Documentários sobre dez anos da boate Kiss convidam a pensar sobre a diferença entre punição e justiça
Uma década após incêndio que matou mais de 200 pessoas, ninguém foi responsabilizado legalmente e nenhuma indenização oferecida a parentes e sobreviventes. Para cientista política, é preciso sair de um registro meramente punitivo para uma justiça que busque a reparação para fazer com que casos assim não se repitam e seja possível superar o trauma coletivo
Uma década após incêndio que matou mais de 200 pessoas, ninguém foi responsabilizado legalmente e nenhuma indenização oferecida a parentes e sobreviventes. Para cientista política, é preciso sair de um registro meramente punitivo para uma justiça que busque a reparação para fazer com que casos assim não se repitam e seja possível superar o trauma coletivo
Por Fhoutine Marie*
No final de janeiro o incêndio da boate Kiss completou dez anos. Decorrente de uma série de irregularidades – relativas ao funcionamento da casa noturna e do uso de fogos de artifício em ambiente interno -, o incêndio resultou na morte de 242 pessoas e deixou mais de 600 feridos. Ao completar uma década, a história se tornou tema de duas séries: Todo dia a mesma noite, da Netflix, uma dramatização inspirada nos eventos da vida real, e Boate Kiss – a tragédia de Santa Maria, documentário produzido pela Globoplay.
Apesar de utilizarem linguagens diferentes para contar a mesma história, as narrativas convergem na sensação de injustiça que permanece junto aos traumas dos sobreviventes e dos parentes das vítimas. Isso porque entre as idas e vindas próprias do sistema de Justiça do Estado, ninguém foi responsabilizado legalmente pelo incêndio da boate Kiss. Do mesmo modo, não houve pagamento de indenizações ou oferecida alguma forma de suporte para lidar com as sequelas físicas e emocionais do incêndio. Juntas, as duas séries também evidenciam a urgência de um debate público que separe responsabilização de punição.
A situação atual dos acusados
O poder do Estado é fundado no monopólio do uso legítimo da força. São as instituições do Estado – exército e polícias – que estão autorizadas a exercer a violência física e, no limite, a matar. Mas há um outro poder em jogo que também está relacionado à vida e à morte. Aquele que mobiliza forças diante das quais os sujeitos parecem impotentes: o poder econômico. Que, em certa medida, trata de quem, além do Estado, está autorizado a matar, seja por intencionalidade ou negligência.
Esse raciocínio se aplica a situações de atividade/exploração econômica que produziram as tragédias anunciadas de Mariana e Brumadinho e, mais recentemente, o genocídio dos indígenas yanomami de Roraima. Coloca-se, então, o seguinte questionamento: como uma tragédia dessa proporção pode ser evitada pelo encarceramento de algumas pessoas, se estamos diante de um problema que envolve a iniciativa privada e o poder público? Como evitar a repetição de tragédias humanitárias se a estrutura que permitiu (favoreceu?) que ocorressem permanece intacta?
No caso específico da boate Kiss, Estado e capital aplacaram a sanha punitivista popular fornecendo alguns bodes expiatórios, num processo em que as instituições, antes de promover reparação, atuam protegendo suas estruturas. Essas estruturas, diante de qualquer questionamento ao seu modo de atuação, revidam protegendo a si e aos seus, como ocorreu com os processos movidos contra os pais das vítimas por calúnia e difamação contra promotores e o Ministério Público de Santa Maria.
Apesar de outras pessoas terem sido indiciadas no inquérito policial, o MP entendeu que essas outras responsabilidades deveriam ser buscadas em outras esferas, como civil ou administrativa. Nisso ficaram de fora da ação penal o promotor de Justiça, o prefeito, funcionários da Prefeitura de Santa Maria e do Corpo de Bombeiros local.
Oito anos depois do incêndio, em 2021, quatro pessoas foram julgadas: dois sócios da boate Kiss e dois integrantes da banda Gurizada Fandangueira, que se apresentava naquela noite. Os réus foram considerados culpados. Contudo, o júri foi anulado por questões técnicas alguns meses depois. Até o momento, ninguém foi responsabilizado pela tragédia, seus 242 mortos e mais de 600 feridos. Sobreviventes e familiares seguem se mobilizando para que outras pessoas citadas no inquérito sejam responsabilizadas e para que seja marcado um novo julgamento.
Reparação
O documentário da Globoplay relembra um caso tristemente semelhante ao incêndio da boate Kiss. Em 30 de dezembro de 2004, um incêndio na casa de shows argentina Cromañón matou 194 pessoas e deixou outras 700 feridas. Na ocasião, 6.000 pessoas lotavam o local que tinha capacidade máxima de 4.000. O local pegou fogo depois que um dos integrantes da banda Callejeros acendeu um rojão inapropriado para o uso interno e as fagulhas atingiram o teto.
Assim como na Kiss, as investigações identificaram diversas irregularidades em licenças de funcionamento e segurança, como a falta de saída de emergência. Diferente do que ocorreu em Santa Maria, a responsabilização penal incluiu não apenas membros da banda e sócios da casa noturna, mas pessoas que permitiram que o local estivesse funcionando (e superlotado), como seguranças da boate e funcionários públicos de órgãos de fiscalização. O prefeito de Buenos Aires à época, Aníbal Ibarra, foi destituído do cargo em um processo semelhante a um impeachment e tornou-se inelegível.
O que chama atenção na menção do caso argentino no documentário sobre a Kiss não são as tristes semelhanças entre os casos, mas a possibilidade de sair de um registro meramente punitivo para uma justiça que busque a reparação. Em um dado momento da narrativa, uma das mães de Cromañón diz que justiça não trata de prender pessoas, mas de fazer com que o caso não se repita. Por aí passa a necessidade de criação de espaços de memória e redes de solidariedade que ajudem a superar o trauma coletivo.
A experiência de organização dos pais e mães de Santa Maria foi inspirada no grupo de familiares e vítimas do incêndio da boate Cromañón. Estes viajaram várias vezes até Santa Maria para prestar solidariedade e auxiliar na organização. Em depoimento, eles falam da importância de manter espaços de memória frisando que se trata de recordar diariamente para que não se repita. Que só haverá um sentimento de justiça quando este tipo de caso deixar de ocorrer.
*Fhoutine Marie é colunista da Interesse Nacional. Jornalista e cientista política, participa como co-autora dos livros “Tem Saída – Ensaios Críticos Sobre o Brasil” (Zouk/2017) e “Neoliberalismo, feminismo e contracondutas” (Entremeios/2019). Seu trabalho tem como foco temas como gênero, raça, terrorismo, neoconservadorismo e resistência política numa perspectiva não-institucional.
Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional
Fhoutine Marie é colunista da Interesse Nacional, jornalista e cientista política. Participa como co-autora dos livros "Tem Saída – Ensaios Críticos Sobre o Brasil" (Zouk/2017), "Neoliberalismo, feminismo e contracondutas" (Entremeios/2019) e "O Brasil voltou?" (Pioneira/2024). Seu trabalho tem como foco temas como gênero, raça, terrorismo, neoconservadorismo e resistência política numa perspectiva não-institucional.
Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional