A China mediadora

Ao negociar acordo entre O Irã e a Arábia Saudita, Pequim estaria sendo alçada a um novo patamar na geopolítica global. Para embaixador, Xi Jinping passa a se colocar como árbitro de um novo contexto internacional que reflete o paulatino abandono dos países do Oriente pelas lideranças ocidentais

Por Fausto Godoy*

Foi anunciado no dia 10 de março que a Arábia Saudita e o Irã chegaram a um acordo em Pequim que abre caminho para que os dois países restabeleçam as relações que romperam há sete anos. Pelo documento, ambos se comprometeram a “reabrir as suas embaixadas e missões num prazo não superior a dois meses”.

O acordo inclui significativamente “o compromisso de respeito à soberania dos Estados e da não-ingerência nos assuntos internos dos Estados”. Para ilustrar, os dois concordaram em reativar um acordo de cooperação na área de segurança que havia expirado e teve como consequência ataques de mísseis e drones patrocinados por ambos os lados envolvendo vários países da região.

Coisa inédita, tal fato (ou feito…) foi alcançado pela intermediação direta do presidente chinês, Xi Jinping, como menciona explicitamente o comunicado conjunto do acordo, no qual é citado que se trata de uma “Declaração Trilateral Conjunta (sic…) da República Popular da China, do Reino da Arábia Saudita e da República Islâmica do Irã”. Cita, ainda, que os entendimentos ocorreram“ em resposta à nobre iniciativa de Sua Excelência o presidente Xi Jinping, presidente da República Popular da China e do apoio da China ao desenvolvimento das boas relações de vizinhança entre o Reino da Arábia Saudita e a República Islâmica do Irã”. Ou seja, a República Popular está expressamente envolvida na observância do acordo!

Os que temos familiaridade com os temas islâmicos ficamos surpresos. Por dois motivos principalmente: o primeiro é que se trata de uma reconciliação inesperada neste momento; ela reflete o esforço conciliatório dos pilares das duas correntes do islã. Cabe relembrar que as relações estavam oficialmente rompidas desde 2016, quando uma multidão xiita atacou e incendiou a embaixada saudita em Teerã em protesto contra a execução de um clérigo xiita, Nimr Baqir-al-Nimr. Anteriormente, elas haviam sido igualmente suspensas de 1987 a 1990.

Na verdade, estes fatos são apenas o superstrato de uma rivalidade que data desde a morte do profeta, em 632 DC, quando a sociedade muçulmana se confrontou com a necessidade de eleger o seu sucessor político/religioso. Como sabemos, os xiitas condicionaram a continuidade da liderança do islã à linhagem de sangue do profeta, e os sunitas ao eleito pela Ummah, ou seja pelo corpo social. Distinção semântica? Até hoje a maioria dos confrontos no mundo islâmico que transbordam para outros temas – radicalismo…terrorismo… petróleo, por exemplo – tem sua gênese nesta disputa que vem desde então.

A segunda surpresa vem do fato de esta conciliação ter sido orquestrada em Pequim, e por intermediação pessoal e direta de Xi Jinping, na esteira de uma visita de Estado que realizou a Riad em dezembro passado. O protagonismo pessoal de Xi destaca a crescente importância econômica e política dele, pessoalmente, e dos chineses, no Oriente Médio, região historicamente moldada no envolvimento militar e diplomático com os Estados Unidos, que as lideranças locais consideram sem avanços significativos. Na verdade, as autoridades sauditas reclamam que seus aliados americanos estão se afastando cada vez mais da região. Segundo os analistas, “existe um vazio estratégico que os chineses parecem ter descoberto como capitalizar”.

Neste contexto, o primeiro questionamento que vem à mente diz respeito ao envolvimento da diplomacia chinesa em um tema – “não ingerência em assuntos internos dos outros países” – que tem sido um dos seus pilares, até para desestimular qualquer sugestão de “reciprocidade” nas questões – Tibet, Taiwan, Xinijiang, Hong Kong, etc. – que considera de sua esfera interna exclusiva. A meu conhecimento, esta seria a primeira vez que os chineses assumem ostensivamente o papel de mediadores em questões externas, na contemporaneidade. Ousadia ou assertividade?

O segundo questionamento diz respeito ao protagonismo ostensivo do presidente chinês, Xi, que com sua atuação se torna garantidor e “árbitro” num tema subjacente  – o petróleo – que extrapola o fator religioso propriamente dito, com o qual não teria, aliás, familiaridade, a não ser nas questões referentes a Xinjiang. 

Sabemos que Arábia Saudita e Irã já entraram em conflito sobre a política energética, confrontando os sauditas, que, com grandes reservas de petróleo e população menor têm interesse em atuar no longo prazo no mercado global do produto, e portanto moderar os seus preços, e os iranianos, com maior população, e obrigados a se concentrarem em preços altos no curto prazo, sobretudo em função das sanções que recaem sobre eles devido à sua política nuclear.

E a China?

Pequim estaria sendo alçada a um novo patamar, a de árbitro/líder de um novo contexto internacional que reflete o paulatino abandono dos países do Oriente pelas lideranças ocidentais, fechando-se sobre si mesmo, a exemplo da “Parceria Econômica Global Abrangente” (RCEP), o acordo de livre comércio firmado no ano passado, entre 15 países da região Ásia-Pacífico  – inclusive China, Japão e Coreia do Sul  – que uma vez ratificado corresponderá a mais de 30% do PIB mundial, e quase um terço da população do planeta?

Cassandrismo? To be continued…

*Fausto Godoy é colunista da Interesse Nacional. Bacharel em direito, doutor em direito internacional público pela Universidade de Paris (I) e diplomata, serviu nas embaixadas do Brasil em Bruxelas, Buenos Aires e Washington. Concentrou sua carreira na Ásia, onde serviu em onze países. Foi embaixador do Brasil no Paquistão e Afeganistão (2004/2007) e Cônsul-Geral em Mumbai (2009/10). É coordenador do “Centro de Estudos das Civilizações da Ásia” da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM) e curador da Ala Asiática do MON.

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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