30 setembro 2024

A África pelos africanos – Uma crítica à dimensão econômica da dependência europeia

Estudo propõe um novo paradigma, com base no respeito mútuo e na cooperação econômica, no qual a África assuma a responsabilidade pelo próprio desenvolvimento. Ideias convergem com as propostas de reforma do sistema de governança defendidas por Lula na ONU

Ilustração criada por inteligência artificial representa as ideias do estudo de Carlos Lopes sobre as dimensões da dependência africana em relação à Europa (Foto: Dall-E)

A dependência histórica da África em relação à Europa é o tema do mais recente livro de Carlos Lopes, economista nascido na Guiné-Bissau, que foi secretário-executivo da Comissão Econômica das Nações Unidas para a África de 2012 a 2016, e é atual professor da Universidade de Cape Town, na África do Sul, e da Sciences Po, em Paris. 

Intitulado A armadilha da autoilusão: explorando as dimensões econômicas da dependência e da caridade nas relações África-Europa, o extenso e bem documentado estudo analisa as causas desta relação persistentemente desequilibrada e apresenta sugestões para romper o círculo vicioso da ajuda externa e do endividamento. Lopes propõe um novo paradigma, com base no respeito mútuo e na cooperação econômica, no qual a África assuma a responsabilidade pelo próprio desenvolvimento.

‘Depois das independências nacionais, a crise da dívida lançou países africanos nos braços das instituições financeiras internacionais’

Lopes situa a herança histórica da armadilha na exploração colonial dos recursos minerais e agrícolas africanos, ao longo dos séculos 19 e 20, apoiada em falácias da old-fashioned teoria das vantagens comparativas, que acabou tornando o continente dependente dos mercados e indústrias europeus. Depois das independências nacionais, e sobretudo nas décadas de 1980 e 1990, a crise da dívida lançou países africanos nos braços das instituições financeiras internacionais, que passaram a exigir a aplicação de programas de ajuste estrutural, conduzindo a restrições econômicas e ao aumento da pobreza.

Como ex-representante da União Africana (UA) em negociações comerciais com a União Europeia (UE), Carlos Lopes ajudou a levar o debate sobre a integração e a industrialização da África à Agenda 2063 da Comissão da UA. Encontrou, entretanto, ceticismo por parte dos negociadores europeus devido a sua defesa de uma abordagem unificada da integração econômica e das críticas à “fantasia” do livre comércio, que mascara o nefasto processo de fuga de capital do Sul Global para os países mais ricos.

Para o economista bissau-guineense, a ênfase na concessão de preferências comerciais no âmbito do acordo da UE com o grupo ACP (África, Caribe e Pacífico), assinado em Lomé, em 1975, e renovado em Cotonou, em 2000, constituiu uma abordagem fragmentada e excludente, tendente à “balcanização” da África. O Magrebe não fazia parte deste arranjo, que tampouco poderia coexistir com iniciativas como a Zona de Livre Comércio Continental Africana (ZCLCA), criada em 2018. 

Faltavam a compreensão profunda da heterogeneidade e complexidade de um conjunto diversificado de realidades e a consideração de tópicos como acesso à propriedade intelectual, instrumentos de política industrial e investimentos produtivos. 

Ademais, segundo Lopes, a Comissão da UE e os seus membros mais influentes muitas vezes lançavam unilateralmente instrumentos e atividades, sem consulta ou aviso prévio aos interlocutores africanos. Foi o que ocorreu com a proposta “Global Gateway”, anunciada em 2022, poucos dias antes de uma Cúpula UE-UA, como uma reação ao Belt and Road chinês no setor de infraestrutura. Diante de mudanças de prioridades ao longo do caminho, a elaboração de estratégias negociadoras por parte da África ficou prejudicada, e os resultados acabaram por frustrar as expectativas dos dois lados. 

‘Economista considera que os parceiros internacionais devem aceitar uma mudança de políticas prescritivas e paternalistas, de ambição excessiva, para objetivos realistas e compartilhados’

Em sua obra anterior, Mudança estrutural em África, o diagnóstico de Carlos Lopes sobre as barreiras à transformação econômica apontava em particular para o fracasso das prescrições padronizadas de políticas públicas para o continente africano. O economista considera que os parceiros internacionais devem aceitar uma mudança de políticas prescritivas e paternalistas, de ambição excessiva, para objetivos realistas e compartilhados.

Elemento essencial é o acesso barato aos capitais, prejudicado pelo viés negativo das empresas de classificação de risco, que ignoram o valor potencial representado pela população numerosa, os ativos ambientais e as oportunidades da transição tecnológica disponíveis na África. Lopes argumenta que, em termos de valor do PIB, países africanos são os que menos contraem empréstimos internacionais, apesar de serem os que deles mais precisam.

‘Lopes reconhece a existência de uma certa “preguiça intelectual” na África, cujas elites confiaram demais na contribuição externa e na ajuda ao desenvolvimento’

Reconhece, por outro lado, a existência de uma certa “preguiça intelectual” na África, cujas elites confiaram demais na contribuição externa e na ajuda ao desenvolvimento, em particular das organizações internacionais, e negligenciaram o esforço interno. Na voz de um analista de origem africana, a crítica não parece fora do lugar.

Lopes aponta, assim, a necessidade de os próprios dirigentes africanos investirem em uma nova pauta, que contemple os seguintes elementos: 

  1. Diversificação de suas economias, para reduzir a dependência dos produtos primários, promover agregação de valor e desenvolver a indústria do conhecimento; 
  2. prioridade à educação, saúde e capacitação, de forma a qualificar a força de trabalho, criar empregos e melhorar a produtividade; 
  3. construção de instituições estáveis, incluindo uma burocracia eficiente, um poder judiciário independente e uma sociedade civil atuante.

Do ponto de vista coletivo, a África deve desenvolver instituições financeiras regionais fortes, capazes de financiar projetos de infraestrutura e industrialização em condições favoráveis, reduzindo a dependência externa.

A Europa, por sua vez, deveria mudar o foco da prestação de ajuda para o investimento produtivo, por meio de parcerias público-privadas, projetos de infraestrutura e apoio às empresas africanas. Seria crucial garantir preço justo às exportações africanas e evitar barreiras ao comércio sob justificativas ambientais, o que ajudaria a aumentar a disponibilidade de capitais.

‘A União Europeia poderia igualmente apoiar iniciativas de integração econômica africana e trabalhar com as instituições financeiras internacionais para proporcionar alívio da dívida externa’

A União Europeia poderia igualmente apoiar iniciativas de integração econômica africana, como a ZCLCA, e trabalhar com as instituições financeiras internacionais para proporcionar alívio da dívida externa, de forma a criar espaço fiscal para a implementação de políticas públicas de redução da pobreza e das desigualdades definidas pelos próprios atores nacionais.

O interessante capítulo sobre migrações desmistifica as premissas que orientam as políticas europeias em relação à África e aponta a juventude africana como peça-chave para a sobrevivência europeia no médio prazo. 

Lopes contextualiza a necessidade de aggiornamento da cooperação europeia com a África à luz da influência da China, hoje o maior parceiro comercial bilateral, que se diferencia pela maior adaptabilidade aos contextos locais. Extremamente completo, o livro de Lopes se beneficiaria de maior aprofundamento no exame deste contraste, assim como da menção a parceiros asiáticos e árabes presentes, como Rússia, Turquia, Índia, Emirados Árabes Unidos e Arábia Saudita.

De minha parte, lembro que, na 9ª edição do Fórum Econômico China-África, realizado no início de setembro, o presidente Xi Jinping anunciou a abertura unilateral, com tarifa zero, de 100% das linhas tarifárias chinesas aos países menos desenvolvidos, entre os quais 33 africanos e todos os lusófonos do continente, a partir de 2025. 

Oriundas de experiência radicalmente diversa, como economista africano, funcionário internacional e scholar de prestígio, as ideias de Carlos Lopes convergem com as propostas de reforma do sistema de governança defendidas pelo presidente Lula nas Nações Unidas e no G-20, as quais ainda enfrentam grande resistência dos interlocutores mais poderosos. 

Cláudia de Borba Maciel é diplomata e embaixadora do Brasil na Guiné Bissau. Mestre em relações internacionais pela UNB, atuou nas embaixadas do Brasil em Buenos Aires, Caracas, Quito e Paris, no Consulado em Munique e na Missão junto à ONU, em Genebra.

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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