‘A Diplomata’ lida com expectativas – e mitos – sobre gênero, poder e política
O novo sucesso da Netflix retrata o sexismo e estereótipos a respeito das lideranças políticas femininas. Para professora, os temas trabalhados na série serão importantes para a campanha eleitoral americana de 2024
Sucesso da Netflix retrata o sexismo e estereótipos a respeito das lideranças políticas femininas. Para professora, os temas trabalhados na série serão importantes para a campanha eleitoral americana de 2024
Poucas pessoas teriam previsto que um drama eloquente sobre uma mulher que trabalha na área de relações exteriores seria o próximo grande sucesso da Netflix. Mas todos estão falando de A Diplomata – por um bom motivo.
A série, que tem como protagonista Keri Russell no papel da embaixadora dos EUA no Reino Unido, estreou em primeiro lugar nas paradas de streaming. Os críticos elogiaram as atuações espetaculares, o enredo sinuoso e a escrita “ironicamente engraçada” que compõem esse “drama emocionante e propulsor”. Até mesmo a conta do Twitter oficial da Embaixada dos EUA em Londres tuitou um vídeo brincalhão e, em sua maioria, elogioso, verificando os fatos do primeiro episódio.
Com tantos olhos voltados para a mais recente reprodução na televisão de uma mulher em um cargo político de alto nível, sua abordagem acerca da liderança feminina é significativa. Como estudiosa de comunicação que pesquisa o enquadramento na mídia de mulheres reais e fictícias na política, tenho interesse em saber como a televisão e o cinema moldam nossa visão sobre o tópico no mundo real.
Embora A Diplomata inicialmente perpetue um estereótipo popular de que as únicas mulheres em quem se pode confiar para ocupar altos cargos são aquelas que não querem estar lá, o filme retrata de forma ponderada a onipresença do sexismo cotidiano na cultura política.
Mulheres e ambição política
“A Diplomata” mostra a personagem de Russell, Kate Wyler, a recém-nomeada embaixadora no Reino Unido, e seu marido, Hal, ex-embaixador e a parte mais politicamente ambiciosa da dupla, interpretado por Rufus Sewell.
O presidente precisava substituir seu vice-presidente devido a um escândalo iminente, e Hal colocou Kate na lista de candidatos – sem seu conhecimento – convencendo a chefe do gabinete do presidente, Billie Appia, interpretada por Nana Mensah, de que a competência e a falta de ambição política de Kate é o que a qualifica para o cargo.
Hal insiste que “ninguém com o temperamento para vencer uma campanha deveria estar no comando de qualquer coisa”.
O principal argumento de A Diplomata é que os políticos são péssimos líderes. Não há dúvida de que, para muitos espectadores, isso faz parte do seu encanto.
Assim como West Wing – Nos Bastidores do Poder – a série na qual a showrunner de A Diplomata, Debora Cahn, começou seus trabalhos -, o seriado é em parte um conto de fadas político, imaginando um mundo no qual as pessoas que podem resolver problemas têm de fato poder para fazê-lo. Ao tentar convencer Kate a considerar o cargo de vice-presidente, Billie pergunta: “Você consegue imaginar contratar alguém para um cargo importante do governo só porque acha que essa pessoa seria boa nisso?”.
No entanto, esse é um terreno difícil de negociar, e A Diplomata inicialmente reforça um dos estereótipos mais nocivos sobre mulheres na política, tanto na tela quanto na vida real: Mulheres que têm ambição política não são confiáveis. Em séries como Vice, 24 Horas e Borgen, as mulheres com ambição política se revelam incompetentes ou corruptas.
Por outro lado, as mulheres éticas e bem-sucedidas da política, como as de Commander in Chief, Madam Secretary e, agora, A Diplomata, são funcionárias públicas que precisam ser persuadidas a participar de campanhas e políticas partidárias.
Depois que Kate descobre que as pessoas estão tramando pelas suas costas para colocá-la como vice-presidente durante uma crise externa, ela consolida seu status de não-política ao ir até o presidente e anunciar: “Não fui feita para isso. Estou deixando o cargo. A boa notícia é que isso me torna a única pessoa no mundo que não está tentando lhe dar satisfações, mas que ainda sabe muito sobre o Irã”.
Então, depois de ensinar ao comandante-em-chefe os pontos mais delicados da política externa, Kate afirma que a disposição dele em cooperar com o pedido do primeiro-ministro britânico para uma demonstração de força é porque “você tem medo de que seus inimigos pensem que você é velho e frágil demais para colocar os americanos na linha de fogo”.
Como se trata de um conto de fadas político, o presidente, interpretado por Michael McKean, aperta a mão dela, diz que ela está se saindo muito bem e afirma: “Pare com essa história de ‘eu me demito’. Isso realmente me irrita. Não tenho esse tipo de tempo”.
A visão de uma mulher sincera e apolítica que conquista o respeito de homens poderosos expondo as falhas em suas lógicas e destacando suas fraquezas é uma boa opção para a televisão.
Mas isso complica as coisas quando os telespectadores se tornam eleitores e são solicitados a apoiar candidatas reais que se propõem a cargos públicos e são punidas por falarem o que pensam e afirmarem sua autoridade. As mulheres da política que expressam ambição geralmente são avaliadas de forma mais negativa pelos eleitores do que seus colegas homens, dos quais a ambição política não é apenas tolerada, mas esperada.
Gênero e poder
A Diplomata admite que mulheres protagonistas agradáveis, assim como suas correspondentes políticas, não podem parecer sedentas de poder. Mas também resiste à noção de que a vice-presidência é um cargo sem poder.
Enquanto Billie e o vice-chefe de missão da embaixada dos EUA, Stuart Heyford, interpretado por Ato Essandoh, tentam persuadir Kate a concordar em ser vice-presidente, Billie enfatiza que o cargo teria uma influência substancial.
“O vice-presidente passa mais tempo no Salão Oval do que qualquer pessoa que não tenha uma mesa lá”, diz ela, prometendo em seguida: “Nós a colocaríamos na liderança da política externa”. Stuart apela para o senso de missão de Kate com uma frase que também lembra aos espectadores que ela não é inadequadamente ambiciosa: “Você estaria fazendo isso pelo país, não pelo poder”.
A elaborada e absurda cadeia de eventos que produz essa conversa – na qual a chefe de gabinete do presidente tenta persuadir uma oficial do serviço de relações exteriores a concordar em ser vice-presidente no meio de um mandato – permite que o seriado faça observações sobre a absurda corrosividade das campanhas políticas. Depois de lembrar Kate de que ela não teria que “sobreviver a uma campanha”, há a seguinte troca de palavras entre Billie e Stuart:
Billie: “Quero dizer, é ruim para os homens, mas para as mulheres – que se dane. Ela é bonita, mas não muito bonita? Atraente, mas não gostosa? Confiante, mas não maliciosa? É decidida, mas não é vadia?”.
Stuart: “Bonitinha, mas não vadia, vadia”.
Vestindo o papel
Cahn também explora esse duplo padrão visualmente. Embora Kate prefira ternos pretos, maquiagem mínima, cabelo indisciplinado e sapatos que lhe permitam fazer uma caminhada poderosa durante o dia, sua equipe impecavelmente arrumada a incentiva a adotar um visual mais atraente, feminino e que agrade às câmeras.
Em vez de apresentar Kate como desleixada ou alheia e dar-lhe um brilho no meio da temporada, no entanto, a série demonstra que ela está bem ciente da imagem que está criando. Durante uma sessão de fotos para a Vogue britânica, Kate diz ao fotógrafo: “Não quero tornar seu trabalho mais difícil do que já é, mas seria ótimo se não houvesse nenhuma foto minha olhando melancolicamente para longe enquanto acaricio meu próprio pescoço”.
A Diplomata envolve insights sobre o sexismo na política na embalagem de um thriller político. Sua popularidade é uma coisa boa. À medida que a temporada da campanha de 2024 se intensifica, os eleitores precisam de lembretes convincentes do efeito que o sexismo pode ter sobre a democracia – porque a cultura política patriarcal é algo que todos nós temos que negociar.
*Karrin Vasby Anderson é professora de estudos de comunicação na Colorado State University
Este texto é uma republicação do site The Conversation sob uma licença Creative Commons. Leia o artigo original, em inglês.
Tradução de Letícia Miranda
Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional
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