Comportamento das polícias espelha projetos e ideologias de governos
Em entrevista, socióloga e antropóloga Jacqueline Muniz explica por que notícias sobre violência policial nunca devem ser tratadas como casos isolados
Por Jacqueline Muniz*
Dois casos emblemáticos de abuso policial foram destaque na mídia nos últimos dias. Em São Paulo, policiais militares foram afastados depois de imobilizarem e agredirem um músico negro, jogando spray de pimenta nos seus olhos. Nos Estados Unidos, um homem negro morreu asfixiado durante uma abordagem policial. Antes de morrer o homem repetiu várias vezes a frase “não consigo respirar”, a mesma dita por George Floyd, morto em uma abordagem policial em 2020. A frase se tornou símbolo dos protestos antifascistas contra a violência policial no mundo todo. Aqui no Brasil, com exclusividade para o The Conversation, a socióloga e antropóloga Jacqueline Muniz conta no texto abaixo porque histórias como essas, noticiadas quase que diariamente nos meios de comunicação, nunca devem ser tratadas como casos isolados.
Dia sim, outro também, são noticiados casos de maus usos e abusos no uso de força por policiais que geram todo tipo de violações e explicitam um desgoverno na capacidade coercitiva da polícia que fundamenta a sua razão de ser em sociedades democráticas, livres e plurais.
Tem sido lugar comum a manipulação do poder de polícia para fins particulares. Isto demonstra que a autoridade de polícia tem se tornado uma mercadoria política que é negociada nas supostas ações de combate ao crime. Para atender a serventias partidárias, corporativistas e criminosas trata-se esta clientelização do mandato policial e suas manifestações violentas como “mais um caso isolado”. E isto tem servido para ocultar esquemas de corrupção política-policial que não só “produzem estatísticas para governantes”, com saldos operacionais forjados, como também alimentam os caixas 2 de campanha eleitoral com ativos do crime.
O desgoverno policial expresso no uso excessivo de força, nas altas taxas de letalidade e vitimização policiais tem tido um elevado rendimento eleitoral. A capacidade coercitiva de uma polícia materializa as prioridades e escolhas de um determinado governo ou governante. Ela decorre, portanto, da política de direitos humanos e segurança. Ou melhor: do projeto político de um governo que comunica através dos fins, meios e modos policiais autorizados a sua política de direitos humanos e segurança. Que pode ser progressista, liberal, ou extremamente conservadora. Afinal, em qualquer democracia, a polícia é a política em armas.
Governar é controlar a polícia
Cabe ao governo, legitimamente eleito, compor escolhas de meios de força que possam atender às suas metas de direitos humanos e segurança, permitindo a ação bem-sucedida da polícia de acordo com o que seja considerado desejável e tolerável no uso de força policial. Assim, um governo que governa as polícias e não se deixa governar por elas deve exigir, tolerar ou proibir a posse de determinadas capacidades coercitivas, definidas e regradas em termos das circunstâncias e formas do uso de força policial.
É tão somente isto que possibilita exercer governo sobre os recursos estatais coercitivos e produzir previsibilidade, estabilidade e responsabilização no uso concreto do poder de polícia no asfalto e na favela. A definição de capacidades é, pois, condição necessária para a governança da polícia e produção de uma noção correta de responsabilidade policial.
Governar a polícia corresponde a definir e autorizar a sua capacidade coercitiva nas ruas, sob a chancela ou aprovação da própria sociedade que é policiada. Por esta razão, uma doutrina de uso comedido de força, capaz de produzir superioridade de métodos à luz dos fins públicos da política, não se constitui como reserva técnica sigilosa de tal ou qual governo, tal ou qual organização policial.
Inversamente, ela é transparente, conhecida e validada pela comunidade política articulada em torno de um pacto sociopolítico – a Constituição Federal – que delega às polícias o mandato de produção de obediências consentidas às regras legais e legítimas do jogo social por meio de coerções diretas e indiretas consentidas, isto é, com emprego potencial e concreto de força.
Quando a doutrina de uso da força é rebaixada à condição de um pseudomonopólio de dirigentes, tem-se como resultado a desgovernança intencional dos meios de força e, com isso, a emancipação predatória do poder de polícia, situação na qual todos perdem e se tornam inseguros em sua ação. Não apenas os cidadãos, mas também os próprios policiais e os governantes.
“Autarquias sem tutela”
Todos se tornam reféns de retóricas defensivas e reativas que buscam os “culpados da vez”, frequentemente os policiais da ponta da linha e os cidadãos comuns, e que servem como escaramuças para seguir sustentando uma responsabilização política difusa ou mesmo garantir a sua impossibilidade diante do escrutínio público.
É assim que se pervertem as polícias em autarquias sem tutela ou em governos autônomos que chantageiam o governante, silenciam o Parlamento e acuam o Judiciário.
É assim que se milicia, um fenômeno antigo e já conhecido na história das democracias, que emerge quando se promove a ingovernabilidade policial pela emancipação predatória do poder de polícia.
É assim que se possibilita que a espada, emancipada dos controles da sociedade e de seu governo, corte a língua do verbo da política à direita e à esquerda e rasgue a letra da lei.
É assim que se permite que os vigias sentem na cadeira do governante e governem em seu lugar por meio da produção da insegurança pública como um projeto de poder de elevada rentabilidade eleitoral.
Autoridade sem encenações
Compete ao governo autorizar determinados armamentos e alguns de seus modos de uso. E isto corresponde à sua proposta, implícita ou explícita, de segurança e direitos humanos que deve estar aberta ao questionamento público. É, pois, com um projeto de força comedido ou suficiente que se comunica à sociedade as diretrizes de uma política de segurança e de policiamento responsável.
Meios de força são meios invasivos por natureza. Porém, por detrás das decisões e ações policiais nas ruas, há direitos, valores e, sobretudo, governantes que deveriam delimitar a capacidade coercitiva da polícia para poder, de fato, governá-la. E isso corresponde a ir além de pantomimas com espasmos discursivos acompanhados de semblantes fechados e falas duras que querem fazer acreditar que se mantém autoridade, algum controle, alguma governabilidade, com encenações de macheza contra o crime.
Faz-se mais que urgente a construção política, federativa, de uma doutrina do uso da força no Brasil que sirva de farol para o aprimoramento das competências e capacidades das polícias, de modo a emprestar publicidade, transparência, segurança e mérito técnico às decisões e ações policiais tomadas no calor dos acontecimentos.
Só assim sairemos do círculo vicioso de buscar culpas abstratas e os suspeitos de sempre, em favor da responsabilização de toda cadeia de comando e controle, desde ação na rua até os gabinetes, que não só blinda a polícia e os policiais da manipulação político-partidária, como também da sua apropriação privatista e corporativa.
*Jacqueline Muniz é professora do curso tecnólogo em segurança pública e social CECIERJ/UFF, Universidade Federal Fluminense (UFF)
Read the original article.
Este texto é uma republicação do site The Conversation sob uma licença Creative Commons. Leia o artigo original em https://theconversation.com/br
Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional