A França, os interesses nacionais e o Acordo Mercosul-UE
Em sinal para interesses internos do país, governo Macron sinalizou que não vai aceitar o acordo, mas União Europeia vê negociação como necessária em um contexto de acirramento de disputas comerciais no mundo
Durante a reunião da Cúpula do G20 no Rio de Janeiro, o Acordo de Livre Comércio entre o Mercosul e a União Europeia voltou à tona causando uma revolta nas França: do presidente Emmanuel Macron à sindicatos do setor agrícola manifestações contrárias à criação do bloco, que se tornaria a maior zona de livre comércio do mundo, foram ouvidas.
Dentre os grupos mais ativos está a Frente Nacional dos Sindicatos dos Agricultores (FNSEA) e seus aliados “Jovens Agricultores” que realizaram dezenas de protestos pelo país durante dos dias 18 e 19 de novembro, com bloqueio de estradas e pontes. Os grupos alegam ter apoio de organizações do setor em outros países da Europa e ameaçam fazer mobilizações continentais se a Comissão Europeia persistir com as negociações.
O governo francês sinalizou que agirá contra a aprovação do acordo, finalizado em 2019. O presidente Emmanuel Macron declarou tanto em reunião com seu par argentino, Javier Milei, quanto em posições públicas durante a reunião do G20 que não ratificará o acordo “tal como está”, pois são necessárias adaptações, sobretudo para respeitar leis ambientais europeias e os termos do Acordo de Paris. Na França, o chanceler Jean-Noël Barrot replicou o mandatário ao afirmar que o acordo nos termos que se construíram é “inaceitável”.
O setor agrícola francês, composto em 98% de pequenas e médias empresas, é responsável por empregar cerca de 460 mil pessoas diretamente no país e por movimentar anualmente (de acordo com dados de 2023) mais de 347 bilhões de euros na economia francesa.
As exportações francesas representam 4,4% do mercado global agrícola com setores mais dominantes – como 18% do mercado global de vinhos, 11% de aves de capoeira e 8% dos laticínios – e o mercado da União Europeia corresponde à 46% das exportações francesas, bem como dez dos seus maiores mercados de destino se encontram na Europa (sendo a única exceção os Estados Unidos).
Essa disputa coloca o governo e setores importantes da economia francesa em rota de colisão com outros interesses europeus. A presidente da Comissão Europeia, Ursula van der Leyen, afirmou em reunião bilateral com o presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, que a assinatura do acordo até o final de 2024 é de interesse do bloco e está no centro da política comercial europeia.
Representantes da Alemanha e da Espanha se apresentam favoráveis também à conclusão do acordo. O ministro da Agricultura da Espanha, Luís Planas Puchades, questionou se seria “interessante para a Europa se fechar sobre si mesma neste momento” e afirmou que no atual contexto geopolítico, sobretudo após o resultado das eleições nos Estados Unidos, é interessante “expandir os acordos comerciais com outros países para garantir a influência econômica e comercial” da Europa.
As faltas remetem a uma expectativa com a falha de sistemas de governança, sobretudo comerciais, e ameaça à interdependência global causada pela competição comercial dos Estados Unidos e da China. Também é efeito da incerteza sobre as políticas comerciais e protecionistas que podem ser aplicadas na próxima gestão do governo estadunidense, nesse contexto o Acordo Mercosul-União Europeia é visto por algumas partes como a possibilidade de assegurar mercado e fontes de matéria-prima no Ocidente sem ser afetados por políticas domésticas ou disputas de outras partes.
O Acordo garantirá uma isenção de 91% dos impostos sobre bens agrícolas importados da União Europeia pelo Mercosul e 93% dos bens agrícolas importados pela UE do Mercosul – alguns itens possuem restrição por quantidade (como carnes, etanol, laticínios, açúcar e mel), bem como a proteção de denominação de origem que preserva sobretudo fatia de mercado para produtos regionais (como queijos, vinhos e certas carnes).
O governo francês continuará alinhado com os interesses de seus grupos econômicos e defenderá que o acordo é “prejudicial” à União Europeia, seja pela competição injusta ou pelos riscos avaliados ao meio ambiente e à saúde.
A declaração de Macron a Javier Milei, mais alinhado aos EUA e que já se opôs a medidas regionais na América do Sul, pode ser a busca por um aliado improvável. Na Comissão Europeia a França tem duas opções: propor uma nova versão do acordo – o que requer aprovação dos 27 países-membros – ou esperar a votação entre todos os países.
A própria Comissão pode buscar duas opções: a aprovação integral do texto demanda unanimidade entre os 27 membros –países como Hungria, Polônia, Irlanda e Holanda também mostram restrições ao Acordo – ou dividir o acordo e votar somente uma parcela que contenha somente as medidas comerciais gerais, caso no qual a aprovação pode ocorrer por maioria qualificada – segundo as regras internas sendo 55% dos países membros ou pelo menos 15 países que respondam por mais de 65% da população do bloco.
João Guilherme Benetti Ramos é doutorando no Instituto de Relações Internacionais (IRI-USP)
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