‘Eles acreditaram em mim’ – O caso Daniel Alves e o Brasil
A condenação do jogador de futebol por estupro foi vista como um avanço da Espanha e inspirou a criação de uma nova lei brasileira para atender vítimas de violência sexual. Para cientista social, entretanto, ainda há entraves a serem superados
A condenação do jogador de futebol por estupro foi vista como um avanço da Espanha e inspirou a criação de uma nova lei brasileira para atender vítimas de violência sexual. Para cientista social, entretanto, ainda há entraves a serem superados
Por Fhoutine Marie*
Daniel Alves foi condenado por estupro em 22 de fevereiro pelo estupro de uma mulher em uma boate na Espanha. Depois de mudar de versão pelo menos cinco vezes e contar com uma ajuda financeira da família do amigo Neymar, a pena do jogador de futebol foi reduzida pela metade, passando dos 9 anos pedidos pela promotoria para 4 anos e meio.
Destaque na imprensa, o julgamento foi noticiado com muitos elogios ao sistema penal espanhol, com o protocolo de atendimento às vítimas de violência sexual expresso na lei Solo sí es sí (só sim é sim), aprovada em 2022. Esta, por sua vez, inspirou a criação de uma lei semelhante no Brasil, Não é Não, da deputada Maria do Rosário, que deve entrar em vigor no segundo semestre deste ano.
Outro ponto destacado na cobertura midiática foi a fala da vítima após anunciada a condenação: “Eles acreditaram em mim”. A sentença, apesar de abrandada, foi celebrada por ser a primeira vez em que alguém rico e poderoso é preso naquele país após a mudança da lei para esse tipo de crime.
Este pequeno resumo traz dois pontos que merecem uma reflexão mais ampla:
- Quando a palavra de uma mulher pode ser considerada merecedora de credibilidade?
- Foco dado pela lei na proteção da vítima. Porque o noticiário da semana passada me deu a impressão que fui dormir e acordei num mundo pró-mulher e que o feminismo venceu. Mas, infelizmente, ainda não.
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Em Mulheres e Poder – Um manifesto (2017), a historiadora britânica Mary Beard mostra que desde a antiguidade estão presentes narrativas que mostram o silenciamento das mulheres, colocando suas falas como irritantes ou ardilosas, nunca adequadas à esfera pública e ao exercício do poder político. Beard frisa que, embora não sejamos meros joguetes ou vítimas da herança clássica, ela nos forneceu um poderoso gabarito para pensar o discurso público e sua relação com o gênero.
Nos mitos gregos a violência sexual não é apenas naturalizada. Ela muitas vezes aparece como uma prerrogativa dos deuses e dos homens poderosos, que frequentemente se valem da força ou da enganação para possuir as mulheres que desejavam. Zeus se transformava em animais como cisnes e touros para “seduzir” jovens donzelas e chegou a assumir a forma do marido de uma mulher casada para fazer sexo com ela.
Além de Zeus, há muitos outros exemplos de estupros nas narrativas gregas. Um dos mais conhecidos é o de Medusa, violentada por Poseidon no templo de Atena, do qual era sacerdotisa. Ao relatar o ataque a Atena, Medusa não recebe compaixão, mas fúria e punição pelo sacrilégio. A vítima neste momento é transformada em uma criatura repugnante e perigosa. A história de Medusa ilustra a culpabilização da vítima e a dúvida que pesa sobre sua palavra. Ela também estabelecer que o estupro deixa marcas visíveis, um ato do qual seria impossível se recuperar.
A escritora feminista francesa Virginie Despentes aborda essas questões em um capítulo dedicado à violência sexual e suas sobreviventes no livro Teoria King Kong (2016). Descrito como “a ferida de uma guerra que se trava no silêncio e na obscuridade”, o estupro em nossa cultura é narrado como um trauma que jamais pode ser superado. Deste modo, a sobrevivência à violação é frequentemente usada contra a vítima. Uma mulher que se preocupa com a própria dignidade deveria ser capaz de matar seus agressores ou morrer lutando. Se ela sobrevive, diz Despentes, talvez o ato não a tenha enojado tanto assim.
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Refletir sobre o caso Daniel Alves à luz destes argumentos mostram que a declaração da vítima “eles acreditaram em mim” ao final do julgamento possui várias camadas. Trata-se do crédito dado à palavra de uma mulher jovem e anônima diante de um rico, famoso e maduro. Trata-se também do fracasso da tentativa de descredibilizar a mulher alegre, sugerindo que ela não parecia marcada por um trauma que, como aponta Despentes, deveria ser irreversível.
Por essas e outras razões a sentença foi celebrada pela ministra da Igualdade Racial da Espanha, Irena Montero. “Acabou a impunidade. Só sim é sim”, publicou em uma rede social. “Até agora, muitos agressores se sentiam impunes devido ao seu poder, à sua posição social ou a normas culturais que não conferiam credibilidade à vítima. Espanha está a mudar e embora ainda haja muito a fazer, o silêncio das mulheres e a impunidade dos agressores acabaram”, escreveu.
Contudo, não é possível pensar seriamente a condenação sem considerar algumas variáveis como raça e nacionalidade. Sem desconsiderar a palavra da vítima e todas as evidências apresentadas, pensando apenas na natureza política dos tribunais cabe perguntar: a Justiça espanhola acreditou na vítima ou apenas não acreditou em Daniel Alves?
Se por um lado temos uma opressão de gênero e classe – um homem forte, rico e famoso – de outro não é possível esquecer que se trata de um homem negro latinoamericano vivendo em um país europeu. O primeiro acusado rico e famoso a ser condenado após a mudança da lei naquele país. Traços que riqueza nenhuma é capaz de apagar em um país que já hostilizou publicamente Alves e outros atletas negros atirando bananas ou imitando macacos enquanto esses estavam em campo.
Não se trata de tentar inocentar Alves, mas de admitir que independente de seu status, ele é mais condenável que um agressor branco e europeu. Nesse caso, a palavra de uma mulher segue insuficiente. É preciso que várias vítimas corroborem as denúncias para que um homem branco rico seja punido, como mostram os casos dos brasileiros Roger Abdelmassih, Saul Klein e Thiago Brennad e os norte-americanos Jeffrey Epstein e Harvey Weinstein.
É o que mostra um caso recente ocorrido no Brasil, semelhante ao caso Daniel Alves, em que apesar de todas as evidências, acabou com o réu inocentado e mais de 160 pessoas processadas, incluindo jornalistas que cobriram o julgamento. Em algumas situações, como o caso João de Deus, a decisão judicial pode simplesmente ser contornada por bons advogados. O médium cujas condenações somam quase 500 anos atualmente cumpre a pena em regime domiciliar.
Mudanças e limites da lei
A Lei de Liberdade Sexual que ficou conhecida como Solo Si es Si (só o sim é sim) aplicada ao caso Daniel Alves foi bastante celebrada pela imprensa por levar em consideração o consentimento no julgamento de agressões sexuais. Também chamou atenção o protocolo No Callem, criado na Catalunha, em 2018, para combater as agressões sexuais e violência machista em espaços de lazer, como bares e boates.
O diferencial desses dispositivos é priorizar o atendimento à vítima. O protocolo inclui treinamento de pessoas que trabalham nesses locais para agir, para orientar sobre seus direitos, respeitar suas decisões sobre prestar ou não queixa policial e evitar que ela seja exposta durante o processo.
Já a lei prevê educação sexual obrigatória em todas as etapas do ensino e carreiras universitárias ligadas ao ensino, saúde e ao judiciário. Também está prevista a criação de centros de atendimento 24h em todo país para que vítimas, familiares e pessoas próximas possam receber assistência psicológica, jurídica e social.
A repercussão do caso Daniel Alves inspirou a criação de uma lei determinando medidas de prevenção de violência contra a mulher para bares e casas de show, o protocolo Não é Não (PL 3/2023). Trata-se de um avanço considerando a realidade de revitimização das pessoas que denunciam esse tipo de crime. Contudo, sua aplicação será restrita a bares e casas de show, não considerando outros locais públicos, como templos religiosos e de estabelecimentos de saúde, onde todos os anos ocorrem centenas de denúncias de abusos sexuais.
Também não há indicativo de prevenção via educação sexual, o que é menos um defeito do texto aprovado que uma limitação imposta pelo fundamentalismo cristão cada vez mais influente na política brasileira. Mas, em tempos em que serviços de aborto legal e colocação de métodos contraceptivos são arbitrariamente suspensos, a intenção ao menos formal de proteger a vítima já é um passo importante. Que seja o primeiro de muitos.
*Fhoutine Marie é jornalista e cientista política, participa como co-autora dos livros Tem Saída – Ensaios Críticos Sobre o Brasil (Zouk/2017) e Neoliberalismo, feminismo e contracondutas (Entremeios/2019). Seu trabalho tem como foco temas como gênero, raça, terrorismo, neoconservadorismo e resistência política numa perspectiva não-institucional.
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Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional.
Fhoutine Marie é colunista da Interesse Nacional, jornalista e cientista política. Participa como co-autora dos livros "Tem Saída – Ensaios Críticos Sobre o Brasil" (Zouk/2017), "Neoliberalismo, feminismo e contracondutas" (Entremeios/2019) e "O Brasil voltou?" (Pioneira/2024). Seu trabalho tem como foco temas como gênero, raça, terrorismo, neoconservadorismo e resistência política numa perspectiva não-institucional.
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