01 abril 2023

O bastidor da crise das urnas eletrônicas

Rubens Barbosa é diplomata, presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (Irice) e foi embaixador em Londres e Washington

Em junho de 2021, estava em meu escritório quando um telefonema me tornou participante de um episódio que poderia ter influenciado e mudado a história política brasileira, em vista da polarização e da crescente contestação do funcionamento do sistema eleitoral por parte do então presidente Jair Bolsonaro.

José Gilberto Scandiucci, diplomata e assessor do Supremo Tribunal Federal (STF), ligou-me dizendo que o ministro Luís Roberto Barroso, então presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), queria falar comigo. Na conversa, o ministro comentou que a empresa Positiva, que havia ganho a licitação para o fornecimento das urnas eletrônicas para as eleições de outubro de 2022, informara que estava havendo um problema com o fornecimento de componentes das urnas. Alguém havia sugerido meu nome, talvez em função de eu ter sido embaixador em Washington e manter bons contatos comerciais com empresas norte-americanas e com a consultoria Albright Stonebridge, de Washington, para tentar resolver essa questão. Pediu-me que conversasse com a Positiva para conhecer os detalhes e saber se eu poderia ajudar com minha consultoria.

Qual era o contexto global em que a questão estava inserida? Em virtude da pandemia e da mudança de hábitos de consumo, houve superaquecimento da demanda por semicondutores e as empresas fornecedoras estavam atrasando as entregas. Semicondutores estão presentes em produtos eletrônicos de grande consumo como smartphones, videogames, computadores e indústria automotriz.

Conversei com a direção da companhia que me informou o problema que havia surgido recentemente. Havia contrato com duas empresas, a americana Texas Instruments e a taiwanesa Nuvoton, para fornecimento regular, até o final de dezembro de 2021, dos componentes para a fabricação das urnas eletrônicas destinadas à eleição presidencial de 2022. As entregas mensais, segundo os contratos vigentes entre a Positiva e as empresas americana e taiwanesa, permitiriam a fabricação das urnas que deveriam ser entregues ao TSE em dezembro e em abril. Caso os contratos não fossem respeitados, a Positiva não tinha como entregar as urnas nos prazos acertados com o TSE, colocando em risco a realização da eleição de outubro de 2022. As quantidades entregues estavam muito abaixo do que havia sido contratado e as perspectivas, segundo as conversas entre as empresas, não eram nada favoráveis. Pedi tempo para pensar sobre a possibilidade de ser contratado como consultor para ajudar a superar a dificuldade.

A polêmica do voto impresso

Naquele momento, em agosto, o conflito entre o presidente Bolsonaro e o presidente do TSE ganhara dimensões que poderiam desembocar em uma crise política nacional. O questionamento das urnas eletrônicas por parte de Bolsonaro foi num crescendo desde janeiro, logo após o aniversário da tentativa de invasão do Congresso norte-americano, com a declaração presidencial de que “se não tivermos o voto impresso em 2022, uma maneira de auditar o voto, nós vamos ter problema pior que o dos EUA”.

Nos meses seguintes, as declarações foram se tornando cada vez mais fortes. Em agosto, a proposta do governo de voto impresso foi recusada pelo Congresso, apesar da pressão sobre o legislativo com o desfile de veículos militares na Esplanada dos ministérios, em meio ao crescente envolvimento do Ministério da Defesa, convidado a participar de comissão para examinar a transparência e a segurança das urnas eletrônicas. O TSE reagiu, abrindo inquérito para apurar as acusações sem comprovação feitas pelo presidente sobre fraudes nas urnas e enviou ao STF notícia crime pelo vazamento de informações de um inquérito sigiloso da Polícia Federal sobre o ataque hacker sofrido pela corte eleitoral em 2018.

O ambiente, cada vez mais tóxico, ganhou contornos dramáticos no 7 de setembro de 2021, com acusações e xingamentos aos ministros do STF e do TSE e ameaças às instituições por parte de Bolsonaro. O questionamento das urnas eletrônicas pelo presidente coincidiu com o momento mais delicado das gestões que estávamos levando à frente, justamente para viabilizar a utilização delas nas eleições de 2022.

Logo me dei conta do desafio que iria enfrentar e da responsabilidade de poder ajudar a superar uma questão comercial com profundas repercussões políticas no Brasil. Decidi, mais uma vez, enfrentá-lo, lembrando que nem tudo o que enfrentamos pode ser mudado; mas nada pode ser mudado, se não for enfrentado.

Liguei para a Positivo, respondi afirmativamente o convite e combinei a forma de nosso trabalho conjunto. A partir daí, começou uma ação de equipe com o TSE e com a Positiva. Recebi todas as informações relevantes para poder traçar um plano que começaria imediatamente e seria desenvolvido com muita rapidez, em vista dos prazos exíguos para a apresentação de resultados.

Os contatos e o empenho redobrado

Antes de fazer os primeiros contatos no exterior, decidi conversar com o então ministro do Exterior, Carlos França, com quem tinha intimidade por ter sido ele um colaborador próximo durante meu período como embaixador em Washington. Resolvi contatá-lo para que soubesse por meu intermédio das gestões que iria empreender no exterior e tentar buscar o apoio do Itamaraty para os contatos com Taiwan. Em segundo lugar, para que ele soubesse da delicada questão das urnas, no momento dos maiores ataques do presidente Bolsonaro ao TSE e às urnas eletrônicas, e permitir que ele tomasse conhecimento das ações externas que eu iria deslanchar, caso Bolsonaro o questionasse. Sabia das dificuldades que iria enfrentar no Itamaraty não só pela atitude agressiva do presidente, como também pela cautelosa posição da diplomacia, tendo em vistas as sensibilidades da China em relação a Taiwan.

Minha ideia era a de que eu buscaria identificar os interlocutores nos EUA e em Taiwan para que o ministro Barroso, como a autoridade máxima na Justiça Eleitoral, conversasse com as empresas para restabelecer o cronograma original de entrega previsto nos contratos e para mostrar os problemas políticos que o atraso poderia acarretar para o cumprimento dos prazos, a fim de dispor das urnas para a eleição de outubro.

Ainda em junho, iniciei o trabalho contatando os ex-embaixadores dos EUA no Brasil, Anthony Harrington e Tom Shannon, para pedir o apoio deles nos contatos iniciais com a Texas Instruments. Feitos os contatos iniciais, identificamos os possíveis interlocutores na companhia norte-americana. Procurei o então embaixador dos EUA, muito próximo de Bolsonaro, indicado por Trump, Todd Chapman, que, muito reticentemente, decidiu não se envolver diretamente, talvez para não prejudicar seu acesso fluído ao presidente Bolsonaro.

No tocante a Taiwan, a situação era mais complexa. Como havia antecipado, a máquina do Itamaraty preferiu não se envolver temendo reação da China. Meus contatos com o responsável pelo Escritório Comercial do Brasil em Taipé, capital de Taiwan, Miguel Magalhães, apesar de frequentes, não resultavam em avanços concretos. O tempo passava e não conseguíamos identificar o interlocutor para a conversa do ministro Barroso. Scandiucci coordenado comigo, falava com o represente comercial de Taiwan em Brasília.

Certo dia, já em agosto, Scandiucci me disse que o melhor era centralizar os contatos com o Itamaraty por seu intermédio. Entendi imediatamente o recado: meus contados com a máquina burocrática do Itamaraty começavam a preocupar. A partir daí, todas as iniciativas, por mim sugeridas, seriam tratadas por Scandiucci junto ao Itamaraty e junto ao representante comercial de Taiwan. O representante comercial taiwanês aproveitou para negociar a edição de carteiras de motorista para seus funcionários, o que até então não tinha sido possível. A tática funcionou e, finalmente em setembro, identificamos o vice-ministro das relações exteriores de Taiwan, como a pessoa a ser contatada.

O acerto da ação coordenada

Depois de três meses de trabalho quase diário, de coordenação entre os contatos da Positiva, das ações junto às empresas norte-americana e taiwanesa, tínhamos o nome e o telefone das pessoas certas para serem contatadas.

O trabalho de negociação final foi feito pelo ministro Barroso, que conversou com os interlocutores e obteve a promessa de que seria feito o melhor possível para atender à pretensão brasileira. Restava aguardar a informação da ponta da linha com a Positiva para ver se a indicação recebida por Barroso se efetivaria. Enquanto isso, continuavam as gestões em Brasília.

Em setembro, começaram a surgir indicações de que todo o meu empenho começava a frutificar. A Positiva recebia sinalização de que as quantidades contratadas seriam retomadas, permitindo que, até dezembro, a quantidade de urnas negociada com o STE pudesse ser entregue. Mesmo assim, o suspense continuava até a materialização do fornecimento. A empresa dos EUA passou a responder mais rapidamente e a aumentar o fornecimento. A empresa de Taiwan demorou um pouco mais, mas também cumpriu o prometido e restabeleceu as quantidades contratadas. Em outubro, foram cumpridos os prazos e as quantidades. Com isso, a Positiva pôde entregar as urnas licitadas em dezembro e em março, como negociado com o STE, assegurando a realização das eleições.

Com a situação normalizada, em dezembro, dei por encerrado meu trabalho junto à Positiva. Agradeci ao Scandiucci e ao ministro Barroso a confiança e continuei a acompanhar a crescente crítica do governo às urnas, inclusive com a participação do Ministério da Defesa, envolvido pelo presidente no questionamento das urnas.

Apesar da sensibilidade dessas questões e do grande interesse do debate público sobre as urnas, não houve vazamento para a grande mídia das dificuldades da Positiva e do TSE. Uma única vez, jornalista da Folha de São Paulo enviou pergunta à Positiva sobre o assunto e recebeu resposta minimizando a matéria. Não insistiu.

Em fevereiro de 2022, recebi telefonema de amigo dizendo que acabara de escutar o discurso de despedida do ministro Barroso da presidência do STE, em que ele me citava nominalmente. Fui buscar o texto do discurso e, surpreso, verifiquei que havia uma referência generosa ao meu trabalho. No contexto dos preparativos para as eleições, o ministro Barroso mencionou os meses de tensão em que buscávamos superar a escassez de semicondutores, em verdadeira competição internacional, para, sem sobressaltos, conseguir a entrega pela Positiva de 225.000 urnas eletrônicas. Fazendo referência ao trabalho diplomático para esse objetivo, agradeceu minha “valiosa ajuda”. Em contato posterior, Barroso acrescentou que “o registro foi justo e merecido. Sua atuação foi decisiva e somos muito gratos por isso”.

Nunca mencionei essa questão a ninguém. Havendo o ministro Barroso tratado publicamente da possível falta das urnas eletrônicas em função de questões globais, pareceu-me que seria importante registrar a forma como vários atores trataram de um tema de grande sensibilidade e possível repercussão política. O profissionalismo, a discrição e uma ação coordenada resultaram no desfecho favorável do que poderia ter desaguado em crise política sem precedente.

Fico imaginando o que teria acontecido, se o trabalho que me foi atribuído não resultasse efetivo. O assunto se transformaria em questão de segurança nacional. A ausência do fornecimento das 225.000 para substituir urnas antigas poderia criar problemas para a realização das eleições, talvez seu adiamento. O presidente Bolsonaro poderia usar esse fato para aumentar suas críticas às urnas eletrônicas e estimular uma crise institucional mais ampla.

Vários amigos me estimularam a fazer o registro de um fato isolado de nossa história. Faço esse relato tendo presente, como ensinou Gabriel Garcia Marquez, que a vida não é a que a gente viveu, e sim a que a gente recorda e como recorda para contá-la.

É assim que me recordo desse marcante episódio na minha já longa trajetória.   ■

Presidente e fundador do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (IRICE). É presidente do Conselho Superior de Comércio Exterior da FIESP, presidente da Associação Brasileira da Indústria de Trigo (Abitrigo), presidente do Centro de Defesa e Segurança Nacional (Cedesen) e fundador da Revista Interesse Nacional. Foi embaixador do Brasil em Londres (1994–99) e em Washington (1999–04). É autor de Dissenso de Washington (Agir), Panorama Visto de Londres (Aduaneiras), América Latina em Perspectiva (Aduaneiras) e O Brasil voltou? (Pioneira), entre outros.

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

Cadastre-se para receber nossa Newsletter