‘Muito’ ou ‘pouco’ Estado? Esta não é a pergunta certa a ser feita
No capitalismo há interdependência e complexidade nas relações políticas entre os dois, e é preciso ter um Estado forte para promover o bem-estar social. A discussão deve buscar um equilíbrio adequado para o desenvolvimento, com foco na competência estatal na execução de suas funções adaptadas às necessidades setoriais e estruturais do país
O capitalismo é um sistema econômico caracterizado pela propriedade privada dos meios de produção e de sua exploração com fins lucrativos. Por assim, é o Estado que garante e reconhece juridicamente a propriedade dos bens dos indivíduos. Em outras palavras, é o Estado que assegura a existência do sistema capitalista. Esse sistema é composto por uma cadeia de instituições, incluindo os mercados como instituições de troca, as firmas como instituições de produção, e o Estado, enquanto instituição política, como o criador e regulador das instituições. Além disso, incluem-se outras instituições informais, como os comportamentos moldados e compartilhados ao longo de gerações entre os indivíduos de uma sociedade, ou seja, as convenções sociais institucionalizadas.
No capitalismo, mercado e Estado se conectam por relações políticas. O mercado baseia-se num complexo conjunto de restrições formais e informais que regulam quem pode participar dele, quais as mercadorias podem ser transacionadas, define os direitos e deveres dos agentes, bem como o procedimento adequado no caso do não cumprimento dos acordos firmados. Portanto, o mercado não existe num ambiente livre de instituições, já que o próprio mercado é uma instituição.
O Estado, por sua vez, é um ator importante que atua de modo direto na promoção de políticas, e na intervenção dos mercados. O Estado está na complexidade das motivações humanas dentro da esfera pública, indo desde comportamentos com autointeresse até comportamentos não egoístas com base em grupos, em ideologias e em juízos de valor. O Estado é uma instituição capaz de criar novas instituições, além de ser o responsável pelo controle das já existentes, o mercado.
A criação e o controle das instituições pelo Estado são mediados por relações políticas, já que a influência dos atores sociais no âmbito do Estado pode direcionar as políticas governamentais de acordo com seus interesses, não havendo uma forma correta de delimitar até onde essas relações se permeiam. As relações políticas ocorrem entre agentes que possuem concepções diferentes acerca da estrutura de direitos de propriedades e deveres incluídos nas instituições. Enfim, o Estado é um ator estratégico por possuir papel fundamental através da construção de relações políticas com o mercado, o que torna falsa a ideia de “despolitização do mercado”.
Dada a complexidade da inter-relação entre Estado e mercado, torna-se impraticável que um país, sobretudo aqueles com elevados índices de desigualdade, como o Brasil, alcance um desenvolvimento razoável com um conceito de “Estado mínimo” ou “pouco Estado”, a menos que se defina “pouco” como o necessário para garantir um mercado eficiente e equitativo para toda a sociedade. De outro lado, é desafiador alcançar a eficiência de mercado quando o Estado interfere de forma errônea, como concedendo isenções fiscais inócuas e políticas protecionistas mal desenhadas. Neste aspecto, a subjetividade de definir o que é “pouco” ou “muito” Estado não é a pergunta certa a ser feita.
O Estado deve ser o suficiente para fomentar e realizar os fins definidos pela sociedade por meio dos seus representantes, no caso brasileiro, estabelecidos na Constituição de 1988. Nesta, está atrelada a construção de uma sociedade baseada nos direitos universais, garantidos pelo Estado. Deste modo, a valorização dos sistemas públicos de saúde, da educação pública, das redes de proteção social, das diversas políticas públicas de desenvolvimento econômico-social é, de forma crucial, exercida pelo papel do Estado na alocação dos recursos da sociedade brasileira.
A atuação do Estado prestador de serviços (gastos com educação, saúde e benefícios sociais), ou o Estado de Bem-estar (Estado protetor) que inclui tanto a provisão de serviços de educação e saúde gratuita e universal, quanto os programas de assistência e de seguridade social (aposentadorias, seguro desemprego e outras transferências de renda ou de mercadorias) voltados à proteção da sociedade, principalmente aos mais vulneráveis, reflete as prioridades alocativas de um governo eleito, com base na Constituição.
Assim sendo, a pergunta a ser feita é; quais instituições e políticas podem representar os anseios dos mais necessitados, daqueles à margem das benesses do crescimento e do desenvolvimento económico-social do país? Que o Estado brasileiro precisa ser mais presente é fato! Entretanto, os resultados dessa atuação dependerão da qualidade da sua ação. O Estado é uma instituição, e as instituições não funcionam no “vácuo”, mas se interagem de forma sistêmica em um amplo ambiente institucional. Deste modo, não há tipos e formas exatas de instituições pré-determinadas – “fetiche da forma” – para que cada país possa estabelecer suas políticas e suas diretrizes visando alcançar o Bem-estar social de sua sociedade.
Ao discutir o papel do Estado, é essencial evitar uma visão simplista e infantil, que o enxergue apenas como corretor de falhas de mercado. Deve-se, em vez disso, reconhecer sua função intrínseca na criação de condições para o desenvolvimento do mercado e na promoção dos fundamentos sociais essenciais de toda a sociedade, sem privilegiar exclusivamente determinados grupos (lobbies) que sustentam a base política do governo.
A partir da década de 1990, nos países da América Latina, em especial no Brasil, emergiu uma nova perspectiva na concepção da ação do Estado, influenciada pelos princípios de Washington, ou seja, pelo receituário liberal econômico. Inicia-se, então, o processo de transferência da prestação de serviços do Estado e de suas atividades econômicas para a iniciativa privada, de modo a garantir políticas regulatórias credíveis após as privatizações, liberalização e regulação de diversos setores produtivos. O Estado retraiu sua capacidade de ação.
Já na crise de 2008 e da Covid-19, incorporadas ao processo das ideias liberais advindas dos anos 90, as funções do Estado como estudado nos manuais de economia, da ciência política, do direito e da sociologia, saíram das páginas e passaram à realidade. A necessidade de uma intervenção significativa do Estado na alocação dos recursos da sociedade se fez presente.
Em especial, após 2016, com o retorno de governos de ideologias liberais no Brasil, há uma significativa redução nas políticas assistenciais e sociais, quase eliminando-as por completo. O crescimento da massa salarial é limitado, o que resulta na redução do consumo das famílias, na elevação da pobreza e no retorno do país ao mapa da fome. As instituições se fragilizam e a desindustrialização persiste sem que seja estabelecida qualquer política industrial. Além disso, a busca pela redução do Estado, por meio de privatizações em setores essenciais, afeta principalmente, como de costume, aqueles que vivem à margem da sociedade.
Com o início do terceiro governo Lula em 2023, há uma retomada das políticas sociais, com ampliação de projetos direcionados aos mais vulneráveis. Além disso, reiniciaram-se as políticas de reindustrialização, acompanhadas pelo aumento do salário real, visando a redução da desigualdade e da pobreza sistêmica.
Enfim, não é mais ou menos Estado a questão central para uma estratégia de desenvolvimento de um país. O pressuposto básico é determinar qual configuração estatal é necessária para sustentar o equilíbrio entre o Estado e o mercado, possibilitando que o país alcance o status de um país desenvolvido.
Não há, de fato, experiência de desenvolvimento desde o século XX que tenha omitido a função ativa do Estado na economia. A literatura científica sobre o desenvolvimento econômico-social está permeada por proposições equivocadas. A literatura científica sobre o desenvolvimento econômico-social está permeada por proposições equivocadas. Por exemplo, a ideia de que o livre comércio beneficia a todos os países é frequentemente sustentada por narrativas empíricas superficiais, que, por sua vez, tendem a distorcer ao contexto histórico do desenvolvimento económico dos países, levando a equívocos aos desinformados.
A maneira como o Estado desempenha seu papel em determinadas arenas terá respostas distintas, pois os resultados dependem não apenas da extensão em que os papéis se encaixam no contexto, mas também da competência demonstrada em sua execução. Isso estaria diretamente relacionado às variações setoriais e a formações das estruturas internas do Estado. Em relação aos setores produtivos, estes apresentam características diferentes em suas técnicas de produção e nas formas de organização industrial. Consequentemente, cada setor exige particularidades no que se refere a um papel ou a várias combinações de papéis para impulsionar o crescimento daquele setor específico. Já em relação às estruturas internas, tipos de estruturas diferentes gerariam capacidades de ações e de respostas diferentes, o que resultaria em variadas funções que o Estado pode representar. Cada nação se organiza com base nos seus objetivos de crescimento e desenvolvimento econômico e social estabelecidos a longo prazo. Nesse sentido, é necessário pensar de forma autônoma como a atuação do Estado deve ser conduzida para alcançar tais propósitos.
*Luiz César Silva é economista, doutor em administração pública pela Universidade do Minho e mestre em administração pública pela Fundação João Pinheiro (MG). Lecionou no Departamento de Relações Internacionais e Administração Pública da Universidade do Minho, onde atualmente desenvolve projetos de pesquisa sobre governança, democracia, instituições e desenvolvimento econômico-social.
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