17 agosto 2023

‘Sou de virgem’, uma jornada sobre desfazer heróis

Série sobre jovem gigante expõe de forma didática como um justiceiro é apenas uma engrenagem no maquinário capitalista. Para cientista política, ficção ajuda a refletir sobre espetacularização da segurança pública, a manutenção das desigualdades sociais e o fascismo dos justiceiros

Série sobre jovem gigante expõe de forma didática como um justiceiro é apenas uma engrenagem no maquinário capitalista. Para cientista política, ficção ajuda a refletir sobre espetacularização da segurança pública, a manutenção das desigualdades sociais e o fascismo dos justiceiros

Cena da série Sou de Virgem, da Amazon Prime

Por Fhoutine Marie*

O que faz um vilão? Para Cottie, protagonista da série Sou de Virgem (2023), da Prime Video, o vilão existe em oposição àquele considerado heroi num mundo de injustiças. Na trama, Cottie,19 anos e 4 metros de altura, começa a descobrir o mundo depois de passar a vida escondido em casa. Seu único passatempo até então era ler histórias em quadrinhos e acompanhar pela televisão as aventuras de O Heroi – autor e estrela das HQ, empresário e justiceiro nas horas vagas. 

Ao longo dos sete episódios, Cottie descobre a amizade, o amor, as baladas, os hambúrgueres, se dá conta de o que é ser um jovem negro na América e que ser um gigante não altera muito esta condição. As emoções da descoberta estão atravessadas pelo risco da violência policial, risco de morte, desemprego, falta de acesso à saúde e moradia. Enquanto isso ocorre, O Heroi segue realizando prisões e pregando a palavra da lei e da ordem.

Diferente de The Boys, Coringa, Batman, Watchmen e outras obras do gênero, aqui não há margem para dupla interpretação. O Heroi não é alguém que pode gerar alguma identificação na audiência porque não é carismático. Embora bem sucedido, ele não é nem um pouco carismático. Na maior parte das vezes é mostrado como asqueroso ou patético, seja quando aparece sozinho ou quando o elenco comenta sobre ele.

‘Sem sutileza, Sou de virgem expõe de forma didática como esse justiceiro é apenas uma engrenagem no maquinário capitalista‘

Sem sutileza, Sou de virgem expõe de forma didática como esse justiceiro é apenas uma engrenagem no maquinário capitalista. O espetáculo midiático da punição faz parte do mesmo mundo que propõe formas mais humanitárias de punir, já que a abolição da pena capital – e no limite, das prisões – colocaria em risco sua existência. O simpático gigante Cottie é uma potencial ameaça, para qual as instituições penais devem estar preparadas. 

Por meio dessa figura surreal somos lembrados de um passado não tão remoto em que pessoas negras foram exibidas em zoológicos humanos, do caso de Sartjees Baartman, que ficou conhecida como A Vênus Negra, e da brasileira Jacinta Maria de Santana, cujo corpo embalsamado ficou exposto na faculdade de Direito da Universidade de São Paulo por 30 anos

‘Desumanizados no passado e no presente, as pessoas negras em países colonizados, quando convém ao capitalismo, podem ser ícones de moda e de tudo o que é descolado, desde que estejam prontas a obedecer’

De novo não há espaço para sutilezas: desumanizados no passado e no presente, as pessoas negras em países colonizados, quando convém ao capitalismo, podem ser ícones de moda e de tudo o que é descolado, desde que estejam prontas a obedecer, a não se envolver no combate aos problemas maiores que atingem às suas comunidades. 

Não acabou, tem que acabar 

“Em determinadas circunstâncias e para determinados corpos, defender-se equivale a morrer por esgotamento de si: lutar é debater-se em vão, é ser derrotado”, diz a filósofa francesa Elsa Dorlin em Autodefesa – uma filosofia da violência (2017), livro onde analisa como as sociedades colonizadas produziram em alguns grupos sociais minoritários o convencimento de que se defender é inútil e/ou ilegítimo. Tendo sua capacidade de autodefesa desvirtuada e deslegitimada. Alijados de sua marcialidade, esses grupos terminaram se convencendo de sua impotência radical.  

‘Ao longo de todo o período escravista, o desarmamento dos escravizados foi acompanhado de uma verdadeira disciplinarização dos corpos para mantê-los indefesos’

Por meio de uma análise de inspiração explicitamente foucaultiana, Dorlin investiga como foi se deu esta fábrica de corpos desarmados. Segundo a autora, ao longo de todo o período escravista, o desarmamento dos escravizados foi acompanhado de uma verdadeira disciplinarização dos corpos para mantê-los indefesos. Isso estabeleceu uma linha divisória entre os sujeitos que são donos de si mesmos e aqueles cuja preservação da vida depende inteiramente da boa vontade do seu senhor.

“Qualquer tentativa de preservar a própria vida é transformada em crime, e qualquer ato de defesa por parte dos escravizados se assemelha a um ato de agressão contra os mestres”, diz. A impotência radical é acompanhada da criação de crimes e delitos específicos leva, nas palavras de Dorlin, “a uma categorização antropológico-racialista da criminalidade: dali em diante qualquer ato cometido por uma pessoa escravizada, indígena, colonizada, negra, etc., torna-se um crime ou uma ofensa criminal”. 

‘Emerge, então, a percepção de que é inútil demandar justiça ao Estado, a primeira instância a institucionalizar a injustiça social e o responsável por armar aqueles que nos golpeiam’

O resultado é que, se ao longo do desenvolvimento do Estado contemporâneo e suas instituições assistimos um processo de judicialização dos conflitos, o mesmo processo de desarmar os indivíduos para que se submetessem à lei e à justiça produziu, para uma parcela da população, exclusão da cidadania. Emerge, então, a percepção de que é inútil demandar justiça ao Estado, a primeira instância a institucionalizar a injustiça social e o responsável por armar aqueles que nos golpeiam. 

Das sociedades colonizadas para as pós-coloniais, a violência institucional exercida sobre as populações racializadas tem mais de continuidade do que resquício. A exclusão faz parte dessas sociedades que se tornam independentes mantendo as mesmas elites e mecanismos de controle social. Habitar o mesmo espaço onde se concentram atividades econômicas que o Estado determina como criminosa, torna a vida criminosa e como tal, passível de execução penal. 

Chacinas, vinganças e outros casos isolados 

Ao evitar a glorificação do justiceiro, a série não cai na solução fácil de transformar Cottie no “verdadeiro heroi”. Definindo-se como vilão (thug), ele adquire uma identidade de contraposição ao que é considerado heroico, justo e ordeiro, abraçando uma resistência antissistêmica e que só pode ser articulada na coletividade. Na condição de vilão, o protagonista aceita que é um corpo matável. Diante da ameaça de morte permanente, a única forma de viver é negar radicalmente a quem quer lhe ver morto.

Sou de Virgem toca num ponto crucial a respeito dos aparelhos de repressão do Estado. Como fomos levados a pensar que acabar com ele é impossível, então tudo o que nos resta é abrir mão da radicalidade em prol do reformismo pragmático. Somos apresentados a um personagem que sonha banir a pena de morte dos Estados Unidos e que, ao se deparar com algo que lhe parece impossível, concentra seus esforços em se tornar um carrasco. “Mudar o sistema por dentro”, diz ele. “Hackear”, se formos usar uma linguagem do militantismo monetizável.

É por meio dessa chave que podemos pensar as execuções dos 13 homens na Chacina do Guarujá (SP), do menino Yan Gabriel Marques, 12 anos, um dos 4 baleados em menos de 24h em Nova Iguaçu (RJ) e tantas outras mortes entre as 6.429 ocorridas em operações policiais no último ano ou das 45 ocorridas nos últimos dias em São Paulo, Rio de Janeiro e Bahia. 

‘Nas operações de vingança  o vilão é desumanizado a partir de sua racialidade e território, para quem não há outro tratamento a não ser vigilância e punição exemplar – que no limite consiste na execução sem direito à condições mínimas de cidadania’

Nas operações de vingança  o vilão é desumanizado a partir de sua racialidade e território, para quem não há outro tratamento a não ser vigilância e punição exemplar – que no limite consiste na execução sem direito à condições mínimas de cidadania. Isso é publicamente endossado pelos governadores dos Estados, da esquerda petista à extrema direita bolsonarista, conforme aponta Flávio VM Costa em artigo publicado no Intercept Brasil

Mesmo subordinada aos governos estaduais, a polícia enquanto instituição militarizada opera por seus próprios códigos. Seu longo histórico de violência promovidas por operações da polícia militar, que seguem ocorrendo independente de qual partido estiver no governo de cada estado, demonstra que não há reforma possível quando a lógica que rege uma instituição não é a da proteção a todos os cidadãos sem exceção, mas a do combate ao inimigo interno.

A morte de Amarildo, em 2013, numa ação da UPP, ilustra com precisão que soluções reformistas não mudam instituições. A Operação Paz Armada, após um turista alemão ter sido baleado na Rocinha, supostamente em um ponto de venda de drogas, coincidiu com a preparação para a Jornada Mundial da Juventude, evento que teria a presença do Papa Francisco, que coincidiu com o desaparecimento e morte do pedreiro, cujo corpo nunca foi devolvido à família. O que era para ser um novo tipo de polícia se revelou algo tão letal – para a população preta e favelada – quanto qualquer outra forma de segurança militarizada. 

Se não agora, quando?

‘Excluindo parte da população do estado democrático de direito, o que se conhece como “segurança pública” é na verdade a prática do estado de exceção’

O ativista William C. Anderson é categórico: mortes por policiais são execuções públicas. A regularidade do terror policial é tão comum que os policiais encarnam juizes que decidem sobre a vida e a morte. Deste modo, excluindo parte da população do estado democrático de direito, o que se conhece como “segurança pública” é na verdade a prática do estado de exceção. “Nós não podemos mais tolerar isso, a polícia precisa ser abolida”, diz. 

Diante do crescimento da extrema direita nas Américas nos últimos anos, o tema segurança pública tem sido evitado pela esquerda partidária e diversos atores que podem ser chamados de “progressistas”, por defender o mínimo cumprimento das normas constitucionais locais e respeito às convenções internacionais de direitos humanos. 

Pensando que a ficção tem o poder de nos fornecer ferramentas para imaginar novos mundos, façamos um exercício como o proposto em Sou de Virgem. Imaginemos um futuro em que o reformismo não é mais o suficiente. O que seria necessário para desfazer esses heróis mantenedores da lei e da ordem. A descriminalização do porte de drogas é um começo de conversa, mas não é o suficiente. É preciso fazer com que a produção e comércio de substâncias entorpecentes deixem de ser assunto de polícia e se tornem objeto da área da saúde e da economia. É hora de desmilitarizar as polícias.


*Fhoutine Marie é colunista da Interesse Nacional. Jornalista e cientista política, participa como co-autora dos livros “Tem Saída – Ensaios Críticos Sobre o Brasil” (Zouk/2017) e “Neoliberalismo, feminismo e contracondutas” (Entremeios/2019). Seu trabalho tem como foco temas como gênero, raça, terrorismo, neoconservadorismo e resistência política numa perspectiva não-institucional.  

https://interessenacional.com.br/edicoes-posts/fhoutine-marie-succession-mostra-que-rosencrantz-e-guildenstern-estao-vivos-e-passam-bem/

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

Fhoutine Marie é colunista da Interesse Nacional, jornalista e cientista política. Participa como co-autora dos livros "Tem Saída – Ensaios Críticos Sobre o Brasil" (Zouk/2017), "Neoliberalismo, feminismo e contracondutas" (Entremeios/2019) e "O Brasil voltou?" (Pioneira/2024). Seu trabalho tem como foco temas como gênero, raça, terrorismo, neoconservadorismo e resistência política numa perspectiva não-institucional.

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