O torpe menosprezo nas relações Argentina-Brasil
Líderes de um país ou de uma região não costumam agir por capricho ou tédio. Suas ações e reações geralmente se baseiam na busca de um rendimento político significativo, uma vantagem ou na necessidade de reparar um dano injustificável nas relações bilaterais
Aqueles que condenaram a recente troca de bravatas e insultos protagonizados pelos presidentes do Brasil e da Argentina não prestaram a devida atenção à tétrica e infantil desculpa que desencadeou o conflito.
Esqueceram que os líderes de um país ou de uma região não costumam agir por capricho ou tédio. Suas ações e reações geralmente se baseiam na busca de um rendimento político significativo, uma vantagem “paretiana” (daquelas que os atuais discípulos de Vilfredo Pareto descobrem) ou na necessidade de reparar um dano injustificável nas relações bilaterais.
E esse é, precisamente, o ponto. O pugilato argumentativo que causou a fricção mencionada ou o atrito palaciano nunca apresentou argumentos de genuína e respeitável importância política que justificassem a penosa degradação, suponhamos que circunstancial, das relações bilaterais. Muito menos para dar vazão a um nível de hostilidade e arrogância incompatível com o diálogo entre nações democráticas.
Há mais de 2000 anos, um jovem semidespido e de singular lucidez, que eu aprecio muito, disse: “aquele de vocês que estiver livre de pecado, que atire a primeira pedra”. E em seguida, olhando para trás, acrescentou: “por favor, mãe, te peço que não intervenhas”.
Os fatos também demonstram que as brigas e mensagens temperamentais das cúpulas envolvidas neste caso silenciaram as contribuições da diplomacia. Refiro-me àqueles que sabem construir consensos e soluções tão razoáveis quanto pacíficas quando a situação esquenta.
A experiência mostra que raramente há verdadeiras razões de Estado para ignorar os remédios que vêm dos usos e costumes da política externa. São esferas onde há muito “teflon” quando se trata de administrar desculpas infantis como “eles começaram” ou “eu não me junto nem assino acordos com o bolchevique ou o fascista do outro lado” (risque o que não se aplica).
Especialmente quando, no meio da briga, alguém decidiu lançar a versão de que poderiam ser aplicadas represálias seletivas ao comércio bilateral, em resposta ao torpe desconhecimento das “linhas vermelhas” que Milei voltou a ultrapassar (ele já havia feito isso com Joe Biden nos Estados Unidos), sem considerar que os empresários não se interessam em analisar a simpatia ou filiação de seus clientes, desde que isso não afete a viabilidade de seus negócios.
É verdade que revisar os acordos sobre o setor automotivo pode sempre causar um grande dano coletivo, mas imaginamos que todos desejam criar, e não destruir, investimentos, comércio, empregos ou a compra e venda de tecnologia, atividades sem vínculo direto com a falta de sobriedade ou tato que possam envolver as decisões presidenciais.
Fazer comércio com todos também é uma arte que não pode ser confiada a quem nunca pagou uma quinzena ou a quem jamais esteve na trincheira da ultracomplexa e rentável diplomacia comercial, uma disciplina que os economistas geralmente não entendem, e que é mal e pouco ensinada em nossas universidades. Nesses cenários, prevalece apenas a tangibilidade dos resultados e o insubstituível valor da capacidade profissional.
Por outro lado, se os criadores dessas versões soubessem do que estão falando, deveriam perceber imediatamente que não é fácil evitar as proibições de restringir o comércio exterior, que estão incluídas nas regras fundacionais e complementares da OMC. Esse contexto legal foi ratificado pelos órgãos legislativos de todas as nações ou territórios aduaneiros que integram o Sistema Multilateral de Comércio, e é passível de ação em Genebra e nos tribunais de cada país (a Argentina já comprovou essa possibilidade).
Às vezes, é necessário repetir que a política externa funciona melhor quando está sustentada por um pacote de projetos e consensos que exijam atualização permanente e objetiva, além de uma blindagem certeira contra os ziguezagues da vida política.
Por isso e por outros motivos, é difícil encontrar uma justificativa lógica para renunciar, por caprichos infundados, às prioridades nacionais, regionais e multilaterais que precisam ser sistematicamente discutidas entre as autoridades e equipes que dirigem o Planalto e a Casa Rosada.
A classe política deve estar ciente de que os direitos eleitorais e propagandísticos de cada governo e de cada força política terminam nos limites do território aduaneiro soberano, nacional ou regional. Uma coisa é negociar cooperação e amizade, e outra muito diferente é supor que existe um direito celestial que protege aqueles que unilateralmente ativam a política dos fatos consumados.
Se alguém cruzar a linha errada, estará caminhando sobre os muros e pode cair em terreno proibido, razão pela qual cabe perguntar se vale a pena desafiar a lei da gravidade para não corrigir uma evidente falta de sensibilidade e maturidade política. Ou para fazer apostas que não guardam proporção com as chances de “sucesso paretiano”.
Pior seria concluir que certos erros surgem da falta de previsão e apenas refletem inexperiência política ou ausência de bagagem profissional para discernir as prioridades estratégicas do país e seus evidentes interesses de política externa.
Seria bom que o presidente Milei soubesse que o chefe do Planalto chegou ao seu terceiro mandato antecipando o desejo de consensuar projetos regionais objetivamente, colocando em segundo plano o papel das alianças políticas neste hemisfério, a fim de evitar que as oscilações pendulares do pensamento nacional bloqueiem o ritmo, a qualidade e a rentabilidade política, econômica e social de que cada região necessita.
Não seria ruim recordar essas palavras nos confessionários bilaterais, sempre que alguém tiver revisado e entendido os vídeos inequívocos.
A esta altura, também não é necessário ser muito sábio para entender que a ausência de um bom diálogo entre os líderes-chave de nosso imperfeito e obsoleto Mercosul não é uma grande notícia para lançar projetos relacionados a um gigantesco e ambicioso esquema de transporte multimodal (aéreo, terrestre e marítimo), reconfigurar a equação energética ou explorar racionalmente os minerais que têm futuro tecnológico e um mercado promissor.
Os investidores que têm interesse em entrar em projetos de grande envergadura demandam algo mais que isenções fiscais, como as previstas no RIGI. Sem segurança jurídica, calma social razoável e um diálogo confiável com os tomadores de risco, são duvidosas as chances de alcançar uma chuva de prosperidade no “segundo semestre”.
Em 14 de junho passado, Scott Lincicome, vice-presidente de Política Comercial do Instituto CATO de Washington, o centro de reflexão que lidera a causa libertária nos Estados Unidos desde que Javier Milei tinha dois anos de idade, fez uma apresentação bastante clara sobre o que está acontecendo no atual processo de reindustrialização de seu país e sobre como esse movimento afeta tanto a reindustrialização quanto o capitalismo global.
Seu relatório contém valiosas lições sobre as expectativas que prevalecem no mundo ocidental, hoje contaminado pela falta de liderança, uma justificável incerteza política e frequentes episódios de ira coletiva.
Os dois governantes-chave do Mercosul fariam bom uso de seu tempo se lessem o documento e se inteirassem das vantagens e desvantagens das regras, alianças de interesse e resultados do desenvolvimentismo nacionalista que se expande nas nações do Atlântico Norte e no Brasil (cujo aproveitamento do Sul Global não é muito conhecido).
Esses insumos deveriam ser complementados com o estado de situação que surgiu após as últimas e surpreendentes eleições realizadas em várias partes do mundo. Não estou certo de que hoje se possa dizer, com sólida base, que as ideias originais de Adam Smith e Von Mises têm grande futuro, se o diagnóstico for baseado na leitura doméstica do que entendemos por liberdade e capitalismo.
Embora a figura de Milei tenha se internacionalizado, as pessoas que avaliam seu futuro costumam perguntar se o ocupante da Casa Rosada percebe que seus contatos com a direita conservadora e populista e com a direita libertária, que se inspira nas abordagens do Instituto CATO e do CSIS, não são a mesma coisa.
As expressões da primeira fração, lideradas por Donald Trump e seus apóstolos, constituem um hino ao protecionismo regulatório, à chuva de subsídios gerais e setoriais, à reindustrialização, ao aumento selvagem da proteção tarifária seletiva e ao fechamento de mercados com o mesmo entusiasmo que demonstram os expoentes da direita conservadora europeia e os defensores do Pacto Verde.
Por outro lado, os libertários que supostamente pensam como Javier Milei, sem evocar os heróis acadêmicos de sua coleção pessoal, exortam a restaurar a liberalização do comércio e a plena modernização e reforma da OMC (sugiro a leitura de “É Hora de Acabar a Guerra Comercial” – que Trump iniciou, minha nota – produzido por Colin Grabow, no boletim do CATO de 8/7/2024).
“Ou seja”, e para evitar confusão, essas reflexões confirmam que Donald é, como todo mundo sabe, um bom contato com o populismo conservador nacionalista, mas um enorme e resistido obstáculo para os analistas que levam a sério o atual modelo libertário. Estes últimos elevam suas preces à economia social de mercado, não às forças celestiais ou aos dogmas com data de validade vencida.
Outra leitura importante surge da Fundação Hinrich, que acaba de incluir a coluna de John W.H. Denton, secretário-geral da Câmara Internacional de Comércio.
Nela, ele evoca, ao defender a imediata reforma e reativação da OMC, que a destruição ou o congelamento desse Sistema Multilateral de Comércio pode gerar uma queda de 33% nas exportações dos países em desenvolvimento e, até o final desta década, uma queda paralela de 5,1% no PIB dessas nações.
Quando se faz uma lista de todas essas questões, pergunta-se: é verdade que os investidores do Atlântico Norte e da Ásia ainda têm interesse em conviver com as deficiências políticas e cognitivas de nossa região?
Eu não tenho resposta. Estou com os que não conseguem encontrar a luz no fim do túnel.
Jorge Riaboi diplomata e jornalista. Seus textos são publicados originalmente no jornal argentino Clarín
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