É difícil desafiar as falsas crenças de alguém porque suas ideias vêm de comunidades sociais, não de fatos
Pela natureza coletiva do conhecimento humano, indivíduos não podem avaliar todos os problemas que exigem conhecimento especializado, portanto as pessoas desenvolvem atalhos psicológicos para apontá-las na direção certa. Esses atalhos têm pouco a ver com evidências, pois são as comunidades sociais que determinam quem vemos como confiável
Pela natureza coletiva do conhecimento humano, indivíduos não podem avaliar todos os problemas que exigem conhecimento especializado, portanto as pessoas desenvolvem atalhos psicológicos para apontá-las na direção certa. Esses atalhos têm pouco a ver com evidências, pois são as comunidades sociais que determinam quem vemos como confiável
Por Lara Millman*
A maioria das pessoas pensa que adquire suas crenças usando um alto padrão de objetividade.
Mas discussões recentes entre pessoas sobre questões como direitos trans, vacinas ou aborto apontam para uma realidade diferente.
Considere a decisão da Suprema Corte dos EUA de derrubar o direito ao aborto. Há muitas evidências para mostrar que abortos amplamente acessíveis levam a resultados mais seguros para crianças e pessoas que podem engravidar. Além disso, os dados sugerem que as proibições do aborto são ineficazes, prejudiciais e perigosas. Um compromisso com a vida, então, deve favorecer a atenção integral à saúde para aquelas que podem engravidar –incluindo abortos. Parece que há uma desconexão: as pessoas não estão tendo argumentos baseados em fatos.
O mundo é hiperespecializado
Há uma razão pela qual os fatos se perdem rapidamente em argumentos contenciosos: os indivíduos não têm recursos para entender profundamente questões sociais complexas. Isso ocorre, em parte, porque o mundo em que vivemos é hiperespecializado. Isso significa que todas as informações confiáveis são produzidas graças a campos de estudo vastos e interconectados. Os humanos dividiram o trabalho cognitivo para que possamos saber muito mais coletivamente do que individualmente.
Por exemplo, a integridade estrutural de uma ponte ou o funcionamento interno de um telefone celular são coisas que o “nós” coletivo entende melhor juntos.
Mas essa característica do conhecimento humano é nossa ruína quando se trata da persistência de crenças socialmente errôneas.
Durante discussões sobre questões sociais entre pessoas com opiniões divergentes, uma pessoa muitas vezes acaba insistindo que, se a outra fosse apenas racional e pudesse ver as evidências, ela mudaria de ideia.
Crenças socialmente problemáticas ou falsas incluem coisas como ideias racistas, homofóbicas, transfóbicas e misóginas. Essas ideias podem levar a consequências sociais negativas significativas, especialmente para aqueles que pertencem a comunidades marginalizadas.
Crenças falsas são difundidas em parte por causa da natureza coletiva do conhecimento humano. Como indivíduos, não podemos avaliar todos os problemas, pois eles exigem conhecimento especializado. E enquanto alguns podem argumentar “faça sua própria pesquisa”, os indivíduos não necessariamente têm acesso aos melhores caminhos para realizar pesquisas corretas. Não só isso, muitos preferem manter seu próprio conjunto de crenças.
Encontrando alguém confiável
Devido ao grande volume de informações relevantes para qualquer questão social, as pessoas desenvolveram atalhos psicológicos –ou heurísticos– para apontá-las na direção certa. Esses atalhos têm pouco a ver com evidências e muito mais a ver com avaliar em quem podemos confiar.
Talvez sem surpresa, a medida em que encontramos uma pessoa confiável é calibrada de acordo com nossas comunidades sociais. Naturalmente nos associamos a pessoas que compartilham nossos valores: os processos psicológicos nos incentivam a adquirir valores de nossas comunidades e tendemos a procurar indivíduos com ideias semelhantes.
Nossas comunidades sociais determinam radicalmente quem vemos como confiável. Nossos grupos sociais determinam nossas atitudes políticas, obscurecem quais evidências serão consideradas significativas e moderam a medida em que a maioria das pessoas avalia como suas crenças correspondem ao que dizem os especialistas.
As pessoas que já estão em nossas comunidades parecerão as mais conhecedoras –mesmo que não tenham experiência ou compreensão e mesmo quando perpetuam falsas crenças.
Embora possa parecer que crenças precisas são facilmente adquiridas, as pessoas não são tão hábeis quando se trata de determinar o que é verdade, nem estão equipadas para determinar quem são os especialistas apropriados.
Crenças problemáticas persistem porque nossas circunstâncias psicológicas e sociais não nos situam adequadamente para avaliar os problemas. Em parte, é por isso que o raciocínio por si só não mudará a mente das pessoas.
Crenças problemáticas são tão atraentes, então, porque são fáceis.
Do ponto de vista de uma pessoa que vive em uma comunidade comprometida com crenças socialmente problemáticas, quase sempre há mais “evidências confiáveis” de alguém que ela conhece.
Em vez de aceitação complacente de crenças mal informadas, precisamos de movimentos institucionais para cultivar a confiança entre especialistas e o público.
Talvez mais importante, precisamos cultivar um compromisso compartilhado de reconhecer a humanidade nos outros. Chegar a uma crença problemática é fácil, mas construir um mundo melhor requer relacionamentos e coalizões autênticos que ultrapassem as linhas da comunidade.
*Lara Millman é doutoranda em filosofia pela Dalhousie University
Este texto é uma republicação do site The Conversation sob uma licença Creative Commons. Leia o artigo original, em inglês.
Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional
Editor-executivo do portal Interesse Nacional. Jornalista e doutor em Relações Internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. Mestre pelo KCL e autor dos livros Brazil’s international status and recognition as an emerging power: inconsistencies and complexities (Palgrave Macmillan), Brazil, um país do presente (Alameda Editorial), O Brazil é um país sério? (Pioneira) e O Brasil voltou? (Pioneira)
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