Um panorama do setor agropecuário no primeiro ano de governo
Guilherme Soria Bastos Filho é agrônomo pela Universidade Federa del Viçosa, mestre em Agricultura pela Esalq/USP e pela University of Maryland. Coordena o Centro de Estudos do Agronegócio da FGV. Foi presidente do Conselho de Administração da Embrapa e assessor da Secretaria de Política Agrícola do Ministério da Agricultura
O setor agropecuário brasileiro apresentou um excelente desempenho no primeiro ano do governo, superando mais um ano de adversidades climáticas, instabilidade geopolítica e incertezas em relação às prioridades do novo governo, que começou com mudanças estruturais na composição do Ministério da Agricultura e Pecuária (MAPA), sob a orientação da reforma ministerial em janeiro de 2023[1].
Segundo o MAPA, o valor bruto da produção agropecuária (VBP), cresceu 2,2% entre janeiro e outubro de 2023 em relação ao mesmo período em 2022, atingindo R$ 1,15 trilhão. A safra de grãos foi recorde, alcançando 321,4 milhões de toneladas na safra 2022/23, 17,9% maior do que o ciclo anterior, segundo a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab). Os destaques foram a soja e o milho, que tiveram um aumento de 23% e 16,5% na produção, respectivamente.
O setor agropecuário cresceu, na média, mais do que os demais setores ao longo do ano. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), enquanto o produto interno bruto (PIB) da atividade “dentro da porteira” cresceu 17,9% no primeiro semestre de 2023, a economia brasileira, registrou uma expansão de 3,7%. As exportações do agronegócio atingiram US$ 139,6 bilhões até outubro de 2023, representando 3% a mais do que no mesmo período de 2022, contribuindo com US$ 125,7 bilhões para o saldo da balança comercial brasileira.
O bom desempenho do agronegócio e, sobretudo, da agropecuária, refletiu positivamente no mercado de trabalho associado a essas atividades. Segundo o Centro de Estudos Avançados e Economia Aplicada (CEPEA) e a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), o agronegócio gerou 28 milhões postos de trabalho apenas no 1º trimestre de 2023, representando cerca de 27% do total de empregos no país. Além disso, de acordo com o levantamento do Centro de Estudos do Agronegócio da Fundação Getúlio Vargas (FGVAgro), com base nos dados do IBGE, a formalidade no setor agropecuário cresceu 3,8%, e a remuneração média mensal real expandiu em 6,1% entre o primeiro semestre de 2022 e o primeiro de 2023.
A nova estrutura ministerial, transferindo para o Ministério do Desenvolvimento Agrário as competências relacionadas à agricultura familiar e ao abastecimento, reacendeu a dicotomia entre agricultura comercial e a agricultura familiar, bem como entre a agricultura exportadora e a segurança alimentar.
A associação do termo “agronegócio” ao latifúndio e à atividade exportadora tem sido utilizada de forma equivocada. O termo representa um conceito de cadeia de valor, englobando a produção primária (seja ela oriunda da agricultura de pequeno, médio ou grande portes), a produção dos bens industriais e dos serviços relacionados a essas atividades, que são necessários para a produção, para o transporte e para o beneficiamento.
Setor exportador gera dinâmica benéfica
De forma equivocada, associa-se o excelente desempenho das exportações agrícolas com a fome e a insegurança alimentar no país, e, desta forma, justifica-se a retomada da política de formação de estoques estratégicos para assegurar o abastecimento de alimentos. No entanto, não há falta de alimento para o consumo doméstico no Brasil. Exporta-se a produção excedente, vendida a preços competitivos no mercado internacional, sem gerar desabastecimento interno.
De acordo com a Conab, cerca de 70% da produção total de carnes (avicultura de corte, suínos e bovinos) é destinada ao consumo interno. No caso da soja, o Brasil processa 40% do que é produzido sob a forma de óleos (para consumo humano e biodiesel) e farelos e exporta 60%. Para o milho, 60% da produção é utilizada para ração animal e produção de etanol e o restante é destinado ao mercado externo.
O setor exportador gera uma dinâmica benéfica para o setor, escoando o excedente e gerando contratos antecipados com os produtores, mantendo a oferta ajustada, inclusive para produtos da cesta básica, como o arroz, o feijão e a mandioca. A maior participação do Brasil no mercado agrícola mundial gerou um nivelamento de preços internos com as cotações das principais bolsas de mercadorias internacionais, criando um círculo virtuoso para o setor, tendo como resultado um crescimento importante na produção de grãos, que duplicou nos últimos 15 anos.
Os pontos são a desigualdade na distribuição de renda e a parcela da população que vive abaixo da linha da pobreza (segundo a FGV, em 2021 atingiu 27 milhões de pessoas). Políticas compensatórias de renda e de distribuição de alimentos como o Bolsa Família, o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) devem ser usadas para mitigar este problema. A restrição para irrigar esses programas é orçamentária. O Governo Federal, em 2023, destinou R$ 3 bilhões para compras públicas, incluindo o PAA e o PNAE.
Com um discurso mais alinhado com a comunidade internacional em relação às questões climáticas, de sustentabilidade e meio ambiente, o ministério avançou em diversas frentes. Até final de novembro, foram abertos 71 mercados para produtos diversos da agropecuária brasileira. Foram nomeados novos adidos agrícolas em 27 países para trabalhar na abertura, manutenção e ampliação de mercados para o agronegócio brasileiro.
Nas negociações entre Mercosul e União Europeia, a questão ambiental ficou ainda mais evidente após a aprovação do Green Deal pelo Parlamento Europeu.
O Brasil precisa acelerar o processo de validação do Código Florestal, bem como se preparar para a rastreabilidade da sua produção e comprovação das práticas agropecuárias com baixa emissão de carbono. Vale destacar que mesmo com esse alinhamento internacional, a performance das exportações brasileiras cresceu apenas 3% em relação ao ano passado.
País é vigilante nas questões sanitárias
No âmbito da defesa sanitária, o país se manteve livre da gripe aviária em estabelecimentos comerciais, apesar dos focos detectados em aves silvestres e em aves de subsistência. O país segue vigilante para importantes questões sanitárias, como a monilíase do cacau, a mosca da carambola, a peste suína africana, dentre outras. A recomposição orçamentária e novos concursos são fundamentais para manter a atividade fiscalizatória em operação. É uma ação de segurança estratégica para o país, em função dos impactos econômicos e sociais que a entrada de uma praga ou de uma doença podem causar no setor, sem contar os efeitos diretos e adversos na balança comercial.
É preciso trabalhar também na normatização da arrecadação pela prestação de serviços por entidades da administração direta. O estabelecimento da regra de teto de gastos e a crise fiscal do estado brasileiro foram responsáveis por inviabilizar serviços essenciais para a economia brasileira, serviços que, no passado, foram financiados por taxas específicas, as quais foram progressivamente abandonadas, já que não revertiam ao propósito original. Fica difícil justificar ao cliente privado, que pagou a taxa de serviço, o não atendimento por falta de recursos. O Brasil, no passado, já financiou e a maioria dos países financia este tipo de serviço por meio de taxas específicas.
O governo apoiou o setor agropecuário com medidas como a renegociação das dívidas dos produtores rurais afetados pela seca, a ampliação do crédito rural e o fortalecimento da agricultura familiar e da reforma agrária. Com o desmembramento do ministério, foram anunciados separadamente os planos Safra para a agricultura empresarial e para a agricultura familiar. O plano anterior disponibilizou R$ 340,9 bilhões para os dois públicos. Para o plano atual (2023/24), o volume total de linhas disponibilizadas foi de R$ 435,8 bilhões, R$ 364,2 bilhões para a agricultura empresarial (médios e demais produtores) e R$ 71,6 bilhões para a agricultura familiar.
O Governo Federal manteve a priorização para pequenos e médios produtores amparados pelo Pronaf (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar) e pelo Pronamp (Programa Nacional de Apoio ao Médio Produtor Rural), aumentando o volume destinado de financiamento em R$ 11,5 bilhões e R$ 17,4 bilhões, respectivamente. Estima-se que 62,5% dos R$ 13,6 bilhões, que serão despendidos para o pagamento de equalização nas taxas de juros subvencionadas das linhas de financiamento, irão para a agricultura familiar. As taxas da agricultura familiar foram reduzidas em um ponto percentual, variando de 3% a 5%. Para a agricultura empresarial, as taxas de juros permaneceram praticamente no mesmo patamar que o plano anterior, variando de 7% a 12,5%.
Procurou-se avançar na integração entre a política de crédito e ambiental. O antigo Programa ABC+, que já atuava com taxas de juros reduzidas, foi rebatizado como RenovAgro (Resolução CMN n. 5079). O incentivo para os produtores com o CAR analisado deixou de ser um aumento do limite de crédito de custeio de até 10%, e passou a ser um desconto de 0,5 ponto percentual nas taxas de juros de custeio (exceto para as operações no âmbito do Pronaf e das cooperativas). Foi anunciado um abatimento adicional de 0,5 ponto percentual nas operações de custeio para beneficiários que adotam práticas ambientalmente sustentáveis. No entanto, essas medidas ainda têm surtido pouco efeito. No caso do Cadastro Ambiental Rural (CAR), a validação pelos estados continua muito lenta e o rebate pelo uso das práticas sustentáveis precisa de normatização e comprovação.
No entanto, para se garantir um Plano Safra cada vez mais verde e mais recursos para incentivar a adoção de práticas sustentáveis ou com baixa emissão de carbono, é preciso definir o volume de recursos para a subvenção antes do envio do Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA), que acontece no início do segundo semestre. Os modelos de financiamento setorial conforme previstos na Lei Nº 8.171 (de 17 de janeiro de 1991) precisam ser revistos diante das necessidades do setor e novas prioridades da política pública.
O estabelecimento do Plano Safra nos moldes atuais foi um grande avanço, no entanto, um modelo que estabelece uma vez ao ano os montantes e regras para os próximos 12 meses fica rapidamente defasado. O setor almeja a plurianualidade (orçamento) do Plano Safra, talvez num modelo de 4 anos, como o americano, que poderia ser atrelado ao Plano Plurianual (PPA), previsto na Constituição Federal. Ainda no plano orçamentário, o ministério deveria buscar junto à área econômica e de planejamento, a possibilidade de um orçamento único com gestão flexível, o que lhe concederia a governança de todos os recursos destinados ao crédito rural, à garantia de preços e ao seguro rural (subvenções).
Referente às questões vinculadas às mudanças climáticas e aos riscos associados, pouco se avançou neste primeiro ano. Em 2023, foi destinado R$ 1 bilhão de subvenções para o Programa de Subvenção ao Prêmio do Seguro Rural (PSR), enquanto para o Programa de Garantia da Atividade Agropecuária (Proagro), administrado pelo Banco Central, quase R$ 10 bilhões serão pagos em indenizações (o Tesouro Nacional atua como ressegurador). Essa desproporcionalidade na alocação do orçamento público entre essas duas políticas mostra ser imperativa a revisão dos modelos.
No passado, demandou-se ao Banco Central e ao antigo ministério da Economia que o orçamento do PSR fosse vinculante, com o mesmo status das Operações Oficiais de Crédito (OCC). Sem previsibilidade na contrapartida do governo no fomento à participação privada no seguro rural, sem regulamentação do Fundo de Catástrofe e a indisponibilidade dos recursos do Fundo de Estabilidade do Seguro Rural (FESR) em função do teto de gastos, as seguradoras retraem e passam a ofertar menos no mercado. A universalização do seguro rural deveria ser uma meta a ser buscada. O governo fica menos exposto às renegociações de dívidas, confere maior segurança para o desenvolvimento do mercado de capitais e reduz a dependência do modelo atual de financiamento baseado na subvenção da taxa de juros.
Finalmente, falta consolidar um sistema de estatísticas e inteligência estratégica para o setor agropecuário brasileiro. A desvinculação da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) do MAPA foi uma perda, principalmente a área responsável pela previsão de safra e inteligência, que passou a incorporar funções na área social. Apesar de todo avanço, modernização, incorporação de tecnologias e crescimento, o setor carece de informações confiáveis sobre estatísticas básicas como tamanho de safras, rebanhos, áreas agricultáveis e de pastagens, monitoramento climático e condições das lavouras, estoques de passagem, dentre outras. A complexidade da agropecuária brasileira, somada às exigências de uma produção socialmente responsável e sustentável, demanda um trabalho multidisciplinar, com a concatenação de diversas bases de dados, temas e variáveis.
O principal desafio para 2024 é manter a competitividade do setor, diante da valorização do real e da concorrência internacional, a fim de mitigar os riscos climáticos e avançar na sustentabilidade ambiental e social da produção agropecuária.
Referência bibliográfica
[1]. Decreto presidencial 11.332/2023. Órgãos que haviam sido incorporados ao MAPA em 2019, como a Secretaria Especial de Agricultura Familiar e do Desenvolvimento Agrário (SEAD), o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), a Secretaria Especial da Aquicultura e da Pesca (SEAP), a Secretaria de Desenvolvimento Sustentável do Ministério do Meio Ambiente (MMA) e o Serviço Florestal Brasileiro (SFB), também oriundo do MMA, foram desmembrados. Foi recriado o Ministério de Desenvolvimento Agrário, o Serviço Florestal Brasileiro voltou para o MMA e a responsabilidade sobre o Cadastro Ambiental Rural (CAR) foi transferida para o Ministério da Gestão e Inovação (MGI). O Ministério de Aquicultura e Pesca foi recriado, levando a Secretaria de Aquicultura e Pesca.
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