‘Aqueronta Movebo’ – A fúria feminista abrirá o caminho para um novo junho
Levante das mulheres contra o PL Antiaborto mostrou a capacidade de organização do movimento feminista e da política como ação direta
Há mais de um século a anarquista Emma Goldman contou essa bola: a emancipação feminina viria da ação direta e não da participação na política do Estado. Crítica do movimento sufragista, Goldman questionava a ideia de que a entrada da mulher na política institucional seria o suficiente para transformá-la além de sua superfície.
Emma foi presa diversas vezes por falar publicamente sobre métodos contraceptivos e planejamento familiar como forma de ampliar a liberdade das mulheres. Ainda nem se falava sobre interrupção da gestação, mas de decidir sobre quando ter filhos e quantos ter. Era preciso ter conhecimento e controle sobre os direitos reprodutivos para que fosse possível reivindicar autonomia política e financeira.
Quase um século depois do advento do sufrágio feminino a presença de mulheres nos parlamentos permanece minoritária e ainda assim, nem todas as que ocupam cadeiras nos governos estão interessadas em defender os interesses das mulheres. Deputadas e senadoras alinhadas aos valores patriarcais são tão nocivas quanto seus colegas do sexo masculino e elas não são poucas.
Vozes de deputadas como Sâmia Bonfim e Erika Hilton, ativas na defesa das mulheres, são muito importantes, claro. Mas seguem minoritárias. Por isso a mobilização nas ruas feita pelo movimento feminista são decisivas para barrar o ataque aos direitos reprodutivos das pessoas que gestam já que pela vi institucional não há vozes feministas numerosas o suficiente.
O movimento feminista existe
Contudo, não deu uma semana das manifestações feministas contra a PL 1904 lotarem as ruas do Brasil para saírem do esgoto da Internet os teóricos da conspiração, que desconfiando da capacidade de mobilização das mulheres (e ignorando o fato de que o movimento feminista existe) começaram a manifestar desconfiança sobre o movimento.
Para quem vê a política partidária, eleição e homens salvadores da pátria como única forma possível de fazer política, tudo aquilo de mulher junta só poderia ser prenúncio de golpe.
Algo semelhante já havia acontecido em 2016, quando o movimento EleNão, organizado e realizado essencialmente por mulheres, foi acusado de reforçar o projeto político bolsonarista. Imagina ir pra rua sem ser pra gritar “Lula Livre”, como pode?
Onze anos depois de junho de 2013, aquele movimento acusado de causar tudo o que houve de ruim que veio depois, são os “identitários” que voltam a lotar as ruas. Pessoas LGBTQIA+ na parada do orgulho, a Marcha da Maconha clamando pela legalização da planta como estratégia de fim da guerra ao povo preto e periférico, as mulheres cis recusando ser tratadas como incubadoras a serviço do Estado após serem violentadas, junto com as pessoas trans que gestam e as crianças.
Vi algumas pessoas chamarem de Outono Feminista, uma referência à primavera de alguns anos atrás. Não gosto desse nome. Estações duram pouco. A fúria feminista precisa durar mais.
Esquerda que a direita gosta é a que se alia aos fundamentalistas
Desde 2016 o campo democrático/progressista brasileiro sofreu uma sucessão de derrotas: o golpe contra Dilma Rousseff em 2016, o assassinato de Marielle Franco, a prisão arbitrária do único candidato que poderia vencer a coalização autoritária nas eleições de 2018. Isso resultou numa militância amedrontada e, por vezes, chantagista. Diziam que ir para as ruas poderia dar o motivo para um golpe ainda pior.
Era necessário concentrar forças na libertação de Lula e depois disso em sua eleição. Qualquer crítica às alianças partidárias e às cartas de amor aos fundamentalistas eram rechaçadas, consideradas “fazer o jogo da direita”. Não era hora de criticar a esquerda.
Acontece que, desde Robespierre, não era hora de criticar a esquerda. A reivindicação de mulheres para serem reconhecidas como cidadãs resultou em perseguição e morte, fechamento dos clubes femininos, como mostra Tânia Machado Morin em sua pesquisa sobre as mulheres na Revolução Francesa.
As mulheres foram divididas entre virtuosas e perigosas. As primeiras eram as que sabiam seu lugar na construção da República, sendo mães de cidadãos, confinadas ao espaço doméstico. As perigosas, que tomaram frente nos enfrentamentos ou fizeram críticas públicas, como Olympe de Gouges, tiveram como destino a prisão e a guilhotina.
De lá pra cá, esse argumento tem sido repetido incessantemente. Ainda não é a hora. Deixemos pra depois da eleição ou da revolução. Quem age diferente é “a esquerda que a direita gosta”. O que seria engraçado, se não fosse trágico, porque a direita gosta de controle dos corpos e silenciamento. Dizem que não há nada a fazer com esse Congresso. Que deveríamos ter eleito parlamentares melhores.
Mas quem elegeu a bancada fundamentalista não fui eu, não foi o movimento feminista. Não foram as pessoas LGBTQIA+, o movimento negro, os anti proibicionistas ou antipunitivistas. Foram as pessoas cortejadas pela frente super ampla para ganhar eleição presidencial. O povo “de Deus”, que ganhou cartinha na véspera do segundo turno. Não basta silenciar, tem que botar na nossa conta. Não sei vocês, mas em meu nome, não.
Mover o Aqueronte
“Flectere si nequeo superos, Acheronta Movebo”. A frase de Virgílio em Eneida citada por Sigmund Freud no prólogo de A interpretação dos sonhos (1900) também é a epígrafe escolhida por Michel Foucault para abrir o curso O nascimento da biopolítica (1979): se não posso mudar esses deuses supremos, moverei o Aqueronte.
Conforme explica Alexandre Simão de Freitas (2017), a tradição grega fala das três fúrias, Alecto, Tisífone e Megera. Anteriores aos deuses olímpicos na castração de Urano, não estavam submetidas às leis do pai, do falo ou da razão. Confinadas no Hades pela vontade dos deuses supremos, as fúrias estão separadas do mundo mortal pelo Aqueronte, rio que demarca as fronteiras entre o mundo dos rios e dos mortos.
Por isso, Virgílio atribuiu às fúrias o papel de perturbadoras da ordem social. Esse espírito da revolta funda uma atitude de recusar as promessas daqueles que detém o poder político, de se levantar e se dirigir contra esses deuses supremos. Mover o Aqueronte do ponto de vista do soberano é uma transgressão, porque as normas que foram feitas sem a participação daqueles que se revoltam sempre irão criminalizar a conduta que age fora da arena que se estipulou, ignorando que se luta em condições de igualdade e que uma minoria segue regendo o destino dos demais.
Mas, se não podemos dobrar esses deuses supremos – porque quem diz que irá nos salvar estava fazendo acordos para assegurar eleição e governabilidade rifando nossos direitos reprodutivos e hoje tá fingindo que não lembra -, o que nos resta senão mover o Aqueronte?
Chega de fetichizar a derrota
Estamos vivendo um novo junho e foi a fúria das mulheres quem abriu o caminho. Por isso é importante não ceder ao povo que acha que só se dá resposta nas urnas e não fetichizar a derrota. Desde que a PL 1904 foi para votação que as redes sociais estão cheias de referências a O Conto da Aia, como se o golpe fundamentalista cristão já estivesse sacramentado.
Mas a distopia de Margaret Atwood não tem que ser um escapismo consciente e sim um alerta de algo em curso, da necessidade de mover o Aqueronte. Se isso não ficou suficientemente claro no romance de 1985, a sequência publicada em 2019, Os Testamentos, não deixa dúvidas de que a resistência nunca acaba, mesmo nos momentos mais terríveis.
Quando Bolsonaro foi eleito, não faltou gente dizendo que tínhamos voltado para 1964, que nos encontraríamos nos porões do Dops. Agora a Internet está cheia de pessoas dizendo que já estamos vivendo em Gilead, país em que se passa O Conto da Aia, onde as mulheres não possuem direitos políticos e uma parte é obrigada a gerar filhos para a classe dominante.
Ainda que fosse verdade (não é), não tenho conhecimento de nenhuma tirania que tenha terminado porque o soberano cansou. Parafraseando Foucault mais uma vez, onde há poder há resistência. Se a distopia de uns é a utopia de outros, declarar derrota antes de lutar é facilitar a vida de quem deseja controlar o corpo das pessoas que gestam, confinar mulheres em casa e exterminar a populaçã o LGBTQIA+.
Precisamos ocupar todos os espaços. As ruas, as casas legislativas, a Internet, cobrar posicionamento público de pessoas influentes politicamente, mobilizar o apoio das fan base das divas pop. Se você ler os livros ou vir a série, vai ver que a resistência está lá o tempo todo, inventando formas de sobreviver e de mudar as coisas. Só não luta quem está morto, amigos. E eu não sei quanto a vocês, mas a fúria feminista da última semana me fez sentir mais viva que nunca.
Fhoutine Marie é colunista da Interesse Nacional, jornalista e cientista política. Participa como co-autora dos livros "Tem Saída – Ensaios Críticos Sobre o Brasil" (Zouk/2017), "Neoliberalismo, feminismo e contracondutas" (Entremeios/2019) e "O Brasil voltou?" (Pioneira/2024). Seu trabalho tem como foco temas como gênero, raça, terrorismo, neoconservadorismo e resistência política numa perspectiva não-institucional.
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