Direitos Humanos: Até Onde Vão, Com Quem e Para Quê?
Tem toda a pertinência indagar, sob o prisma prático, como essa projeção crescente dos direitos humanos converte-se em norma e ação e que tipo e condição de efetividade alcança na vida real. Tentar uma singela resposta é procurar, antes de tudo, saber como nascem os direitos humanos. A meu ver, o direito humano nasce da indignação. Se, como dizem os poetas, a poesia nasce do espanto, o direito humano nasce da indigna- ção com algo que não se harmoniza, que fere o que é ínsito à criatura humana: sua dignidade. Essa dignidade humana, para não ser uma expressão meramente ornamental, deve se corporificar e se traduzir numa sintaxe que saia do abstrato. Essa sintaxe são os direitos humanos. O primeiro homem que se indignou com Caim suprimindo brutalmente a vida de seu irmão Abel criou o primeiro ímpeto que levou a sentir que a vida do próximo deve ser respeitada, porque envolve sua dignidade humana. Logo, é um direito humano. Não dá para contar caminhos e lutas, frustra- ções e obstinações necessárias para que essa indignação tão antiga como a que consta da Bíblia se tornasse uma norma sancionadora a quem desrespeita a dignidade humana. Hoje, os nossos códigos defendem a vida como algo óbvio, o que também o faz o principal artigo da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, ao proclamar: “Todo indivíduo tem direito à vida, à liberdade e à segurança de sua pessoa”. Intuições éticas, preceitos religiosos, costumes culturais, inspirações literárias, pesquisas científiI negável é o crescimento da importância dos Direitos Humanos no pós-II Guerra Mundial. De um propósito utópico para homens de boa vontade converteu-se num item permanente da pauta dos grandes problemas mundiais. Especialmente, depois da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. Neste mais de meio século, tanto as democracias como as ditaduras sabem que é cada vez maior o número de pessoas que os defendem e os cobram. Nessa disputa, parece não ser exagero concluir: há menor número de países hoje que os negam. Quase todas as antigas colônias se libertaram das metrópoles tendo como bandeiras os direitos humanos, e os problemas ainda irresolvidos na área internacional são feridas de direitos humanos: Oriente Médio, Tibete, Guantánamo, Egito, Ucrânia, Uganda, Nigéria, e tantos outros. cas, educação, reflexões filosóficas, enfim, tudo o que constitui a argamassa que forma as sociedades e como elas influem nas pessoas que nelas vivem vai constituindo um padrão de comportamento que, por respeitar a dignidade humana, se torna norma obrigatória sob pena de sanção. É nessa insondável cesta, composta de valores civilizató- rios, que estão também os direitos humanos, com a especificidade, porém, de que, como são a tradu- ção de dignidade humana, eles se tornam metro e padrão a serem seguidos por todas as sociedades, vale dizer, por todos os países e nações. Ou seja: o Estado, o governo, o poder público, a sociedade civil e as pessoas individualmente. Sempre que a cultura humana produziu obras chaves dos direitos humanos, as históricas declara- ções de direitos, por exemplo, teve como endereço e destinação o todo universal humano. Algo, portanto, que superasse o grupo, a tribo, a nação e alcançasse, na dimensão planetária, todas as pessoas. Todas mesmo: do mais desvalido até o próprio Rei. Por isso, costumo dizer que toda obra dos direitos humanos, se fosse no plano musical, não seria um minueto, mas sempre uma obra sinfônica. E, como tal, obra de uma imensa orquestra, mas em que o mais simples som, o mais humilde dos instrumentos é absolutamente indispensável e deve integrar o todo. Felizmente, os direitos humanos têm uma história de aplicações normatizadoras de seus preceitos, hoje blindados no mais alto plano da normatização: a Constituição Federal, os tratados internacionais, os pactos e os protocolos. Também, para esse feito, não é fácil rememorar as dificuldades e quantos e quais contribuíram para superá-las, mas seria justo relembrar a República de Weimar e o seu legado de transferência para o plano da segurança e superioridade das constitui- ções dos direitos e garantias fundamentais. O Brasil, felizmente, não tem fugido à regra. Focando nos últimos 25 anos, assinale-se 1988, quando se aprovou nossa Constituição Federal como um pálio de uma respeitável normatização de direitos humanos, chegando até a ser batizada como Constituição Cidadã. Sei, por experiência própria, pois vivi a agitada e histórica época constitucional em Brasília, o quanto os redatores e sistematizadores de todos os assuntos discutidos na arena constitucional se preocuparam em harmonizar os inumeráveis temas discutidos também com os princípios de direitos humanos. Monitoramento dos direitos humanos No plano pessoal, quando na Secretaria Mu nicipal de Direitos Humanos da Cidade de – São Paulo, tentei uma experiência para objetiva- ção dos direitos humanos, numa tentativa de tirá- -los da subjetividade. Dessa forma, o SIM Direitos Humanos (Sistema Intraurbano de Monitoramento de Direitos Humanos) – relatarei telegraficamente que, na linha do ditado chinês que diz “Se queres limpar o mundo, comece varrendo a porta de sua casa” –, com o auxílio de IBGE e Seade, pesquisou como vivem, na prática, na megalópole paulista, nas suas 31 subprefeituras, 93 direitos humanos devidamente normatizados na Constituição Federal. A pergunta é como cada um deles é vivido na qualidade de política pública, na prática, em cada região paulistana, na concepção moderna dos direitos humanos, como mulheres, crianças, negros, idosos e violência, em estudo realizado até 2011. (www.simdh.com.br). Isso porque toda a razão de existir dos direitos humanos é que eles sejam cumpridos em benefí- cio da cidadania do homem, ou melhor, de cada um de nós. Vale recordar a clássica advertência do não menos clássico Norberto Bobbio: “Não é tão importante saber o que são os direitos humanos, mas como eles são garantidos na prática”. Nos dias de hoje, esse é o ponto onde se situa todo o “core” dos direitos humanos. Como colocá-los de pé na linha do respeito e da prática, de vez que já estão razoavelmente difundidos, já estão nas leis, na Constituição Federal, em inú- meros tratados internacionais, e a ONU mantém um conselho específico (Conselho de Direitos Humanos), com todo o aparato físico para funcionar. Já há, pois, uma arquitetura legal e insti- tucional razoável que, infelizmente, tem resultados muito aquém do que poderia produzir. Basta abrir, ao acaso, um jornal diário: um vaso sanitá- rio que, atirado, mata um inocente torcedor de futebol; a comunicação sem compromisso de um blog que atiça moradores populares a linchar uma senhora acusada de magia negra; o bailarino, festejado em TV popular, que aparece assassinado. Sem contar o fotógrafo que, em plena ação profissional, é alcançado mortalmente por um foguete atirado pelos manifestantes que tranquilamente fotografava. Todos os tópicos recorrentes de uma infausta rede que soma, no Brasil, 30 mil vítimas por ano. No mínimo. É possível maior avanço Omesmo jornal das más notícias poderia afirmar, com a mesma exatidão, que, nesses 25 anos de volta à democracia, o Brasil conseguiu avanços significativos. Eleições e imprensa livres; fim da inflação aloprada; maior consci- ência das populações que reivindicam melhor direito à segurança, saúde e educação; maior taxa de independência do judiciário, para quem já não há figuras intocáveis; maior pressão da opinião pública; aumento da taxa de repugnância à corrupção; maior consciência de que é preciso fiscalizar o poder público; ascensão para um patamar mais respeitado dos direitos das mulheres, crianças, negros e homossexuais; maior taxa de respeito ao meio ambiente; criação da Secretaria de Direitos Humanos, que equivale a um ministério, e a aprovação de três planos nacionais de Direitos Humanos; direitos protetivos para o consumidor, o C
ódigo de Defesa do Consumidor; fiscalização severa sobre o trabalho forçado, sobretudo o de crianças; e criação da Bolsa Escola que se transformou em Bolsa Família. E um debate que mal se esboça sobre, afinal, para que deve servir o desenvolvimento que, embora sustentável, não diminui as taxas de desigualdade e apropriação de renda? Tudo isso é um ativo que não pode ser omitido num balanço que se queira fazer entre o jornal das tristes notícias do dia e o caminho percorrido por nossa democracia em construção. Houve avanços, mas é muito grande, ainda, a distância entre o ponto em que estamos e no que poderíamos estar. O que fazer? A primeira tarefa é nos convencermos de que seria possível muito maior avanço. Já não vigoram complexos de inferioridade que chumbavam o Brasil a profecias estrangeiras tipo “a civiliza- ção é uma conquista de países frios” ou “há bió- tipos mais aptos para o progresso”. Estamos, hoje, devidamente vacinados contra ideias de superioridade ou inferioridade livresca. Somos um país imenso, com renda per capita razoável, grande potencial para crescer, sem ódios de nenhum de nossos vizinhos, falamos a mesma língua e convergimos na crença de certos valores comuns, sendo um deles nossa mestiçagem, que supõe acolhimento, abertura de oportunidades e propensão para a convivência. A segunda tarefa é entendermos que, nos dias de hoje, o que se consolidou como um direito humano não é algo para reverência honorífica. Pelo contrário, é uma exigência prática, pois, se confundindo com a dignidade humana, tem de ter vida e pulsação entre as coisas que devem ser comezinhas no cotidiano. Na concepção moderna, os direitos humanos devem estar presentes em todas as dimensões da vida: na casa, na famí- lia, na escola, na fábrica, no trabalho, na empresa, nas ruas, no trânsito, no clube, no banco, nas diversões e na viagem, pois assumiram o social, o econômico, o cultural e o existencial. É apenas uma reminiscência histórica a enumeração de Thomas Jefferson na Declaração de Independência dos Estados Unidos, restrita aos direitos à vida, à liberdade e à busca da felicidade. Hoje, como os Direitos Humanos se expandem em dezenas deles, todos devendo ter a mesma obrigatoriedade de acatamento, podemos até falar em segurança humana. Fala-se em obrigatoriedade dos direitos humanos, porque a natureza de sua outorga está cravada na Constituição Federal e na Declaração Universal dos Direitos Humanos, espécie de constituição planetária. Essa universalização dos direitos humanos é uma das conquistas do mundo moderno, pois foi reconhecido que a dignidade humana deve ser respeitada em vários momentos e atividades da vida humana. Já não posso ser relegado e descartado por ser velho, nem ser omitido por ser apenas uma criança. A vida toda da criatura humana – pelo menos nos momentos decisivos – deve estar coberta pelos direitos humanos. E a beleza dessa universalização é que ela não cobra outra exigência a não ser que a pessoa tenha vida e se enquadre numa situação a ser protegida pelos direitos humanos, sem indagar sua riqueza, sexo, poder, cultura, religião, cor da pele, nacionalidade ou profissão. Objetivos do milênio: prática modesta Éclaro que a responsabilidade dessa universa lização recai mais sobre o Estado, que, às ve- – zes, deve se omitir, cruzando os braços – na garantia da liberdade de expressão, por exemplo –, mas, às vezes, deve diligenciar e trabalhar para criar as condições objetivas de vivência efetiva dos direitos humanos. Esse é o caso da saúde bá- sica ou da superação da pobreza, por exemplo. Está dito, de forma contundente e expressa, na Declaração Universal dos Direitos Humanos, em pelo menos dois artigos, que as necessidades básicas da criatura humana não podem faltar, nos aspectos social, econômico e cultural. Confira-se o Artigo 28: “Toda pessoa tem direito a uma ordem social e internacional em que direitos e liberdades estabelecidos na presente declaração possam ser plenamente realizados”. O artigo 22 reforça essa ideia: “Toda pessoa, como membro da sociedade, tem direito à seguran- ça social e à realização, pelo esforço nacional, pela cooperação internacional e de acordo com a organização e recursos de cada estado, dos direitos econômicos, sociais e culturais, indispensá- veis à sua dignidade e ao livre desenvolvimento de sua personalidade”. À luz desses postulados transcritos, conclui- -se que os direitos humanos não operam no vazio, mas, também, dependem da organização da estrutura socioeconômica e cultural de estados e governos. Por isso, não é exagero dizer que, hoje em dia, governar é atender aos direitos humanos. Isso em razão de os direitos humanos se entrecruzarem entre todos os assuntos da gestão pública. Um país que assegure a vida e a segurança para todos os seus cidadãos não pode permitir que haja fome ou incultura. Ou outro, que alimente seus nacionais até a obesidade, não pode proibir que elejam livremente, em eleições independentes, seus dirigentes. A necessidade desse equilíbrio entre as várias dimensões dos direitos humanos é o que desafia o governante a ser um exímio distribuidor de prioridades e ter consciência de que um bom governo só existe quando os Direitos Humanos civis, econômicos, sociais e culturais formam um todo equivalente tanto no seu aspecto teórico como no seu teor prático. Tendo em vista essa multiplicidade é que a ONU conseguiu que mais do que 190 países sentassem à mesma mesa, na passagem do milênio, e concordassem no esforço de alavancar índices sociais no mega projeto conhecido como “Objetivos do Milênio”. Houve consenso também sobre os oito pontos prioritários: “acabar com a fome e a miséria; educação básica de qualidade para todos; igualdade entre os sexos e valoriza- ção da mulher; reduzir a mortalidade infantil; melhorar a saúde materna; combater a AIDS, a malária e outras doenças; garantir a sustentabilidade ambiental; e estabelecer uma parceria mundial para o desenvolvimento”. Isso foi um indiscutível feito diplomático, mas a prática tem sido modesta, ainda que tenhamos que reconhecer que o projeto alargou o conceito de direitos humanos na linha do que estabelecem os dois artigos transcritos, 22 e 28, da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Como bem disse um dos que trabalharam nesse projeto, Jeffrey Sachs: “O investimento social é uma ferramenta para alcan- çarmos o desenvolvimento sustentável”. Esse entrelaçamento e essa complementação dos direitos humanos obrigam a que não se vejam os problemas de forma isolada. Assim, qualquer combate à violência pode começar pela polícia, mas, não demora, outros setores, especialmente os educacionais e sociais, deverão vir em complementação. É claro, voltando-se à Bíblia, que Caim não matou Abel porque seria um excluído ou vítima de injustas estruturas sociais. Eliminou o irmão por razões que, ainda que misteriosas, não escondem o fato de que, no espectro dos sentimentos da condição humana, alinha-se o ímpeto violento. Exatamente por isso, pela violência ter vários gatilhos – e não apenas um –, não se pode excluir as condições de educação, estrutura social, horizontes de esperança e de realização que povoam as pessoas. A estrutura social, pois, e a educa- ção pessoal, influem, sim, no surgimento da violência, mas não numa relação de vasos comunicantes: havendo uma, haverá outra também. A natureza humana é muito mais complexa e imprevisível que qualquer teoria reducionista, e são milhões os exemplos de generosidade, solidariedade e correção entre os desestruturados socialmente. Direitos humanos e lacunas na democracia Oproblema da violência existe e deve ser atacado, especialmente numa época como a nossa em que tal ataque nunca foi tão urgente. Cabe fixar, no entanto, que tal ataque é justificável apenas quando não custe a diminuição ou a supressão da democracia, regime sociopolítico que é o único que promove e convive com os direitos humanos. Ho
je, no Brasil, é pertinente indagar, sem exageros de ufanismo ou saudosismo, se a violência existente não é um subproduto da democracia que estamos construindo. Não resta dúvida de que a violência, hoje, proporcionalmente à população existente, deva ser igual à do tempo do regime militar, sem o acréscimo ignóbil da violência política então existente e da tortura, sua inevitável consequência. Portanto, poderíamos e deveríamos estar melhor, pois, há mais de 20 anos, abriu-se o espaço democrático. É nele, e por ele, que devemos achar os caminhos. Nenhuma ideia regressista pode corrigir aquilo que, por defeito ou negligência, decorra da democracia em construção. Repita-se: é nela e por ela que devemos procurar a solução. Num problema prático atualmente muito discutido, a redução da maioridade penal, o que devemos indagar é se todas as condições de forma- ção e educação foram providas, desde o exame pré-natal da mãe até os 18 anos do jovem, antes de pensar em qualquer decréscimo etário, automático e generalizado. Nessa questão, as causas exógenas influem e, às vezes, de exógenas passam a ser endógenas. O que defendo não é que não se faça nada, pois a situação atual não é confortadora. Mas, que se afaste o radicalismo de esperar solução com a indiscriminada mudança da certidão de idade. Tem mais sentido, em casos gravíssimos, o judiciário poder alterar o prazo mínimo de responsabilidade penal de 18 anos para 16 anos ou o atual prazo máximo de três anos de internamento. Sempre em estabelecimentos especiais, separados dos que estão sob o regime do Código Penal. E, assim, em todos os outros problemas nos quais nossa democracia não embalou e esteja contribuindo para a manutenção ou o aumento da violência, é preciso procurar as causas reais e profundas geradoras do problema. Se os direitos humanos não fossem tributá- rios de todos os outros setores sociais, poderíamos restringir o exame ao campo específico dos direitos humanos, mas, hoje, temos de alargar o olhar e considerar a democracia brasileira como um todo, pois ela ainda é uma trajetória inconcluída, cheia, portanto, de lacunas e deficiências. Felizmente, de junho do ano passado para cá, a trajetória a ser feita não depende só dos setores públicos e das instituições, pois a própria sociedade saiu à rua com o desejo de se integrar nessa mega tarefa. Viu-se, naquela ocasião, o quanto a insatisfação é múltipla, na medida em que cada um externou o seu lado de inconformidade. É claro que essa atomização crítica em mil bandeiras dificulta a leitura do que é prioritário, mas não deixa dúvidas de quanto é profunda, extensa e legítima a insatisfação, deixando de lado, obviamente, o vandalismo que cavalga mais os campos da paranoia. Aliás, nos movimentos históricos, não é a rua que avia a receita. Mas, é a rua que expressa que a moléstia existe e deve ser curada. Nada mais propício a esse momento de inquietude e de busca de caminhos do que o fato de estarmos no limiar de uma eleição presidencial. Nas democracias, é o momento, por excelência, para expressar reivindicações e cotejá-las entre as vá- rias visões dos que pretendam dirigir o país. No mundo do trabalho, mais desigualdades Parece-me que, por múltiplas e, talvez, confu sas que sejam as reivindicações, há um triân- – gulo que totaliza e corporifica as prioridades e apontam para três polos: I – como melhorar a igualdade da distribuição de renda; II – como tornar o complexo policial-judiciário mais eficiente na diminuição da impunidade; III – como transferir aos jovens, via educação pública, particular e familiar, os valores de respeito que signifiquem uns agirem em relação aos outros com espírito de fraternidade e solidariedade. I) A questão das desigualdades de renda e sua concentração deixou de ser um tema exclusivamente econômico e financeiro e já não se polemiza tanto sobre a “mais-valia”. Esse decréscimo de interesse por uma das notas centrais das teorias socialistas não significa que todas as pessoas obtiveram a retribuição justa do seu trabalho ou atividade. Pelo contrário: o problema da desigualdade, como retribuição do esforço das pessoas, persiste e nada mais contrário aos direitos humanos do que uma sociedade dividida entre párias e patrícios. O dinheiro ou a remunera- ção ainda possibilita, conforme seja, mais ou menos, situações diferentes, do ponto de vista de saúde, educação, formação cultural, de tal forma que estamos distantes de ter atingido, na prática, o enunciado de que “todos nascem livres e iguais em direitos”. Repartir melhor significa aumentar as oportunidades, o que rebate na melhoria de condições iniciais de vida para exercer o projeto de vida de cada um. Não se trata tanto de repartir o gasto, mas de entender que a melhoria do equilíbrio na renda entre todos significa mudar a situação de cada um para melhor. Daí a importância do tema e o quanto é saudável e útil seu retorno ao debate, sobretudo quando muitas teorias afiançam que, nas atuais sociedades fortes – como a dos Estados Unidos – as desigualdades se agudizaram, com os ricos, cada vez mais ricos, se regalando de forma exponencial no volume de riqueza a que têm acesso. É o que diz, num livro que se tornou um rumoroso best seller mundial, “O Capital no Século XXI”, o jovem economista francês Thomas Piketty, que mostra algo pouco percebido atualmente: a desigualdade a favor dos ricos beneficia os grandes executivos, muito mais do que os rentistas. Segundo essa teoria, nos anos 1950, na média, os grandes executivos ganhavam 20 vezes mais do que seus subordinados. Hoje, recebem mais de 200 vezes. E a explicação não reside no critério de mérito para os altíssimos salá- rios. Diz Piketty, em recente entrevista: “Os beneficiados por altos salários se justificam dizendo que puderam chegar a esse patrimônio sem serem herdeiros. O problema é para os que não são nem uma coisa nem outra; nem herdeiros ou detentores de altos salários”. Quem diria que seria no mundo do trabalho – menina dos olhos das aspirações socialistas – que se iriam criar mais desigualdades… Assim, qualquer proposta a favor dos direitos humanos passa, hoje, também por implicações no mundo da concentração de renda, o que significa dizer que as medidas tributárias e fiscais passaram a fazer parte também das preocupações e das sugestões dos direitos humanos. E lembre-se de que o Conselho de Direitos Humanos da ONU, nos últimos três anos, já pôs em vigor um repertório de normas e princípios que devem balizar a atividade prática das empresas: Princípios Orientadores Sobre Empresas e Direitos Humanos. É preciso considerar, de início, que o imposto de renda funciona, teoricamente, como um corretivo. Hoje, por exemplo, no Brasil, se o contribuinte assalariado obedecer todas as normas sem nenhuma sonegação, deixa anualmente com o Estado cerca de um terço de sua renda. Quer dizer, 120 dias de sua carga de trabalho se transferem à coletividade. Convenhamos que se todos, e não só os assalariados, contribuíssem com um terço de seu trabalho, já estaríamos num nível de repartição de rendas significativo. Não é, infelizmente, o que acontece aqui e no mundo, especialmente à luz do atual estudo do economista Piketty. Nessa altura da história do mundo, não é possível que os direitos humanos deixem de se inquietar com a intensificação das desigualdades, especialmente porque os benefícios sociais que consagra são onerosos e custosos, e devem estar à disposição de todos, sem exceções. II) Hoje, a comunidade brasileira que faz a roda da justiça se movimentar, se compõe de mais de 400 mil pessoas, sendo cerca de 14.698 juízes, 2.379 desembargadores, 9.963 promotores e algo como 390 mil serventuários. Se acrescentarmos a polícia judiciária – que investiga, através do inquérito policial, para a justiça julgar – temos uma força de trabalho de pouco mais de 1 milhão de pessoas. Se considerarmos que, dos 50 mil que morrem assassinados anualment
e, apenas 10% tem autoria devidamente identificada e processada, conclui-se que é muito baixa a eficácia do complexo polícial-judiciário como instrumento de cumprimento da lei da vida. Ninguém no Brasil é capaz de dizer quantas leis estão em vigor, o que, face ao desconhecimento, faz supor um número inimaginável. No campo da percepção do trabalho e da utilidade desse complexo policial-judiciário, também é grande o número de brasileiros que julgam insatisfatório seu desempenho, considerando-o verdadeiro poder letárgico. A atuação desse complexo policial-judiciário faz sofrer a população como um todo e sofrem, também, os direitos humanos, porque a impunidade significa que, embora reconhecidos pela Constituição de 1988, podem ser desrespeitados sem nenhuma consequência. É claro que essas considerações não deslustram o esforço de centenas de patriotas que, nas respectivas carreiras, vivem obcecados pelo desejo de servir. Como, também, não deixamos de reconhecer os resultados (práticos) que decorreram da criação do Conselho Nacional de Justiça. Mas, a triste realidade é que estamos diante de um instrumento institucional que, infelizmente, funciona menos do que o desejado para as necessidades do presente e as exigências do futuro. Estatísticas absurdas de impunidade Olhando fundo e pensando em algo estrutu rante que reoriente as prioridades do com- – plexo policial-judiciário para um salto de qualidade, não se pode deixar de pensar em melhorar o entrosamento entre polícias Civil, Militar e Federal, o Ministério Público e o Judiciário. Eles devem conversar entre si, inclusive eletronicamente. Mas, além disso, torna-se necessário criar um centro de coordenação que junte as pontas dos vários protagonistas da segurança. Ninguém pode viver satisfeito com estatísticas tão altamente absurdas de impunidade. Punir um crime somente depois de decorrido o prazo de 29 anos, como fez recentemente o Supremo Tribunal Federal, num caso de sequestro no Pará, chega a ser um vexame. Onde está o senso civilizatório, base de todos os direitos humanos? O centro de coordenação sugerido se revestiria de características de um polo de ativação contra a impunidade, de tal forma que não só otimizasse o entendimento das várias polícias com o Ministério Público e o Judiciário, mas controlasse o caminho, o tempo gasto e, especialmente, a conclusão célere de um caso de assassinato. A urgência da criação desse polo de ativação contra a impunidade é tanto maior quando se considera que, em matéria fiscal e tributária, o Brasil já tem mecanismos para acompanhar, nacional- mente, o cumprimento de certas obrigações pelos contribuintes. Também no campo da saúde há órgãos que controlam a evolução de certas moléstias, como malária e AIDS, por exemplo. No campo do acompanhamento da ofensa aos direitos humanos, mesmo quando se trate de sua máxima gravidade, o assassinato, não há qualquer mecanismo que siga as providências que tenham sido, ou não, tomadas no caso concreto. Face às nossas estatísticas, que atingem, hoje, o nível extremo de guerra civil, o respeito às regras federativas não impediria a criação de um órgão nacional de fiscalização e acompanhamento, que colimaria diminuir a impunidade. III) Finalmente, a questão da transmissão de valores dos direitos humanos, especialmente na juventude, é ainda mais complexa e difícil que as anteriores, pois não se descobriu a vacina que inocule virtudes no gênero humano. É um longo e penoso processo que também, como no caso da violência, dependem de se articular vários gatilhos. Direitos humanos não têm viés ideológico OPapa Francisco, com sua maneira doce de dizer coisas sérias, preferindo sempre a persuasão à doutrinação, afirmou que “não se pode deixar que a esperança morra nos corações dos jovens e que seus horizontes esbarrem nos limites mortais do imediatismo injusto e consumista”. Na linha da preocupação do Papa, é preciso passar aos jovens que os direitos humanos apostam, antes de tudo, na vida. Ela é sua razão de ser. E no seu respeito e cumprimento não há nenhuma restrição aos horizontes largos e mesmo utópicos com que a juventude deve conviver. Se o jovem aspira ao mundo, hoje à mercê de um simples toque de seus dedos na mega dimensão da internet, são os direitos humanos que tornam possível compatibilizar essa ambição como um direito a ser respeitado por todos. A visão unilateral, personalista ou egoísta mesmo, sem abertura para os direitos humanos, tornaria impraticá- veis os sonhos dos jovens, pois não se estabeleceria a reciprocidade que faz um respeitar o outro. No caos, perdem todos. Só os direitos humanos constituem a vida que possibilita a vida. Além disso, os direitos humanos, como procedem da natureza humana, não se contaminam do viés ideoló- gico que, por razões doutrinárias ou políticas, leva à aceitação da vontade absoluta de um partido ou de um chefe de partido. Isso porque o que for permitido, ou não, quando predominam os direitos humanos, será o que estabeleça o conjunto de vontades, por canais conhecidos e consentidos. É preciso, pois, resgatar a juventude, utilizando ideias amplas, que estimulem tendências comunitárias, especialmente no mundo tecnológico-virtual em que estamos, no qual tudo acontece cedo, sem o requisito da maturação. O tempo deixou de ser medida de duração, requisito necessário para que as coisas tomem forma e se desenvolvam. O jovem atual não está muito interessado em apreender com vagar as coisas. É mais instantâneo e visual. Por isso, repita-se, são necessárias ideias agregadoras, que impliquem convergências comunitárias e associativas. Já funcionou no Brasil (1998-2002) um servi- ço civil que, a partir da Secretaria de Direitos Humanos, envolveu milhares de jovens de 12 estados que, dispensados do serviço militar, de livre vontade se inscreveram numa experiência que duraria 12 meses para cada um dos voluntários inscritos. O serviço civil oferecia, além de alfabetização, uma série de serviços devidamente monitorados, como manejo de computador, ajuda no alistamento eleitoral, distribuição de medicamentos, ajuda no programa de deficientes, formação musical básica, inclusive na constituição de corais. Toda essa atividade era realizada sem vinculação partidária. Havia, também, uma pequena ajuda: vale-transporte e vale-refeição. Seria o caso de se pensar, hoje, em algo semelhante, que devolva ou desperte o espírito comunitário. Não é o caso de relatar tudo o que o serviço civil viveu na época, mas, nos anos em que fiquei como coordenador geral, tive a convicção de que o meu concorrente, quanto ao funcionamento do serviço e ao acolhimento dos jo- vens, era o tráfico de drogas. Isso atesta a validade da experiência. A tarefa básica é não permitir que o jovem – menor ou adolescente – desgarre-se, sentindo-se um estranho na comunidade. É a música; é o esporte; é a associação; ou o serviço civil, qualquer que seja o caso para despertar um atrativo, é preciso considerar como uma prioridade nacional. Mas, tudo partindo de um eixo fundamental, vá- lido para todos – para todos, mesmo – que seria, no curso fundamental, conferir noções de direitos humanos. Estimular o cumprimento de valores Há toda uma vasta bibliografia tratando da teoria e da prática do ensino dos direitos humanos, mas duvido que tanto nos ENEMs como em qualquer outro tipo de prova seletiva no Brasil, esteja contemplada a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Vale o lugar comum: se se espera colheita, é porque se semeou antes. O que não é possível é, diante dos problemas, mergulharmos imediatamente na terapêutica legislativa. Estimular a crença e o cumprimento de valores é um longo processo que supõe muita persistência. Até porque os que mais precisam desses valores são os que mais resistem, pois se sentem desacolhidos seja pela família, pela escola ou pela sociedade. É preciso agir no plano individual e no plano massivo. Betinho, que foi um ícone dos direitos humanos, reali
zou com bons resultados o “Natal Sem Fome”. Fizemos em Brasília, em 2001, o “Natal Sem Mortes”, com boa e surpreendente acolhida. Essas campanhas massivas complementariam a difusão do conhecimento individual da Declara- ção Universal dos Direitos Humanos. Passamos pela realização da Copa do Mundo de Futebol. Pergunta-se: surgiu alguma palavra ou mensagem de congraçamento mostrando como a bola e a arte de seu manejo podem aproximar países e pessoas? É nesse mar de indiferença que devemos lutar e agir, o que significa, para início de conversa, que é dentro de nós que deve estar o entusiasmo e a crença de que é possível influir para melhorar as pessoas e os seus valores. O Brasil exige e espera uma mudança imediata. Se tivermos, em nós mesmos, esse entusiasmo e essa crença, quando começaremos?
José gregori foi chefe de gabinete do Ministério da Economia, Fazenda e Planejamento em 1992 (governo FHC). Foi ministro de Estado da Justiça e embaixador do Brasil em Portugal, secretário Nacional dos Direitos Humanos, ouvidor da República, coordenador e coautor da Lei n. 9140/95 (desaparecidos políticos). Foi também coordenador geral do Programa de Segurança Pública em 2000 e coordenador geral do Programa Nacional de Direitos Humanos, lançado oficialmente pelo Presidente da República em 13 de maio de 1996. Foi deputado estadual (1983-1986). Gregori sempre esteve próximo a setores da esquerda, como a juventude socialista e a católica, mas nunca se filiou a nenhum partido, transitando entre as mais variadas atuações esquerdistas. Foi secretário municipal de Direitos Humanos da Prefeitura de São Paulo na gestão dos prefeitos José Serra e Gilberto Kassab. Atualmente, é presidente da Comissão de Direitos Humanos da Universidade de São Paulo.
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