A ‘questão militar’ invertida? Solução à vista? (parte 2)
Participação dos militares na política marcou momento emblemáticos da história do Brasil e permanece em debate por conta da ideia do ‘Poder Moderador’ das Forças Armadas. Para embaixador, desatar este nó e rever Artigo 142 ainda é uma longa estrada a ser pavimentada
Participação dos militares na política marcou momento emblemáticos da história do Brasil e permanece em debate por conta da ideia do ‘Poder Moderador’ das Forças Armadas. Para embaixador, desatar este nó e rever Artigo 142 ainda é uma longa estrada a ser pavimentada
Por Sergio Abreu e Lima Florêncio*
A participação dos militares na política – aqui chamada de “questão militar” – marcou os momentos mais emblemáticos de nossa história, como focalizado na primeira parte deste artigo. Esta segunda parte examina os possíveis rumos do atual esforço institucional destinado a limitar o papel político dos militares e, assim, afastar do horizonte o resiliente Poder Moderador das Forças Armadas. Esse esforço poderá produzir uma solução à vista?
No governo Bolsonaro os militares tiveram envolvimento expressivo em atividades que colocaram em risco o Estado de Direito e culminaram tanto na reunião do presidente com os comandantes das Forças Armadas para examinar uma minuta de golpe quanto no trágico episódio do 8 de janeiro.
Outras demonstrações de envolvimento antidemocrático de militares no governo Bolsonaro merecem registro: mais de 6.000 oficiais ocuparam funções civis; militares de alta patente foram ministros de Estado ou dirigentes de estatais; um general da ativa esteve à frente do Ministério da Saúde, com desastrosa gestão da pandemia; os comandantes das três forças participaram de manifestações públicas antidemocráticas; o presidente convocou os embaixadores estrangeiros para apresentar supostas fraudes do sistema eleitoral brasileiro; um tenente coronel e ajudante de ordens do presidente – com sua provável orientação – esteve envolvido em graves irregularidades, tais como: falsificação de cartões de vacinação do presidente e de sua família; desvio, para o patrimônio pessoal do presidente, de joias doadas ao Estado brasileiro; e presença na citada reunião presidencial em que foi discutida uma minuta de golpe de estado.
Esses episódios tiveram diversificados efeitos sobre o clima político e social do país e sobre a corporação. A imagem dos militares junto à opinião pública foi negativamente afetada, e o comandante do Exército declarou aceitar a eventual punição de oficiais envolvidos na tentativa de golpe. Ao mesmo tempo, o governo iniciou intenso diálogo com as Forças Armadas destinado a reduzir a politização dos quarteis.
No passado, a imagem pública das Forças Armadas ficou abalada com a ruptura democrática promovida pelo Golpe de 64 e, quatro anos depois, com endurecimento do regime por meio do Ato Institucional número 5. Esses efeitos negativos sobre a percepção pública da corporação foram, em certa medida, compensados por reformas institucionais – criação do Banco Central, da Embrapa, da Embraer, do Cenpes – e avanços econômicos que, embora tenham beneficiado muito mais os extratos de renda mais alta, tiveram efeitos positivos sobre o emprego, a produtividade, a modernização e o crescimento da economia. É bem verdade que esse crescimento foi pouco inclusivo, tendo como meta “crescer o bolo para depois dividir” e tendo como mecanismo a correção monetária, que beneficiava as classes média e alta, escondia a inflação, e era socialmente perverso.
Com o passar dos anos essas compensações foram desaparecendo e o final do regime foi desastroso – uma economia à beira da hiperinflação, uma sociedade cansada do autoritarismo e um trágico saldo de centenas de mortos, torturados e desaparecidos. A transição, iniciada com a anistia de Geisel, isentou os militares de penalidades, e a Constituição de 1988, no Artigo 142, preserva referência ao papel político dos militares, a exemplo de cinco das sete constituições brasileiras.
Nos 33 anos pós-redemocratização, as Forças Armadas estiveram em grande medida ausentes do jogo político, o que contribuiu para o avanço da democracia, apesar das turbulências geradas pelo impeachment de dois presidentes e pela maior recessão econômica desde os anos 1930. O ponto de inflexão nessa trajetória virtuosa foi o governo Bolsonaro, que trouxe de volta os militares para a cena política e produziu um marcante desgaste na imagem da instituição. Isso tem sido comprovado por pesquisas recentes de opinião pública, sobretudo após a divulgação de partes da delação premiada do ajudante de ordens do presidente, tenente-coronel Mauro Cid.
A carreira militar constitui um exemplo da chamada “instituição total”, ou seja, aquela que assume a integralidade da personalidade de seus membros, tornando inevitável uma adaptação profunda da personalidade do indivíduo ao ethos da instituição. Acontecimentos históricos carregados de simbolismos – a derrota das revoltas durante a Regência; a vitória na Guerra do Paraguai; a luta pela abolição dos escravos; o positivismo; a proclamação da República; e o tenentismo – fizeram com que os militares passassem a ser vistos, por eles mesmos e por amplo segmento da população, como responsáveis pela missão patriótica de salvar o país do caos político e da desordem social.
Aí reside a semente ideológica da justificativa para o Poder Moderador das Forças Armadas, preservado no imaginário corporativo e, em certa medida, popular. Semente cultivada pela percepção de que, em contraste com os civis e a classe política, os militares são honestos, sérios, disciplinados e têm espírito público.
Essa visão autocentrada da corporação está associada ao que Celso Castro chama de O Espírito Militar, em livro com o mesmo título. Resulta de uma estreita convivência com os colegas de farda, que muitas vezes começa aos 11 anos de idade, no curso de admissão ao Colégio Militar, passa pela Escola Preparatória de Cadetes, e vai até a Academia Militar das Agulhas Negras (Aman). Ou seja, são praticamente 12 anos em sistema de internato, seguidos pela convivência no quartel e, em muitos casos, por moradia em vilas militares. Esse estilo de vida, com reduzida convivência com civis, gera uma visão de mundo à parte, onde a corporação se torna o eixo central da formação e irradiação de valores, e o oficial-cidadão tem pouco espaço para desenvolver um pensamento próprio dissociado dos valores corporativos.
Assim, em princípio, a instituição não comete erros e, se ocorrem, é preciso, acima de tudo, preservar a “família militar”. Essa lógica corporativa explica nossa incapacidade histórica de punir militares responsáveis, na ditadura, por crimes e outras violações de direitos humanos, ao contrário da Argentina e do Chile. Incapacidade que, no governo anterior, transmudou-se em absurda exaltação, por parte do presidente e do vice-presidente, da figura-símbolo da tortura em nosso país, o coronel Brilhante Ustra.
A sucessão de episódios, anteriormente descritos, que minaram a imagem das Forças Armadas, produziu dois sérios agravantes, tanto na esfera política como no plano da corrupção. O primeiro foi a articulação entre oficiais, inclusive ex-integrantes do Alto Comando, para a tentativa de golpe, destinado a impedir a posse do presidente legitimamente eleito. O segundo foi a participação de militares em operações irregulares e desonestas, como falsificação de cartões de vacinação e apropriação pessoal, pelo presidente, de presentes destinados ao patrimônio público.
O primeiro agravante, de cunho político, está sendo investigado pela Polícia Federal. As evidências de ações antidemocráticas praticadas por militares provocam indignação generalizada, sendo minuciosamente monitoradas por parte da imprensa, academia, ONGs e outros setores da sociedade civil. O segundo agravante, vinculado à corrupção, é também detalhadamente observado pela sociedade civil. Ambos provocam desgaste da corporação junto à opinião pública e, talvez, junto a si mesma.
O intenso diálogo atualmente em curso entre autoridades civis e militares tem o duplo propósito de fortalecer a democracia – ao afastar a possibilidade de futuros golpes militares – e de preservar o papel legítimo das Forças Armadas na defesa da integridade territorial, da soberania e da ordem pública. Como conciliar esses dois objetivos? Que medidas concretas estão sendo tomadas para impedir a volta da política aos quartéis? O governo se sente seguro para empreender essa tarefa histórica de combater o recorrente intervencionismo militar contrário à consolidação da democracia?
Avanço institucional de peso nessa direção foi o projeto de lei, em exame na Câmara e com boas chances de aprovação, que determina o desligamento da carreira daqueles militares candidatos a cargos eletivos. No mesmo sentido se situa a recente decisão do STF de suspender a participação do Ministério da Defesa na avaliação do sistema eleitoral.
Parece inegável a disposição dos comandantes das Três Forças de apoiar, e até mesmo acelerar, as investigações da Polícia Federal, uma vez que seu prolongamento provoca desgaste crescente na imagem pública da corporação. Entretanto, apesar dessa disposição e do clima de cordialidade entre o comandante do Exército e o Ministro da Defesa, ainda parece difícil determinar até onde poderão chegar as eventuais condenações dos militares de alta patente por envolvimento na tentativa de golpe.
As críticas da sociedade civil dirigidas aos militares pelo envolvimento na tentativa de golpe e nas irregularidades no episódio das joias sauditas tendem a abalar a autoestima da corporação, sempre vista por seus integrantes como ícone do patriotismo, da honestidade e do espírito público. Quanto mais cedo sejam punidos os culpados, melhor para as Forças Armadas e para o país. É natural que a corporação procure personalizar e não institucionalizar as irregularidades e crimes cometidos. Entretanto, a instituição ainda resiste em aceitar penalidades muito severas para seus integrantes. Essa atitude corporativista pode vir a conflitar com os anseios da sociedade civil e das demais áreas do governo.
É compreensível que o momento atual exija moderação por parte do governo, sobretudo à luz do risco recente de um golpe e do episódio do 8 de janeiro, com envolvimento de oficiais de alta patente, inclusive de ex-membros do Alto Comando. Essa moderação se traduz, nesse momento, em adiar qualquer veleidade de rever o Artigo 142 da Constituição de 1988.
Entretanto, é útil e oportuno que essa questão seja debatida e esclarecida junto à opinião pública. O Artigo 142 é de fato ambíguo. Inicialmente estabelece que as Forças Armadas “destinam-se à defesa da pátria, à garantia dos poderes constitucionais”. Nesse sentido, elas assumem o papel de um outro Poder, e não de uma instituição vinculada ao Poder Executivo (como o é na verdade), sendo, portanto, associadas ao Poder Moderador do Império.
Apenas em seguida o Artigo faz a seguinte referência – “e, por iniciativa de qualquer destes (poderes constitucionais), (destinam-se à defesa) da lei e da ordem”. Fica claro que as FFAA “destinam-se … à garantia dos poderes constitucionais”, sem necessidade de “iniciativa de qualquer destes (poderes)”. Essa necessidade surge apenas no caso de “garantia … da lei e da ordem”.
Em outros termos, o Artigo 142 não menciona que as FFAA têm Poder Moderador, embora isso possa ser alegado, uma vez que elas ficam isentas de “iniciativa de qualquer destes (poderes) para “garantia dos poderes constitucionais”. Apenas para o caso de operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), as FFAA necessitam de “iniciativa de qualquer destes poderes”.
A esse respeito, esclarecimento importante foi a decisão do ministro Luiz Fux, do STF, que estabeleceu interpretação legal de que o artigo 142 e a lei complementar 97/1999 não permitem que as Forças Armadas atuem para moderar conflitos entre os poderes da República.
A decisão acima foi relevante porque grupos de extrema-direita, o próprio presidente e o vice-presidente da República desvirtuam o sentido do Artigo 142, com o propósito de servir de base jurídica para um suposto Poder Moderador das FFAA e, assim, fragilizar o equilíbrio entre os poderes, as instituições e a democracia. Embora inoportuna no atual momento, a revisão do Artigo 142, que exige Proposta de Emenda Constitucional (PEC), se impõe no futuro próximo.
Em síntese, parece remota a possibilidade de grandes avanços no sentido de uma solução definitiva para o que chamamos aqui de “questão militar”. As razões mais fortes para essa dificuldade residem na resiliência do “bolsonarismo sem Bolsonaro”, que abrange cerca de um quarto da sociedade e parcela ainda maior da corporação militar. A isso se soma a frágil base de sustentação do governo em um Congresso de ampla maioria conservadora e fisiológica. Ademais, o objetivo central do governo é aprovar o programa econômico – pré-condição para elevar sua aprovação popular. Nesse contexto, a “questão militar” se dilui e assume papel secundário. Assim, avanços lentos e tópicos deverão ocorrer no processo em curso de despolitização dos quarteis. Mas desatar o nó górdio, com a revisão do Artigo 142 e a neutralização do Poder Moderador das Forças Armadas, ainda é uma longa estrada a ser pavimentada.
*Sergio Abreu e Lima Florêncio é colunista da Interesse Nacional, professor de história da política externa brasileira no Instituto Rio Branco, economista e foi embaixador do Brasil no México, no Equador e membro da delegação brasileira permanente em Genebra.
Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional
Sergio Abreu e Lima Florêncio é colunista da Interesse Nacional, economista, diplomata e professor de história da política externa brasileira no Instituto Rio Branco. Foi embaixador do Brasil no México, no Equador e membro da delegação brasileira permanente em Genebra.
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