A crise política entre Equador e México e o paradoxo da tolerância
Invasão de embaixada tem origem e natureza políticas com base na crescente ingerência mexicana em assuntos internos equatorianos. Para embaixador, crise faz a integração regional exibir retrocesso que reflete um continente polarizado em torno de divergentes colorações ideológicas
A polícia equatoriana invadiu a Embaixada do México em Quito em 6 de abril, retirou à força o asilado ex-vice-presidente Jorge Glas Espinal e provocou forte condenação da comunidade internacional. Como explicar ruptura tão visceral com a reconhecida tradição equatoriana de respeito aos princípios e normas do direito internacional ?
Uma possível interpretação reside no paradoxo da tolerância, de Karl Popper, segundo o qual a tolerância ilimitada leva ao desaparecimento da própria tolerância. No caso específico, a complacência da sociedade equatoriana com o crescimento exponencial da insegurança, da criminalidade e da corrupção produziu um sistema político que, ao praticar tolerância ilimitada, provocou o fim da própria tolerância, sob a forma de populismo autoritário.
No plano externo, a radical ruptura com normas do direito internacional está ligada à excessiva tolerância com a ingerência mexicana na política equatoriana. A extrema liberalidade do México na concessão de asilo a criminosos tornava disfuncional a justiça equatoriana e minava a governabilidade. A invasão da embaixada – inadmissível e condenável – foi o trágico desfecho da tolerância.
O vice-presidente Glas, após ascensão política meteórica, foi condenado, em 2017, a oito anos de prisão por crimes de suborno com a Odebrecht e de peculato com fundos de emergência em Manabi. Essa circunstância levou alguns juristas a ressaltar que a invasão da embaixada configurou um episódio de dupla violação – equatoriana e mexicana – da Convenção sobre Direito de Asilo, de 1954, pela qual o asilo diplomático só pode ser concedido a perseguidos políticos. Assim, o Equador violou a convenção por ter invadido a embaixada, e o México também cometeu violação, ao conceder, em dezembro de 2023, asilo a um criminoso, com processos criminais concluídos em instituições judiciárias do país.
Em artigo de 6 de abril corrente no Diario Expreso – Ecuador tiene razón pero la pierde – Roberto Aguilar esclarece que, em 2012, os chanceleres representados junto à OEA ratificaram os princípios constantes das convenções de 1954 e 196. Acrescenta ainda que “a doutrina internacional estabelece não caber ao Estado receptor julgar as circunstâncias excepcionais que o permitam transgredir o princípio da inviolabilidade”. Assim, o principal argumento do presidente Noboa para justificar o ataque à embaixada – a efetiva violação das normas do asilo por parte do México – não procede diante dessas normas. O caso será levado à Corte Internacional de Justiça, e o Equador deverá ser derrotado.
Embora tenha assumido toda essa configuração jurídica, o episódio tem origem e natureza essencialmente políticas – a crescente ingerência política do México nos assuntos internos do Equador, por meio de recorrente concessão de asilo diplomático a indivíduos condenados pela justiça equatoriana. Dentre esses, figuram políticos envolvidos em corrupção, personalidades ligadas ao narcotráfico e a organizações criminosas.
Essa prática assume maior gravidade na recente conjuntura equatoriana, pautada pelo surto exponencial do tráfico de cocaína, com graves consequências para o embate político e o tecido social. Pouco antes do pleito presidencial, o candidato Fernando Villavicencio foi assassinado por membro de um grupo traficante. Ao assumir, o presidente eleito, Daniel Noboa, anunciou que o combate à corrupção, ao narcotráfico e ao crime organizado seria uma de suas principais bandeiras.
O Equador transformou-se, nos últimos três anos, em importante origem da droga. Segundo dados do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes (UNODC), o país é responsável por 25% do total apreendido de cocaína na Europa. Como corolário da realidade expressa nesses dados, o Equador exibe expansão vertiginosa da população carcerária, motins e massacres nos presídios, um terço da população carcerária composta por membros de organizações criminosas e uma taxa de homicídios superior à de Colômbia e México.
Esse quadro de turbulência política teve suas origens no esgotamento do ciclo virtuoso que marcou os primeiros mandatos presidenciais de Rafael Correa – elevado crescimento econômico, políticas sociais efetivas, com redução do nível de pobreza de 64% em 2000 para 27% em 2013. Apesar desses méritos, Correa ficou longos dez anos no poder (2007-2017) e a falta de alternância gerou distorções, sob a forma de crescente autoritarismo e corrupção. Isso levou o país a uma clivagem entre correistas, identificados com o ideário intervencionista, e anti-correistas, partidários de um regime liberal e de uma economia de mercado. A vitória de Daniel Noboa contra a candidata apoiada por Correa representou um alívio para os partidários de um regime mais liberal, sobretudo diante do fracassado mandato interrompido de Guillermo Lasso, forçado a antecipar eleições.
Foi nesse quadro doméstico no Equador que assumiu o poder no México o grande ícone do populismo latino-americano, Andrés Manoel López Obrador (AMLO), com uma proposta de forte aproximação com regimes de corte autoritário, como Venezuela e Cuba. Além dessas preferências eletivas, AMLO passou a ferir o princípio da não-intervenção, que sempre pautou a política externa do México.
No caso da atuação mexicana no Equador, esse rompimento assumiu a forma de recorrentes concessões de asilo a líderes políticos identificados com o ideário intervencionista de AMLO. Esse esquema permitiu que diversos equatorianos envolvidos em corrupção e no narcotráfico conseguissem escapar da justiça.
Diante do mencionado agravamento exponencial do tráfico no Equador e da consequente turbulência política e social, a diretriz mexicana – agravada por declarações extemporâneas de AMLO – teve ampla repercussão e passou a ameaçar a própria estabilidade do mandato de Noboa, comprometido com a luta contra o narcotráfico e a corrupção.
Nesse contexto, a concessão de asilo ao vice-presidente Glas Espinel, em dezembro de 2023, foi a gota d ́água de um relacionamento bilateral em avançada deterioração. Incapaz de demover o México de manter a concessão do asilo, e pressionado por apoiadores que o acusavam de fragilidade diante de AMLO, Noboa optou pelo gesto extremo e desgastante para a imagem internacional do país – a invasão da embaixada.
Esse episódio – eivado de forte impacto bilateral, a ponto de provocar o rompimento de relações diplomáticas – assume também uma dimensão política relevante para o conjunto da América Latina.
No Equador, à semelhança de diversas outras democracias na região, as instituições representativas, ao defenderem os chamados direitos civis e políticos, são as praticantes por excelência da tolerância. Entretanto, num ambiente de generalizada violência e insegurança promovida por poderosas facções criminosas, o exercício de ilimitada tolerância em relação às ações desses grupos fragiliza as instituições democráticas e, por extensão, faz desaparecer a própria tolerância. Ou seja, estamos diante do paradoxo da tolerância de Karl Popper.
O caso da ingerência mexicana nos assuntos internos do Equador, sob a forma de aplicação pouco responsável do direito do asilo, merece uma reflexão mais detida. Nos tempos da Guerra Fria, eram as superpotências hegemônicas que promoviam intervenções ou golpes de Estado em regimes políticos no interior de suas respectivas esferas de influência. No caso do Ocidente, sob a infundada alegação de defesa da democracia. No bloco soviético, sob a alegação de preservar o socialismo. A Revolução Cubana de 1959 questionou esse padrão em nosso hemisfério, assim como a Rebelião Húngara de 1956 tentou o mesmo, em relação à União Soviética.
Em contraste com esses conflitos envolvendo superpotências, as relações entre países latino-americanos, a partir do fim da Segunda Guerra Mundial, foram pautadas antes pelo avanço dos processos de integração do que pela emergência de conflitos. Atualmente, entretanto, em lugar de avanço, a integração regional exibe retrocesso que reflete um continente polarizado em torno de divergentes colorações ideológicas. Exemplo recente são as surpreendentes acusações pouco amistosas e até mesmo agressivas trocadas por presidentes latino-americanos. Nesse contexto, é imperativo inviabilizar iniciativas extremas, como a dupla violação de princípios e normas internacionais por parte de Equador e México, de forma a pavimentar uma trajetória de paz, integração e desenvolvimento.
Sergio Abreu e Lima Florêncio é colunista da Interesse Nacional, economista, diplomata e professor de história da política externa brasileira no Instituto Rio Branco. Foi embaixador do Brasil no México, no Equador e membro da delegação brasileira permanente em Genebra.
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