Uma Reforma Muito Além do Judiciário
Poucas instituições nacionais mudaram tanto nestes primeiros vinte anos da Constituição de 1988 quanto o Poder Judiciário. Os indicadores são palpáveis.
Primeiro, reconquistou, exerceu e consolidou a independência política perdida no regime militar. Sem ela, como a secular experiência nacional – e internacional também – demonstra, inexistem Estado de Direito e democracia. A independência concentra-se no Supremo Tribunal Federal e tem tido nele seu maior símbolo. Nos dois mandatos do atual Presidente da República, sete novos ministros ingressaram no STF. Não se concretizou, porém, o receio – como, de resto, parece querer concretizar-se agora nos Estados Unidos – de que, diante das novas nomeações, o Supremo tendesse a uma “partidarização” política. Não nos tem faltado Supremo “apartidário”.
Segundo, o debate sobre a reforma da administração da Justiça extrapolou o círculo restrito dos especialistas em Direito processual, dos desarticulados interesses dos usuários da Justiça e dos articulados interesses corporativos dos profissionais e de alguns setores econômicos. A evidência de que, numa democracia, o Poder Judiciário detém a palavra final no quotidiano das instituições, empresas, comunidades e cidadãos despertou e mobilizou a opinião pública. Os dados são eloqüentes. A experiência judicial atinge a cada dia um número maior de brasileiros. Kazuo Watanabe lembra, por exemplo, que, no ano de 2004, enquanto a população de São Paulo cresceu 1,14%, o número de processos aumentou 12,49%. Ou seja, acima de dez vezes mais. Mais ainda. Para cada grupo de dez habitantes já existem três processos. A reforma da administração da Justiça é, hoje, tarefa prioritária de interesse nacional, tanto quanto – talvez até mais que – as reformas fiscal ou trabalhista.
A conseqüência da crescente massificação da experiência judicial foi a crescente atenção e pressão da mídia em favor da reforma. De quase sempre amarga experiência dos cidadãos, para prioridade na agenda nacional e, daí, para prioridade na pauta das redações. E vice-versa. Por isso assistimos, nestes vinte anos, à intensa mudança nas relações entre o Judiciário e os meios de comunicação. Mudança decisiva para a expressão do interesse nacional.
Terceiro, o Poder Judiciário, de parceria com o Congresso, iniciou intensa reforma institucional interna. Dois exemplos apenas. Paralelamente à consolidação democrática, a Justiça eleitoral surgiu como uma das melhores do mundo. Ainda que restem problemas não solucionados, também existentes em outros importantes países, como o difícil controle do financiamento eleitoral, trata-se de Justiça pioneiramente informatizada, crível, realmente de âmbito nacional, não corrupta, capaz de assegurar legitimidade e estabilidade a eleitores e eleitos. Capaz, inclusive, de ousar ocupar o vácuo legislativo, fruto de paralisia congressual, diante de propostas de mudanças no sistema eleitoral de que o país carece.
Em matéria eleitoral, nosso déficit está mais nas hesitações do Legislativo em forjar um novo regime partidário e eleitoral do que na eficiência e independência judicial.
Outro exemplo é a criação de inédito órgão de fiscalização, controle e planejamento de magistrados e tribunais: o Conselho Nacional de Justiça. Já implantado e com bom acervo de decisões que modernizam a infra-estrutura ética e gerencial do Judiciário. Tais como: término do nepotismo; estabelecimento de tetos salariais para magistrados e eliminação dos adicionais (ainda que não de todo domados); informatização do processo judicial através de software livre; criação de estatísticas judiciais nacionais, inclusive da corregedoria, sem as quais não podem ser feitas políticas judiciais realistas; e muito mais. Mas falta muito. Pelo mandato que recebeu do Congresso e da sociedade, faltam, ainda, mais decisivo combate à corrupção e à lentidão, e a ampliação do acesso à Justiça às classes e comunidades mais carentes.
A questão que, então, se coloca é: estando em curso esses processos de independência política e reforma administrativa, como prosseguir? A resposta é óbvia. Trata-se, antes de tudo, de consolidar e aprofundar estas conquistas iniciais. Não estou certo, porém, que se consolidem por si sós.
Como na vida pessoal, a vigilância sobre os objetivos que traçamos para nós mesmos deve ser permanente. Receio retrocessos se não transformarmos o ideal de amplo acesso a uma Justiça ágil em agenda e vontade política nacional permanentes. E se não traduzirmos essa vontade em inovação institucional e realização efetiva. Não há que esconder. O atual modelo se sustenta através de uma, às vezes articulada, às vezes simplesmente caótica, teia de interesses setoriais intra e extra Judiciário. Teia de interesses e antiguidades que retira da ineficiência operacional e da exclusão do acesso à Justiça seu pão e sua água. Sua vida ou sobrevida. Como desfazê-la?
Paulo Daflon Barrozo diz que interesses nacionais que não se concretizam transformam-se em ilusões nacionais. Iludem e paralisam mais do que estimulam e mobilizam. O risco é este.
A judicialização do déficit público
Este texto chama a atenção para uma hipótese que, latente, começa a ficar evidente. Trata-se de “hipótese-diagnóstico” quase óbvia, mas que não tem recebido a devida relevância na mídia, nem entre as lideranças dos próprios magistrados, que seriam os principais beneficiados dela. Nem nas universidades, nem no Congresso Nacional. Nem estimulou a imaginação institucional inovadora, sem a qual não se transforma, diria Bernard Henry Levy, a permanente censura – no caso, a magistrados e tribunais – em permanente proposta de todos.
O interesse nacional não vive apenas na excelência da crítica, por mais justa e precisa que seja. Assim como o paciente não sobrevive apenas de diagnósticos. A repetição exaustiva da crítica não é capaz de, por si só, substituir a realidade existente, diria Carlos Alberto Direito, ministro do Supremo.
A consolidação e aprofundamento das conquistas não ocorrerão sem que se crie um consenso fundamentado num entendimento básico, a saber: a reforma do Judiciário é “multitarefa”, de muitos atores e diferentes responsabilidades. Em outras palavras, a solidão, às vezes acuada, outras vezes agressiva, do Poder Judiciário nem é um entendimento correto da crise, nem é do interesse nacional.
A responsabilidade pelo atual modelo é tanto do Judiciário, como, ao mesmo tempo, do Congresso e do Poder Executivo, das entidades representativas das empresas e dos trabalhadores, dos profissionais jurídicos, das universidades, das associações da sociedade civil, sobretudo dos usuários da Justiça.
Ou seja, a reforma da administração da Justiça não é questão exclusivamente interna ao Poder Judiciário. Mas referente ao conjunto dos interesses e relações sociais políticas, econômicas e culturais que, a partir daí, se formam e entrelaçam, se legalizam e institucionalizam. Na reinvenção desse entrelaçar escondem-se os novos e mais amplos limites e possibilidades do sistema judicial na democracia.
Se o foco da mudança for apenas um aperfeiçoar, conservar, reformar ou mesmo revolucionar o Poder Judiciário (leitor, escolha sua alternativa), ela será sempre insuficiente. Há que mudar, também, a natureza e a forma de suas relações com a sociedade, os profissionais jurídicos, os demais Poderes da República.
A “multilateralidade” da tarefa, poderia dizer Rubem Barbosa, é evidente. Basta perguntarmos: até que ponto o excesso de recursos, que provoca a lentidão das sentenças, responde à demanda corporativa dos advogados? Até que ponto a interpretação judicial de primeira instância – para muitos, excessivamente ativista – é conseqüência de um déficit de representação político-democrática das leis, ou, como diria, numa feliz síntese, Henrique Fábio Pierre, conseqüência de uma confusão entre “Estado de Direito” e “Estado de normas”? Entre Rule of Law e Rule of Laws? Até que ponto a lentidão processual é manipulada pela inevitável análise econômica de custo e benefício de interesse dos litigantes? Até que ponto o acesso à Justiça – excesso e exclusão – apenas reflete a desigual distribuição de renda nacional? Até que ponto a estruturação processual, administrativa e financeira dos tribunais subsidia e encobre uma ineficiência administrativa e financeira do Poder Executivo?
As respostas a estas questões transformam os tribunais e magistrados de protagonistas únicos e autônomos, de responsáveis exclusivos, em arenas interdependentes e abertas a múltiplos interesses “extra-Judiciário”. O foco de uma nova estratégia de reforma devem ser os anéis, poderia dizer Fernando Henrique Cardoso, ou seja, as alianças intra e extra Judiciário. Debitar as dificuldades da administração da Justiça à exclusiva culpa e responsabilidade de tribunais e magistrados não consolida as iniciais conquistas. Fácil perceber.
De uma perspectiva econômica, o acesso à Justiça e a agilidade dos processos judiciais são variáveis consideradas pelos agentes como “custos transacionais endógenos ao Poder Judiciário”, como lembra Antonio José Maristrello Porto. São custos atribuídos ao Poder Judiciário que afetam diretamente os incentivos para as trocas entre os agentes. Trocas que buscam maximizar a riqueza na sociedade. À medida que a percepção dos agentes é negativamente afetada pelos altos custos transacionais associados, hoje, ao Judiciário brasileiro, ocorre uma diminuição dos incentivos para a realização de trocas, o que prejudica a sociedade e o mercado como um todo. No entanto, reconhecer a existência de “custos transacionais endógenos” não significa dizer que a redução de tais custos não depende de fatores externos ao Poder Judiciário. Parte importante deles depende, sim. Essa é a nossa hipótese. E queremos, hoje, colocar luz em apenas um desses fatores exógenos.
O uso patológico do Judiciário pelo Executivo
Trata-se da prática, aliás, mais do que prática, verdadeira cultura, cada vez mais freqüente, do Poder Executivo em tentar diminuir seus próprios custos transacionais ou operacionais, transferindo-os ao Poder Judiciário. Trata-se, no fundo, da cultura de judicialização do déficit público. O atual modelo permite ao Poder Executivo fazer aquilo que denomino “uso patológico” da administração da Justiça. Esse uso patológico acaba por impor ao Judiciário pelo menos dois tipos de custos que não são seus. São do Executivo. Por um lado, velados custos financeiros. Por outros, deslegitimadores ônus políticos. Pretendo, daqui em diante, agrupar alguns indicadores já visíveis e consensuais que exemplificam esses custos, fundamentam minha argumentação e confirmam a hipótese-diagnóstico.
O primeiro indicador denomino “estatização da pauta do Judiciário”, o que sobrecarrega, indevidamente, a administração de Justiça. Transcreveremos, a seguir, alguns exemplos empíricos e consensuais – reconhecidos pelo próprio Poder Executivo – de como essa estatização constitui verdadeiro subsídio orçamentário de um Poder para o outro. Iluminar e enfrentar essas transferências disfarçadas, extingui-las, ou, pelo menos, criar um sistema contábil de apropriação de custos mais verdadeiro, é indispensável para a harmonia e independência dos Poderes. Que não deve ser um princípio apenas político. Deve ser contábil também.
O segundo indicador são os financiamentos compulsórios que o Judiciário e as partes são obrigados a conceder ao Tesouro Nacional para fortalecer um sempre insuficiente fluxo de caixa. Esses financiamentos compulsórios, às vezes quase até subsídios, além de transferirem renda do Judiciário e dos usuários da Justiça para o Executivo, impõem ônus de deslegitimação política.
Trata-se de reação em cadeia. O uso patológico do Judiciário pelo Executivo aumenta-lhe a ineficiência operacional e o faz perder legitimidade diante dos cidadãos. Um poder que não funciona. O mínimo que ocorre é um aumento da insegurança jurídica e a criação de um vácuo potencialmente desestabilizador das instituições democráticas: a descrença na Justiça.
Ambos os mecanismos – a estatização da pauta e o financiamento compulsório – vicejam há décadas na história jurídica, política e financeira da administração da Justiça. Não são de responsabilidade deste ou daquele governo. Todos os governos, de qualquer partido, deles se beneficiam. Mais do que um ato, é uma cultura. São práticas e crenças institucionais que precisam ser mudadas. Modelo a se recriar em nome do interesse nacional.
O primeiro indicador:
A estatização da pauta do Judiciário
Nem mesmo o Supremo detém, tecnicamente, o controle total de sua pauta decisória. Quem o detém são os litigantes. O Executivo é o principal deles. Estes, quando propõem uma ação, detêm a exclusiva iniciativa de fazer o Judiciário decidir. Acionam o sistema. O que está certo. Trata-se de mecanismo indispensável ao equilíbrio de Poderes. Diante do imenso poder que o Judiciário tem, uma das maneiras de contê-lo, para que não invada os limites dos outros poderes, é respeitar o princípio da inércia judicial: o Judiciário não age, reage. É ser, como muitos – radicalmente – dizem, um poder sem iniciativas.
Se assim é e deve ser, o Judiciário não controla, ao menos de início, nem a quantidade nem a qualidade de sua demanda. O que ocorre, então, se esta demanda for inadequada? Temerária? De má-fé? O que ocorre se o Judiciário estiver sendo usado patologicamente? Esse não controle de sua demanda acaba abrindo a possibilidade para que o Poder Executivo, a fim de reduzir seus custos internos, em algumas situações – não todas, evidentemente – se aproprie, inadequadamente, do direito de peticionar e da ampla defesa.
Darei dois exemplos de estatização da pauta. O primeiro, de estatização da pauta de primeira instância. O segundo, da pauta do próprio Supremo.
Atentemos, inicialmente, para prática corriqueira e usual nas Fazendas nacional, estadual e municipal que agora descrevo. E para suas conseqüências também. Ao exercer a competência-dever de fiscalizar o pagamento de impostos e defender o Erário Público, a Receita Federal e Secretarias de Fazenda acompanham as declarações dos contribuintes. Havendo qualquer indício de irregularidade, abrem procedimentos internos. O que leva tempo. Havendo infração ou suspeita de infração, abrem-se processos administrativos. O que também leva tempo. A duração dessas tarefas fiscalizatórias tem, no entanto, um limite. Não podem ser eternas. A necessidade do limite temporal, do prazo prescricional, tem sentido democrático: impedir que o contribuinte e sua liberdade fiquem, a vida inteira, sob uma espada de Dâmocles. Presos “por um fio”.
O prazo prescricional, nesse sentido, tem várias funções: a) estabelece um prazo gerencial para que a tarefa seja concluída com eficiência; b) limita o poder discricionário da autoridade fazendária diante da liberdade do contribuinte; e, por fim, c) consolida a segurança jurídica administrativa do sistema, como gosto de qualificar (ver a respeito Joaquim Falcão, Luís F. Schuartz & Diego Arguelhes, “Jurisdição, Incerteza e Estado de Direito”, Revista de Direito Administrativo – RDA, São Paulo, Atlas, 243: 79–112, set.-dez. 2006).
Se assim não fosse, inúmeras transações negociais jamais poderiam ser completadas. Nem o comprador nem o vendedor poderiam estimar, com um mínimo de segurança, o valor da transação. A eventual desconhecida dívida fiscal seria um enigma, se não paralisante, pelo menos altamente dificultador da transação. Nem a declaração do vendedor, nem a das autoridades bastariam. O atual prazo prescricional para cobrança tributária é de cinco anos (art. 174 do CTN).
Mas o que em muitos casos, hoje, ocorre? Se procedimentos e processos administrativos da administração fiscal não terminam dentro do período legal, muitos procuradores da Fazenda, nos três níveis de governo, ajuízam ações nas vésperas do encerramento do prazo prescricional para evitar que a prescrição ocorra. Nessa sua prática diária, propõem milhares de novas ações. Judicializam a fiscalização de todo inacabada. Mantêm o contribuinte subordinado e inseguro diante de futuro irrazoavelmente imprevisível.
Excelente estudo recente do Ministério da Justiça sobre execuções fiscais no Brasil conclui: “[…] essa prática – da qual não escapam o Executivo municipal, estadual e federal – é explicada em parte pela demora do processo administrativo, mas também pela desorganização de determinados órgãos […]” (cf. Ministério da Justiça, Secretaria de Reforma do Judiciário, Estudo sobre Execuções Fiscais no Brasil, São Paulo, agosto de 2007, p. 63). Duas conseqüências daí decorrem: o Poder Executivo ajuíza ação fiscal sem uma avaliação mais rigorosa das efetivas chances de satisfação do débito; e isenta-se o órgão público (no caso, do Poder Executivo) de responsabilidade.
Não nos faltam propostas para resolver, ou minimizar, esse problema: legalizar sistema de compensação de dívidas entre Estado e contribuinte, estimular a conciliação administrativa e pré-judicial, desburocratizar e racionalizar o processo administrativo, criar um contencioso administrativo custeado pelo Executivo mas dele independente etc.
A dificuldade é que essas mudanças não somente interferem nos custos financeiros do Executivo como exigem nova formação e mentalidade dos advogados públicos. Exige, também, uma nova legislação sobre a responsabilização civil do funcionário público. Em meu entender, mover ações fiscais contra o contribuinte sem rigorosa avaliação das chances de êxito e com a intenção de procrastinar o prazo prescricional é, no mínimo, lide temerária. Ocorre que a penalidade para lide temerária ou ações claramente protelatórias é imposta pelo juiz à parte litigante: ao Poder Executivo. Dificilmente chega a seus profissionais e agentes.
Em matéria fiscal, têm faltado mais eficiência, limites e transparência da Administração Pública do que imparcialidade e presteza do Poder Judiciário. O resultado líquido é que, muita vez, se transferem para o Judiciário os custos e o risco das fiscalizações inacabadas do Executivo. Judicializa-se. Sem falar nos efeitos colaterais, como o agravamento do engarrafamento processual dentro do Judiciário. Custos transacionais internos adicionais.
O segundo exemplo de estatização da pauta diz respeito ao Supremo Tribunal Federal, mesmo quando já se avizinham dois novos instrumentos criados pelo Congresso, capazes de reduzir o número de casos – mais de cem mil (ver, a respeito, Estatísticas do STF, disponíveis em http://www.stf.gov.br) – que lhe chegam todos os anos: a súmula vinculante e a repercussão geral. De agora em diante, tal como nos Estados Unidos, onde se julga cerca de apenas cem processos por ano, o Supremo pode escolher os casos que têm repercussão geral e, a partir deles, dar maior densidade institucional ao seu caráter de Corte político-constitucional que é. E deveria ser exclusivamente.
Recentíssimo e excelente estudo estatístico do próprio Supremo sobre os Recursos Extraordinários e Agravos de Instrumento – ao todo, 3 991 – que nele chegaram entre julho e novembro de 2007, já distribuídos aos ministros com a preliminar de repercussão geral por assunto, demonstra que, de cada cem casos, cerca de setenta são de interesse direto do Poder Executivo. Interesses inicialmente constitucionalizados e, depois, judicializados. Sem mudar a natureza dessa demanda geneticamente estatizada, pouco pode ser feito. O quadro abaixo é bastante ilustrativo.
Os dados são claros: a estatização é fruto da demanda exógena oriunda dos problemas da Administração Pública e legalizada pelo Legislativo. O sistema judicial não precisa ser assim. Basta comparar a presença mínima de questões fiscais e sobre servidores na Suprema Corte norte-americana.
Vejam só. A primeira maior demanda que chega ao Supremo, 20,32% dos Recursos Extraordinários e Agravos de Instrumento, dizem respeito aos interesses dos servidores públicos. Falta pesquisa mais extensa, mas ousaria dizer que o Brasil é um dos únicos países do Ocidente – se não o único – onde a Constituição trata de servidor público em tantos dispositivos – são 62 (!), entre títulos, artigos, parágrafos, incisos e alíneas, que contêm as palavras “servidor” ou “servidores” . Na França, ao contrário, a Constituição especificamente determina que se trata de matéria infraconstitucional. Essa constitucionalização do serviço público nem assegurou o que o país necessita – uma burocracia altamente profissional, apartidária e estável – nem tranqüilizou os próprios servidores. Ao contrário, atua como estímulo ao permanente conflito, à mobilização judicial e à insegurança jurídico-administrativa. Aumenta os custos globais da administração da Justiça, mesmo diante de improvável vitória corporativa.
A comparação é inevitável. Enquanto o Supremo é compelido a gastar tempo e recursos para resolver conflitos entre a Administração Pública e seus servidores, nada, ou quase nada, lhe chega sobre os conflitos entre empregados e empregadores. O número de empregados e trabalhadores domésticos no Brasil, hoje, ultrapassa a casa dos 54,7 milhões. Já o total de servidores públicos e militares é de algo em torno de 5,5 milhões (ver, a respeito, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – PNAD, 2005, IBGE). O desequilíbrio é evidente. Na pauta do Supremo, o socialmente “menos” quer ser, e tem sido, o judicialmente “mais”. Um vale mais do que dez. Em matéria de relações de trabalho, a constitucionalização dos interesses dos servidores públicos impõe, proporcionalmente, ao Judiciário mais custos do que a atual legislação trabalhista.
Estes dados, recentíssimos, não inovam. Ao contrário, acumulam-se. O Estudo sobre Execuções Fiscais do Ministério da Justiça, acima mencionado, demonstra que, em 2005, 51% de todas as ações em tramitação no Tribunal de Justiça de São Paulo eram de execução fiscal – o que corresponde a cerca de oito milhões de processos. No Rio de Janeiro, esse número era de 56%. Na medida, porém, em que, na Justiça Federal, no primeiro trimestre de 2006, as execuções fiscais eram 36,8% do total de ações em tramitação e, no Rio Grande do Sul, eram 24% – ou seja, bem menos – fica claro que essa estatização da pauta não é um destino. É muito mais uma policy judicializante imaginada para superar eventuais ineficiências administrativas do Executivo, ou eventuais leis fiscais temerárias, e que pode ser contornada.
A contrapartida é que os conflitos decorrentes de relações familiares, comunitárias e negociais são equacionados em outras instâncias. Ou nem mesmo judicializados. A pauta do Judiciário precisa de mais mercado, comunidades e sociedade civil, e de menos Estado.
Segundo indicador: o financiamento e subsídios compulsórios
O financiamento compulsório pode ser apreendido por uma pequena história. Em outubro de 2005, coube ao Congresso votar a Medida Provisória n. 252/05, que propunha uma série de estímulos fiscais, conhecida como a “MP do Bem”. Às vésperas de sua apreciação pelo Congresso Nacional, foi inserida a emenda parlamentar n. 27, que nada tinha a ver com a finalidade da MP. Discretamente, ela alterava o artigo 17 da Lei dos juizados especiais federais – Lei n. 10 259/01 – permitindo não apenas o atraso e a não correção do pagamento das decisões judiciais de até 60 salários mínimos favoráveis a aposentados, contra o governo, como também que o pagamento só fosse feito se o orçamento do ano seguinte tivesse previsão para o gasto. Por quê? Qual a razão de ser dessa discreta emenda?
A história foi a seguinte: Em 2000, o Supremo decidira que as contas do FGTS dos trabalhadores deveriam ser corrigidas de acordo com o Índice de Preços ao Consumidor (IPC), e não com base nos rendimentos da Letra Financeira do Tesouro Nacional (LFT), como pretendia o governo nos planos “Verão” e “Collor I” (ver, a respeito, RE 226855-RS – Rel. Min. Moreira Alves – DJ 13-10-2000). Vitoriosos depois de quase uma década na Justiça, os trabalhadores recorreram em massa aos Juizados Federais, nas causas até sessenta salários mínimos, para recuperar o direito até então negado pelo governo. Essa decisão representava um custo financeiro enorme para o Tesouro Nacional. Em outras palavras, por anos o Tesouro Nacional financiara-se através da diferença de índices aplicados nos fundos dos trabalhadores. Agora, tinha que pagar. Os credores correram em massa ao Judiciário.
Aí vem a surpresa: os Juizados Especiais foram tremendamente eficientes, como os idealizaram Hélio Beltrão e José Geraldo Piquet Carneiro. Milhares de casos foram decididos em pouco tempo. Condenava-se, de acordo com a jurisprudência do Supremo, a União. As condenações superaram em muito as provisões, quase sempre insuficientes, do Orçamento da União. O governo federal viu-se diante da tarefa de estancar essa justa sangria judicial do Tesouro. Mas como fazê-lo contra o Supremo? Como fazê-lo diante do reconhecimento de um direito legal e legítimo que, até então, tinha sido negado a milhões de trabalhadores?
Se o Executivo não paga as condenações dos Juizados, os juízes têm competência para decretar o seqüestro das receitas estatais (art. 17, §2º, da Lei n. 10 259/01). Ou seja, seqüestrar recursos do Poder Executivo, onde quer que estejam depositados. Nesse caso, não cabem precatórios. Para tanto, seria necessário mudar a legislação. A opção do Tesouro Nacional foi, então, imediata. Lançou mão da cultura do uso patológico do Judiciário. Tentou mudar a legislação e transformar uma dívida de curto prazo num financiamento subsidiado de longo prazo. Optou por usar a força da lei para, compulsoriamente, financiar-se com o dinheiro dos trabalhadores através da decisão do Judiciário.
Essa tentativa de usar patologicamente a Justiça não era, no entanto, caso isolado. Em 2000, a Emenda Constitucional n. 30 alongara o prazo para pagamento dos precatórios pendentes de pagamento para dez anos. Assim, aliviava pressão sobre o caixa dos tesouros. Em 2001, através da Medida Provisória n. 2 180-35, proibira o uso da ação civil pública em matéria fiscal e previdenciária. Por quê? Por razão simples. Trata-se de uma estratégia de fragmentação processual capaz de impedir que todos os credores cobrem de uma só vez, através da ação civil pública, seus créditos dos Tesouros nacional, estadual e municipal. O fulcro dessa estrategia é ampliar a lentidão do julgar em beneficio do Executivo. Em vez de julgar uma ação só, o Judiciário terá que julgar milhares. Aumentam-se seus custos operacionais para prolongar um financiamento que o Supremo julgou ilegal. Aumenta-se o engarrafamento processual.
É nesse contexto que se insere a tentativa, em 2005, de ampliar o sistema de precatórios para incluir os Juizados Especiais. Daí a emenda parlamentar mencionada. Nesse caso, porém, a estratégia não funcionou. O Judiciário mobilizou-se e o Conselho Nacional de Justiça emitiu Nota Técnica ao Congresso Nacional contrária à sua aprovação. Os congressistas não aprovaram a emenda proposta pelo Poder Executivo.
Precatórios nada mais são do que um financiamento obrigatório com dinheiro de propriedade do vencedor da lide. Estima-se que, hoje, existam cerca de 72 bilhões de reais em precatórios a pagar (ver, a respeito, Nelson Jobim, “Precatórios: O Caminho do ‘Meio’”, Revista de Direito Administrativo – RDA, São Paulo, Atlas, 243: 132–147, set.-dez. 2006). Só que é um financiamento sem prazo certo. Pois os governos não pagam nos prazos como a lei manda. Os custos endógenos que foram transferidos do Executivo para o Judiciário, ainda que temporários, são, para o vencedor da lide, fatores externos a provocar inseguranca jurídica, desestimular as trocas na economia através do Judiciário.
Há que considerar, também, que a contabilização de dívida judicial não entra para o cálculo do déficit público nem para a lei de responsabilidade fiscal. Distorcem-se as contas públicas. O dano ao Poder Judiciário é visível. Na medida em que a cobrança foi feita através do Judiciário, ele aparece para a população como um Poder ineficaz. Incapaz de fazer valer suas decisões. A população, como sabemos, não distingue que a responsabilidade é do Poder Executivo. O custo da “deslegitimação institucional” acaba recaindo nos magistrados e no Judiciário.
O segundo exemplo de financiamento compulsório, que é também um subsídio compulsório invisível, pode ser facilmente percebido na remuneração legal dos depósitos que as partes são obrigadas a fazer por decisão dos juízes em conta bancária específica, em determinados momentos do processo, como, por exemplo, para garantir o juízo no processo de execução ou para interpor embargos (art. 8º, in fine, da Lei n. 6 830/30 e art. 621 do CPC). Esses depósitos serão levantados no final da lide pelos vencedores. São os depósitos judiciais.
Como as lides levam anos, esses depósitos são alvo do interesse dos bancos. Não somente por sua expressão – só no Estado do Rio de Janeiro, no início de 2008, estimava-se que os depósitos chegassem à casa dos seis bilhões de reais – mas também porque são altamente lucrativos para os bancos.
A lei n. 11 429 de 2006 estabelece, em seu artigo 1º, que esses depósitos sejam feitos apenas “em instituição financeira oficial da União ou do Estado”. Na Justiça Estadual do Rio de Janeiro e também na de São Paulo, a remuneração de tais depósitos nos bancos oficiais é dada pela TR + 6% ao ano, o que significa uma remuneração de aproximadamente 7,5% ao ano. Já na Justiça Federal, a remuneração dos depósitos é determinada pela taxa Selic linear mensal, resultando em algo em torno de 10,48% ao ano. Se um banco tivesse um saldo médio de seis bilhões ao ano, pagasse aos depositantes 7,5% ao ano e emprestasse pela taxa Selic capitalizada, hoje em torno de 11,25% ao ano, teria um ganho, de 225 milhões. Se pagasse aos depositantes 10,48%, o ganho seria de 46,2 milhões. Esse seria o montante mínimo da renda transferida compulsoriamente dos depositantes, partes judiciais, para os bancos do Poder Executivo. Mais uma vez, através do Judiciário, que aparece como agente responsável por essa transferência de renda.
A prerrogativa legal para os bancos oficiais controlados pelo Poder Executivo impede que o Judiciário, como qualquer instituição, maximize a competição entre os bancos públicos e privados de modo a melhor remunerar os depositantes e a si próprio, como gestor que é dessas contas. A prerrogativa legal dada aos bancos oficiais viabiliza indireta e encoberta transferência de rentabilidade dos depósitos das partes para o Poder Executivo, aumentando o custo da litigância. Custos endógenos e fatores externos. Além de transferência da remuneração dos custos de captação do Poder Judiciário para o Poder Executivo.
Conclusão
Os avanços obtidos até agora com a Constituição de 1988 em relação à independência política e eficiência operacional do Poder Judiciário, para serem consolidados, necessitam que se inaugure um novo entendimento sobre a reforma do Poder Judiciário. Um entendimento que focalize tanto reformas internas como reformas extrajudiciais. Que necessitam ocorrer em outros setores profissionais, interesses sociais e Poderes da República, que participam direta ou indiretamente da administração da Justiça.
É do interesse nacional que um dos campos para a reforma da administração da Justiça, além do próprio Poder Judiciário, seja, justamente, o Poder Executivo – municipal, estadual ou federal. O atual modelo permite que os Executivos transfiram custos orçamentários e custos de legitimidade política para e mediante o Poder Judiciário. Estimula uma cultura de judicialização do déficit público. A estatização da pauta do Judiciário, o financiamento compulsório invisível dos tesouros, verdadeiros impostos recônditos, através dos depósitos judiciais e dos precatórios, são alguns dos exemplos dessas práticas. Necessitam ser corrigidos. Mais do que uma estratégia processual do Executivo, trata-se de verdadeira cultura antidemocrática de veladas transferências de ineficiências. Necessita-se, pois, de mobilização política e imaginação institucional para corrigir esses rumos. Sem o que, o interesse nacional não progride. As possibilidades estão ao alcance das mãos, como diria Gilberto Freyre. É só agarrá-las com determinação e firmeza democráticas.
•Joaquim Falcão é professor de Teoria do Direito Constitucional e Diretor da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas – RJ e Conselheiro do Conselho Nacional de Justiça. O autor agradece a Marcelo Lennertz, Pablo Cerdeira, Fernando Penteado, Antônio Maristrello Porto, Daniela Barcellos, Leslie Ferraz, Paula Almeida e Rômulo Sampaio.
JOAQUIM FALCÃO é advogado, mestre em Direito por Harvard e doutor em Educação pela Universidade de Genebra. É membro da Academia Brasileira de Letras e da Academia Brasileira de Direito Constitucional
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