Itamar: Antônio Houaiss, Jerônimo Moscardo, Luiz Roberto Nascimento Silva.
No governo Fernando Henrique Cardoso, quando se perseguia a estabilidade, manteve-se Francisco Weffort. O mesmo ocorreu no governo Lula com a dupla Gilberto Gil e Juca Ferreira. A nomeação para aquela pasta de Gilberto Gil (2003), um cantor popular de cor negra, assinala uma virada significativa. Essa nomeação foi sintomática de muitas mudanças. O governo passava a descobrir ou se interessar pelas “periferias”, pelos quilombos, pelos índios, enfim, pelos que tinham até então sido excluídos culturalmente. E disto, sumarizando, os “pontinhos”, “pontos”e “pontões” de cultura são exemplos notáveis.
No governo Dilma, nova trepidação com os nomes sucessivos de Ana de Hollanda, Marta Suplicy e Ana Wanzeler, e agora o retorno de Juca Ferreira no segundo governo Dilma.
Os caminhos e descaminhos do Ministério da Cultura nos levam a uma observação comparativa e desnorteante. Os Estados Unidos, país que mais influencia a cultura das outras nações, não têm um ministério da cultura. Ou seja, lá, eles transformam a cultura americana em“commodities”, o que faz com seja gerida como se fosse algo afeto ao setor comercial. Basta que se veja a formidável indústria cinematográfica americana e sua penetração em todo mundo. Isto não ocorre por acaso. Evidentemente que os americanos, ao lado disto, criaram mecanismos de financiamento de sua cultura baseados em doacões, deduções no imposto de renda de tal forma que fortunas são aplicadas em universidades, museus e fundações as mais variadas. O milionário americano, por várias razões, investe em cultura.
É assim que os produtos (filmes, música, livros) estão conectados com a sociedade mercantilista americana. Confiram isto no livro “How New York Stole the Idea of Modern Arte”, de Serge Guilbaut, que explica como e por que os Estados Unidos tomaram o lugar da França (culturalmente) depois da Segunda Guerra Mundial. Foi uma operação pensada, relacionada com a estratégia política. Quem tem dúvidas sobre isto, deve ler “Quem Pagou a conta?”, de Frances Saunders, livro que narra a intervenção da CIA e do Departamento de Estado na Bienal de Veneza e a criação de uma “Otan cultural”durante a guerra fria. Assim, diluiríamos a ideia simplista de que a cultura anda por si mesma.
Mas, estaria eu dizendo que devemos acabar com o Ministério da Cultura e seguir o modelo americano?
Não.
Ou estaria tentando dizer que temos que superar a cópia do modelo francês, do modelo americano e superar o modelo populista?
Sim. Como?
Novo conceito de cultura
A solução é partirmos para um novo conceito de cultura.
Depois do fracasso do nazifascismo e da débâcle do comunismo, sabemos que o dirigismo estatal sobre ser ditatorial seleciona (inconvenientemente) o tipo de arte ou cultura a ser financiado e produzido. O populismo segue uma via similar e privilegia um certo olhar idealista e ingênuo que acaba reforçando uma determinada ideologia e um tipo de consumismo. A atual política populista brasileira anseia por jogar na faixa de consumo uma parcela da população antes marginalizada. E, sobre isto, tem havido uma maciça propaganda de louvor das classes C, D e E do mercado. Fontes oficiais não se cansam de alardear que cerca de 30 milhões ou 40 milhões de pessoas tiveram acesso recente à sociedade de consumo. E jornais, por razões, sobretudo, econômicas, se prestam a fazer reportagens sobre a questão.
É hora de se analisar isto. Não se pode ser contra a legítima ascensão econômica de pessoas ou grupos. Se isto é bom para a economia, se isto é bom para as estatísticas, por outro lado, mostra um lado da prática social que merece ser discutido. O que se verifica é que os consumidores acabam sendo consumidos; viram também produto. Repete-se aqui a lei máxima da internet: se você está na internet e ninguém está tentando lhe vender algo, é sinal de que você é o produto.
Tome-se a Radiografia das Favelas Brasileiras (2013). Diz-se aí que as favelas movimentam R$ 64,5 bilhões por ano. Segundo comparações, isto ultrapassa o PIB do Paraguai e o da Bolívia juntos. E a pesquisa feita entre seu seus moradores atesta que eles estão “felizes”e não querem sair de lá. Seria bom analisar isto.
Este é um problema cultural, não apenas urbanístico. E essa informação econômica deve ser lida sociológica e antropologicamente.
Uma outra questão que ajuda a redefinir um novo conceito de cultura vem da pergunta. Quantas pessoas efetivamente estão trabalhando na área da cultura?
Assinala-se, para espanto de muitos, que há mais gente na área da cultura do que na indústria automobilística. E, no entanto, qualquer trepidação na área dos automóveis quase paralisa o país. Não seria exagero, baseado em estudos já existentes, estimar em mais de 10 milhões de pessoas as que estão diretamente produzindo cultura. Mas, pode-se ir além e dizer que os 202 milhões de brasileirros são produtores (inconscientes) de cultura. E é aí que devemos chegar ou daí que devemos partir.
Estamos dizendo, enfim, que há que tirar “cultura”do seu nicho secular. A cultura não está só no Ministério da Cultura. Está em todas as partes, na dança do passinho, no tráfico e nas milícias. Está no lixo, por exemplo. Lixo é cultura. Há que ler o lixo, compreender o desperdício e os que vivem nos lixões. Por outro lado, há uma relação entre quem ultrapassa pelo acostamento e os atordoantes desvios na Petrobras. Há um lado invisível na cultura que tem que ser anotado.
Dou-lhes um exemplo concreto.
A indústria livreira, papeleiros e editores se deram conta de que o lugar correto para discutir alguns de seus problemas era o Ministério da Indústria e Comércio. Isto ocorreu na gestão de Dorothea Werneck com bons resultados. Pena que não se repetiu. Outra experiência que deve ser retomada é a reunião conjunta do primeiro e segundo escalão do governo para que se saiba o que o governo está fazendo no seu conjunto. É a maneira de os principais reponsáveis pelo governo terem ideia do que outras áreas estão realizando e, evitando o desperdício, provocarem um entrelaçamento de projetos.
Ou seja, a “cultura”está (também) fora do Ministério da Cultura. E o presidente da República deveria provocar a integração da cultura com todos os ministérios.
Numa acepção nova, cultura ultrapassa o Ministério da Cultura. Ela tem que parar de ser uma cultura de “puxadinhos”. E o “ puxadinho” tem que ser analisado além do que disse o secretáro de Segurança do Rio de Janeiro. Só assim se entenderá que uma coisa é um país, outra, um ajuntamento.
Algumas questões internas
Como é reconhecido pela maior parte do país, não apenas o PT está em crise. O conceito de cultura que foi posto em prática pelo governo atual não corresponde às exigências de um país plural e complexo. Claro que de um ponto de vista administrativo, pequeno, burocrático, há problemas que precisam ser solucionados, e um ministro da cultura terá que cuidar disto.
Dou alguns exemplos de coisas que precisam ser examinadas mais de perto:
• O setor cultural precisa aprender a linguagem das empresas;
• As empresas desconhecem os benefícios do apoio à cultura;
• Na questão de financiamento às atividades culturais pelo governo, já existe o Ficart, o Fundo de Investimento Cultural e Artístico. No entanto, nunca saiu do papel, por falta de interesse das empresas;
• Há dez anos, está parado no Congresso a PEC 150, que propõe elevar para 2% o orçamento da cultura. O ministro Jerônimo Moscardo foi demitido, entre outras coisas, porque propunha 6% para a cultura;
• O setor cultural (e o seu mercado) carece de maior profissionalização e pessoal capacitado;
• O MinC precisa ser melhor equipado e ter mais funcionários para dar conta dos projetos apresentados. Há boa vontade do pessoal, mas outros fatores tornam difíceis o atendimento e o andamento dos projetos;
• O MinC também poderia ajudar esses produtores despreparados no processo de captação junto às empresas;
• Conscientização do empresariado e capacitação do setor por meio de sistemas “S” (Sesi, Sesc, Sest), Federações e Sebrae.
• A Lei Rouanet não deve, necessariamente, ser substituída pela Procultura. Deve ser melhorada, como já foi quatro vezes;
• Cinema: há uma reclamação geral sobre a burocracia que cerca essa área. O Fundo Setorial do Audiovisual tem baixíssima execucão. O FSA investe menos de 10% de sua arrecadação. Outro problema: os filmes comerciais estão dominando a cena. Como dar força aos filmes experimentais ou não comerciais, de acordo com o manifesto de alguns cineastas?;
• Em dezembro de 2013, o governo anunciou um pacote de R$ 400 milhões, dos quais quase nada foi executado até agora. Em junho de 2014, anunciaram um pacote de R$ 1 bilhão que não deve ser executado este ano. Ou seja, o MinC gasta pouco, não por falta de recursos, e sim por incapacidade administrativa de investi-los, criando uma enorme frustração nas pessoas que trabalham com o audiovisual;
• De cada R$ 10 captados, apenas R$ 1 é dinheiro privado. Os outros R$ 9 são de renúncia;
• A lei 12.244/10 prevê que apenas em 2020 as escolas terão bibliotecas. Em 2011, 72,5% das escolas não tinham bibliotecas. É necessária uma integração MinC e MEC, educação e cultura, para fazer avançar isto;
• Livrarias: 2/3 dos municípios não têm livrarias. Como lidar com isto em tempos de internet? Qual o projeto virtual, à altura do século XXI, para resolver o que não foi resolvido em 500 anos? A biblioteca virtual (iPhone, iPad, computadores, etc.) merece estudo;
• Há problemas sobre a forma de ocupação dos Centros Educacionais Unificados (Ceus), criados por Marta Suplicy. Ela pretendia fazer 340 e 80 estão em fase de ocupação. Há que ver como estão funcionando (ou não), porque uma coisa é o anúncio do programa, o ímpeto inicial, outra, o seu funcionamento;
• A aprovação de projetos e alterações nos orçamentos são muito demoradas. A prestação de contas exige um detalhamento paralisante;
• Dados sobre cinema/Ancine: temos 2.679 salas de exibição, mas 50% em municípios com mais de 500 mil habitantes;
• Temos que analisar de perto, além das promessas eleitoreiras, e ver como funciona (ou se não funciona) o projeto “Cinema perto de você” e o “ Brasil de todas as telas”;
• Há que ver/rever também como funciona o “Vale Cultura”, que pretende atender a quem ganhava até cinco salários mínimos (R$ 3.620,00);
• Teatro: os da área dizem que há que desburocratizar a maneira de apresentar documentos, prestação de contas, etc.;
• O Brasil tem que deixar de ser provinciano, atuar mais na Comunidade dos Povos de Língua Portuguesa (CPLP). Temos que melhorar os “leitorados” de cultura brasileira no exterior. Exportar nossa cultura e ampliar a divulgação da cultura brasileira no exterior.
Conclusão
Em síntese: temos que reinventar o conceito cultura. Ir além do elitismo e do populismo. Ir além do mercado e além dos estereótipos.
Trabalhar a cultura de um povo é um trabalho conjunto: trata-se de elaborar o simbólico da comunidade. E isto é uma tarefa que prevê integração de esforços e uma vontade política que ultrapassa as operações simplesmente burocráticas.

Affonso Romano de Sant’Anna dirigiu o Departamento de Letras da PUC/RJ, trazendo pensadores como Michel Foucault e reorientando, com sua equipe, os estudos literários no país. Como presidente da Fundação Biblioteca Nacional (1991-1996), criou o Sistema Nacional de Bibliotecas, o Programa Nacional de Incentivo à Leitura (Proler), informatizou e modernizou a instituição, desenvolvendo programas de exportação da Literatura nacional, do qual resultou a escolha do Brasil como tema da Feira de Frankfurt (1994) e do Salão do Livro de Paris (1996). Professor em várias universidades brasileiras, lecionou também nos Estados Unidos, na França e na Alemanha. Como cronista, substituiu Carlos Drummond de Andrade no 'Jornal do Brasil'. Sua obra poética está em 'Poesia Reunida' (L&PM). Ensaios específicos sobre questões da arte hoje são encontrados em 'O enigma vazio', um dos cerca de cinquenta livros publicados.

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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