A diplomacia da reconstrução e a reconstrução da diplomacia no terceiro mandato do presidente Lula
Em artigo exclusivo, chanceler explica que a ideia-força que orienta o governo desde o primeiro momento é a restauração do lugar do Brasil no cenário internacional após um interregno de isolamento internacional autoimposto e abandono de princípios históricos de atuação da diplomacia brasileira
Por Mauro Vieira é ministro de Estado das Relações Exteriores do Brasil. Graduou-se em Direito pela Universidade Federal Fluminense, Diplomacia pelo Instituto Rio Branco e é doutor honoris causa em Letras, pela Universidade de Georgetown, em Washington.
A definição do interesse nacional é sempre uma tarefa desafiadora e que não se presta a simplificações, ainda mais se tratando de um país das dimensões e da complexidade do Brasil. Não restavam quaisquer dúvidas, entretanto, quanto ao imperativo e ao sentido de urgência que se impuseram, logo em 1º de janeiro, de reconstruir a credibilidade internacional de um país que até pouco antes gozava de credenciais diplomáticas amplamente reconhecidas.
Tenciono, neste artigo, apresentar breve panorama – e que não se pretende exaustivo – da política externa brasileira no terceiro mandato do presidente Lula, em seus objetivos, prioridades e desafios. A ideia força que nos orienta, desde o primeiro momento, é a restauração do lugar do Brasil no cenário internacional após um interregno de isolamento internacional autoimposto e abandono de princípios históricos de atuação da diplomacia brasileira, levados a cabo pelo governo anterior. Há, no entanto, obviamente, outros objetivos e condicionantes que assumimos frente a uma ordem internacional em transição que se revela não só mais complexa como mais turbulenta.
A eleição do presidente Lula para um inédito terceiro mandato foi, antes de mais nada, a expressão nas urnas do compromisso do povo brasileiro com a manutenção de nossas instituições democráticas e com a construção de uma sociedade mais próspera, justa e menos desigual. Também representou, a meu juízo, a mais genuína vontade do povo brasileiro de voltar a ter orgulho do Brasil e do papel que o país desempenha historicamente nas relações internacionais.
Nunca é demais recordar que a diplomacia brasileira tem um longo e consistente histórico de contribuição para a paz, a sedimentação do Direito Internacional, a defesa dos direitos humanos, a proteção do meio ambiente, a promoção do desenvolvimento sustentável e o abreviamento das desigualdades econômicas sociais, tanto dentro dos países como entre eles. Por isso, o mundo também sentiu falta deste Brasil ativo, engajado, propositivo e sério no tratamento das questões multilaterais afeitas à governança global enquanto esteve ausente, indiferente às questões que afetam a humanidade e, ocasionalmente, alinhado às forças do atraso.
Como o presidente Lula tem sempre dito, ao mesmo tempo como constatação e como profissão de fé: o Brasil está de volta ao mundo; e o mundo está de volta ao Brasil. Ainda antes da posse presidencial, já havia me instruído a trabalhar para reerguer as pontes com nossos parceiros tradicionais que haviam sido torpedeadas de forma totalmente desnecessária – e mesmo incompreensível – e reposicionar o Brasil nas principais questões da agenda internacional.
Tendo essas orientações como premissa e ponto partida, temos trabalhado com afinco para recompor esses relacionamentos, no plano bilateral, na Europa, na África, na Ásia, no Oriente Médio, na América do Norte, além, é claro, na nossa região – a América Latina e Caribe e, muito especialmente, a América do Sul –, sem jamais perder de vista que nossas relações exteriores estão fundadas em uma matriz universalista. Se, de um lado, essa ação externa de alcance global não admite preconceitos de qualquer espécie, de outro, refuta alinhamentos automáticos com qualquer capital estrangeira, o que é, antes de mais nada, expressão de nossa autonomia decisória e do próprio interesse nacional.
Como expressão concreta da aplicação do princípio do universalismo, abrimos novas embaixadas em Kigali (Ruanda) – ou reabrimos, porque haviam sido fechadas sem motivo prático pelos que nos antecederam –, em Kingston (São Vicente e Granadinas) e em Freetown (Serra Leoa). Partimos do pressuposto de que a representação diplomática permanente assegura presença no terreno, identificando, promovendo e avançando os interesses brasileiros. Criamos, além disso, novo Consulado Geral em Luanda (Angola) e escritório da Agência Brasileira de Cooperação (ABC) em Adis Abeba (Etiópia), onde, ademais, está sediada a União Africana (UA).
Desde o primeiro dia de governo, restauramos a obediência aos princípios constitucionais que orientam a ação externa brasileira; entre eles, o respeito ao Direito Internacional, a não interferência nos assuntos internos de outros Estados, a preferência pela solução pacífica das controvérsias, a prevalência dos direitos humanos, o repúdio ao racismo e ao terrorismo. Temos trabalhado para, igualmente, recuperar o protagonismo que o multilateralismo ocupa em nossa agenda externa. Reconhecemos a centralidade das Nações Unidas no ambiente multilateral e seguimos mobilizados para avançar a reforma das estruturas da governança global – em particular, do Conselho de Segurança da ONU –, de modo que sejam mais representativas do conjunto da comunidade internacional e eficazes na implementação de suas decisões.
No campo da paz e da segurança internacionais, cumpre recordar que o Brasil ocupou, no mês de outubro de 2023, a presidência rotativa do Conselho de Segurança. Nosso mandato coincidiu com um período especialmente tenso e desafiador após os atentados terroristas de 7 de outubro e a reação que redundou no conflito na Faixa de Gaza e na morte de milhares de civis.
Neste fim do ano, concluiremos nosso décimo primeiro mandato no Conselho – junto com o Japão, somos o membro eletivo que mais assiduamente se fez representar no órgão –, com a convicção de que o Brasil se provou perfeitamente habilitado a ocupar um assento permanente tão logo uma reforma abrangente possa ser finalmente levada a cabo. Poderia ir mais adiante e dizer que não só nossa contribuição tem sido mais positiva do que de certos membros permanentes, como também que um conselho dotado da presença do Brasil – bem como dos demais naturais candidatos à representação permanente – revela-se consideravelmente mais dinâmico e harmônico.
Outra seara em que o Brasil desempenha importante papel multilateral é a preservação do meio ambiente e a promoção do desenvolvimento sustentável. Na esteira dos anos de acentuada degradação ambiental e desmobilização da estrutura de proteção à disposição do Estado brasileiro, nosso governo retomou a prioridade atribuída ao meio ambiente. Internamente, os resultados são visíveis, com redução de quase metade no desmatamento em relação ao ano anterior, o que está em linha com o objetivo assumido de eliminação do desmatamento líquido até 2030, e, de forma mais ampla, com os compromissos internacionais assumidos pelo país em matéria de combate às mudanças climáticas, inclusive o Acordo de Paris.
Volta do conceito de justiça climática e combate às desigualdades
No plano diplomático, realizamos, em Belém do Pará, em agosto passado, a Cúpula da Amazônia. Naquele encontro histórico, os oito países amazônicos comprometeram-se a coordenar políticas de preservação da floresta. Desde sua histórica participação na COP-27, em Sharm El-Sheikh, ainda como presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva manifestou a intenção de que o Brasil sediasse a COP-30, também em Belém do Pará.
O governo brasileiro já está mobilizado para fazer da COP da Amazônia um imenso sucesso diplomático, deitando as bases para o futuro do combate às mudanças climáticas, inclusive em sua dimensão de financiamento ao desenvolvimento sustentável. Na COP-28, em Dubai, em dezembro, o presidente reiterou a necessidade de levar em conta o conceito de justiça climática e combater desigualdades, ao mesmo tempo que propôs o lançamento da Missão 1.5, como um trabalho coletivo a ser conduzido pela comunidade internacional com o objetivo de assegurar que o aumento da temperatura do planeta não ultrapasse 1,5º Celsius em relação aos níveis pré-Revolução Industrial.
Estamos também empenhados em redinamizar a integração regional, o que, aliás, é um ditame constitucional brasileiro. Logo nos primeiros dias de governo, o presidente determinou o reingresso do Brasil na Comunidade dos Estados Latino-americanos e Caribenhos (Celac) após uma inexplicável ausência de quase quatro anos. Além disso, sediamos, em Brasília, em abril passado, a Cúpula dos Presidentes Sul-americanos, focada na reabilitação da arquitetura institucional sul-americana. Na ocasião, os líderes da região refletiram sobre a institucionalização do diálogo político na região, que poderá – ou não – estar baseado na experiência pregressa com a Unasul.
A paz e a estabilidade são valores inegociáveis em um continente que os conflitos armados se firmaram como exceção ao longo da história. É prudente recordar que a 5ª Cúpula da Celac de Punta Cana, em 2016, estabeleceu a América Latina e Caribe como “zona de paz, baseada no respeito aos princípios e normas do Direito Internacional”. Em uma parte do mundo que os objetivos nacionais e coletivos devem ser primordialmente a superação da pobreza, o crescimento econômico, a promoção do desenvolvimento sustentável e a redução das assimetrias socioeconômicas, não é cabível que o elevado ideal da integração regional seja substituído pelo afã de mimetizar dinâmicas competitivas e ambições de expansão territorial.
Como se tem observado, o presidente Lula está firmemente comprometido em desempenhar, a exemplo do que havia feito em seus dois primeiros mandatos, um papel ativo em nossa política externa, revitalizando a diplomacia presidencial como instrumento de promoção dos nossos valores e interesses no mundo. O itinerário das visitas internacionais neste primeiro ano de governo demonstra de forma inequívoca o conjunto de compromissos e objetivos que assumimos. Nada foi aleatório ou impensado; sabíamos, desde o primeiro momento, do largo percurso que deveríamos percorrer para restabelecer a intensidade, a qualidade e a capilaridade das nossas relações diplomáticas.
Como é praxe em nossa história diplomática – pelo menos desde a redemocratização –, o presidente realizou sua primeira visita oficial à Argentina, onde, além da reunião com o então presidente Alberto Fernández, também compareceu à 7ª Cúpula da Celac, marcando nosso regresso ao agrupamento regional. De lá, partiu para Montevidéu, onde também cumpriu importante agenda política com os líderes uruguaios.
O presidente aceitou, tão logo foi possível, o convite do presidente Joe Biden para visitar a Casa Branca, o que aconteceu com apenas 40 dias de governo, em uma reunião que marcou a retomada do relacionamento bilateral e o início das comemorações dos 200 anos da amizade Brasil-EUA. Em abril, realizou importante visita de Estado à China, em atendimento ao convite formulado pelo presidente Xi Jinping no espírito de recomposição do relacionamento bilateral com este que é, para o Brasil, nosso principal parceiro comercial. A visita foi acompanhada por expressiva comitiva empresarial, além de delegação composta por importantes autoridades dos poderes Executivo e Legislativo, o que reflete a amplitude e a diversidade das relações entre Brasil e China.
O presidente também manteve intenso diálogo com as principais autoridades da União Europeia, tendo recebido em Brasília, a presidente da Comissão, Ursula Van Der Leyen. Teve atuação destacada no contexto da 3ª Cúpula Celac-União Europeia, realizada em Bruxelas, em julho, em cuja margem se discutiu, entre outros assuntos de grande ressonância, o calendário eleitoral na Venezuela e as perspectivas da assinatura de acordo de associação entre o Mercosul e a União Europeia.
Rodada europeia em busca de ampla interlocução diplomática
Em Portugal – incontornável parceiro do Brasil, com quem compartilhamos laços históricos, culturais e linguísticos indeléveis –, o presidente retomou o mecanismo da Cimeira Luso-Brasileira, tendo assinado, na oportunidade, 13 acordos bilaterais com os portugueses. Manteve importantes agendas em Madri com o presidente Pedro Sánchez; em Paris – comparecendo à Cúpula do presidente Emmanuel Macron sobre o financiamento ao desenvolvimento –; em Roma, onde se avistou não apenas com o papa Francisco, com quem tratou das graves questões da promoção da paz e do combate à fome, à pobreza e às desigualdades sociais, mas com as mais altas autoridades do governo italiano, demonstrando nossa disposição em manter uma interlocução diplomática ampla, inclusive com governos com os quais não compartilhamos afinidades políticas óbvias; em dezembro, em Berlim, copresidiu, ao lado do chanceler Federal Olaf Scholz, a II Reunião de Consultas Intergovernamentais Brasil-Alemanha, oportunidade que foram adotados 19 acordos focados na ampla agenda bilateral, especialmente de desenvolvimento sustentável, transição energética e combate à desinformação.
Completando o circuito dos principais polos de poder mundial, o presidente compareceu às reuniões do G-7, em Hiroshima, no Japão, na qualidade de convidado; da Cúpula do BRICS, na África do Sul, cuja presidência de turno, o Brasil assumirá em 2025; e do G-20, na Índia, ocasião que recebemos o bastão dos indianos para conduzir o grupo formalmente deste mês de dezembro.
Não posso deixar de mencionar a aguardada fala do presidente Lula na abertura do Debate Geral da 78ª Assembleia Geral das Nações Unidas, em setembro, em Nova York, quando proferiu um discurso em linha com as melhores tradições diplomáticas brasileiras, elencando, com a seriedade e a firmeza que de nós se esperam, nossos compromissos internacionais e reiterando nossas prioridades para a promoção do crescimento econômico e do desenvolvimento sustentável em nosso país. Na ONU, além de dar continuidade à tradição do Brasil em abrir a lista de oradores da Assembleia Geral, o presidente manteve vários encontros bilaterais com diversos de seus homólogos, inclusive com o presidente Volodmyr Zelenski, da Ucrânia, ocasião que trataram das perspectivas de paz no país.
No primeiro ano de seu novo mandato, o presidente cumpriu compromissos bilaterais ou multilaterais em 21 países: África do Sul, Alemanha, Angola, Arábia Saudita, Argentina, Bélgica, Cabo Verde, Catar, Colômbia, China, Emirados Árabes Unidos, Espanha, Estados Unidos, França, Índia, Itália, Japão, Paraguai, Portugal, São Tomé e Príncipe e Uruguai. A intensidade da agenda da política externa brasileira – especialmente em sua dimensão de diplomacia presidencial – está longe de ser algo trivial.
Retomada do discurso em linha com nossas tradições diplomáticas
O Brasil democrático do presidente Lula quis voltar ao mundo. Reflexamente, o mundo tem voltado ao Brasil. Temos recebido em Brasília dignitários – presidentes, primeiros-ministros, ministros do exterior e outras autoridades governamentais – de todos os continentes desde as solenidades de posse do presidente da República, como reconhecimento do pleno restabelecimento do Brasil à normalidade e ao convívio internacional.
Em dezembro, sediamos, no Rio de Janeiro, a LXIII Cúpula do Mercosul, cuja presidência pro tempore cabia, então, ao Brasil. Um dos principais temas tratados foi a continuidade das negociações visando à conclusão do Acordo Mercosul-União Europeia, processo que se estende por quase um quarto de século. Na oportunidade, foi assinado o Acordo de Livre Comércio Mercosul-Singapura, importante instrumento de liberalização das trocas comerciais com aquele país asiático que é um dinâmico centro de atividade econômica. O Brasil anunciou, ainda, a ratificação do ingresso da Bolívia no Mercosul na esteira da aprovação da medida pelo Senado Federal. Além do fechamento da VIII Rodada de Serviços do bloco, registre-se que foi possível adotar um comunicado conjunto unânime, emitido por todos os Estados-partes do Mercosul, o que não ocorria há cinco cúpulas – isto é, desde dezembro de 2020.
Assumimos, em 1º de dezembro, a presidência de turno do G-20. Sob o lema “Construindo um mundo justo e um planeta sustentável”, a presidência buscará focar as atenções dos membros para a promoção do desenvolvimento sustentável em sua tripla dimensão: econômica, social e ambiental. Reconhecemos tratar-se de um enorme desafio, que abraçamos com entusiasmo e sentido de responsabilidade. Prevemos cerca de cem reuniões, entre políticas e setoriais, em 16 cidades brasileiras ao longo de 2024. A reunião dos ministros das relações exteriores, em fevereiro, e a Cúpula dos Chefes de Estado e de governo, em dezembro, serão realizados no Rio de Janeiro. Esperamos dar nossa contribuição para o fortalecimento do G-20 como mecanismo de coordenação entre as grandes economias do mundo com vistas a dar respostas às crises internacionais e a favorecer o crescimento econômico e o desenvolvimento social, especialmente dos países do que se convencionou de chamar o ‘Sul Global’.
A política externa do governo em seus primeiros mandatos oferece a base – e a inspiração – para o que estamos fazendo e pretendemos continuar a fazer nos próximos anos. Mas não exaure nossos objetivos e nosso horizonte de atuação. Isso porque também o mundo que encontramos é outro. Encontramos um mundo recém-egresso da maior pandemia do último século, que deixou um rastro de perdas humanas e um ônus econômico não desprezível – e, de forma trágica, também no Brasil, que registrou 700 mil mortes, muitas das quais completamente evitáveis se ações de saúde pública tivessem sido adotadas com sentido de responsabilidade e espírito público.
A ameaça de uma crise climática, resultante das mudanças climáticas e do aquecimento global, deixou de ser só uma ameaça e passou a ser uma realidade sensível, com o aumento da média das temperaturas globais e a maior frequência dos eventos climáticos extremos ao redor do mundo. O verão inclemente que varreu o continente europeu em meados do ano, a atípica onda de calor que sofremos no Brasil entre os meses de outubro e novembro e o persistente derretimento das calotas polares no Círculo Ártico e na Antártica não se apresentaram apenas como sinais alarmantes prenunciando um futuro acometido pelo aquecimento global; são sintomas de um problema com o qual temos que lidar hoje com vistas a mitigar efeitos ainda mais danosos em um futuro próximo. Não é de se estranhar que 2023 foi considerado o ano mais quente nos últimos 125 mil anos.
Lidamos com o surgimento definitivo da inteligência artificial como ferramenta tecnológica, criando um manancial de oportunidades e desafios ainda inescrutáveis, que atravessam todos os campos de ação humana, inclusive o político e o diplomático. Além disso, o recrudescimento de uma extrema-direita violenta, anticiência, antiprogresso, negacionista, populista, antidemocrática e ‘iliberal’ – com preocupantes conexões transnacionais – ameaça nossas instituições nacionais e dificulta a cooperação internacional no enfrentamento das questões globais, a exemplo das mudanças climáticas, do crime transfronteiriço, das pandemias e outras questões de saúde pública, da regularidade dos fluxos comerciais, da liberdade de navegação e da própria manutenção da paz e da estabilidade globais.
No plano geopolítico, não somos alheios ao incremento da competição entre as grandes potências e a seus impactos indesejáveis para a estabilidade internacional e para a preservação da paz e da segurança internacionais. O Brasil defende a formação de uma ordem multipolar benigna, positiva e construtiva, que favoreça entendimentos políticos entre os Estados e a construção de soluções efetivas para os problemas globais que compartilhamos.
Para isso, os países e seus líderes devem abandonar atitudes unilaterais ao arrepio das normas de convivência pacífica entre os Estados e do próprio Direito Internacional. Não resta alternativa à comunidade internacional que não seja se empenhar coletivamente para reformar de forma significativa as estruturas ainda oligopolistas da governança global, de modo que os países em desenvolvimento adquiram representatividade proporcional à sua importância, à sua contribuição, às suas necessidades e ao seu potencial.
Estamos particularmente preocupados com a banalização do uso da força nas relações internacionais. O conflito na Ucrânia e a guerra em Gaza, que testemunhamos ao vivo na televisão e em nossos smartphones, são exemplos pulsantes disso, embora seguramente não os únicos, de uma tendência alarmante de atores estatais e não estatais de expressar-se por meio da violência armada para alcançar objetivos políticos no mais das vezes ilegítimos.
É preciso que o Direito Internacional – inclusive o Direito Internacional humanitário – seja observado de forma rigorosa, especialmente no que se refere à proteção de civis, e que o uso da força militar volte a estar restrito às situações excepcionais previstas pela Carta das Nações Unidas. A paralisia do Conselho de Segurança, com o recurso nada construtivo a vetos cruzados, converteu o órgão, meramente, a um palco de exibição para que certos membros tentassem constranger outros membros, sem compromisso com paz e a proteção de vidas humanas.
O Brasil defende a paz não só como um chamamento retórico; trata-se de uma diretriz operacional de nossa política externa. É por isso que atuamos para apresentar um projeto de resolução no conselho em favor do estabelecimento de uma pausa humanitária e da criação de corredores humanitários em Gaza. Infelizmente, nosso projeto de resolução, apesar de ter obtido a aprovação de ampla maioria (teve 12 votos favoráveis), não foi aprovado em razão do veto de um membro permanente do conselho.
Mesmo fora do conselho, seguiremos mobilizados diplomaticamente em favor da proteção dos civis em Gaza e na Cisjordânia, da libertação dos reféns remanescentes, da continuada prestação de assistência humanitária e, especialmente – por estar na raiz do conflito –, da construção da solução de dois Estados que culmine na criação de um Estado palestino dentro das fronteiras de 1967, que seja econômica e socialmente viável e que ofereça condições de segurança para a coexistência pacífica com Israel.
É preciso assinalar que, desde a eclosão do conflito, prioridade diplomática alguma se sobrepôs ao resgate dos cidadãos brasileiros e seus familiares que se encontravam na Faixa de Gaza. O presidente manteve intensa rotina de chamadas telefônicas com seus homólogos do Oriente Médio e além – e, seguindo suas instruções expressas, procedi da mesma forma –, com vistas a assegurar a autorização dos governos de Egito e de Israel para que os brasileiros e brasileiras pudessem ser evacuados pela passagem fronteiriça de Rafah. Em 13 de novembro, o grupo chegou a Brasília, em segurança e em boas condições de saúde, episódio que – devo confessar – não esteve privado de emoção. No momento em que este artigo era finalizado, uma segunda aeronave partia em direção ao Cairo com o objetivo de repatriar cerca de 50 pessoas que manifestaram desejo de serem repatriadas. Cumpre observar que nove voos de repatriação operados pela FAB regressaram de Israel, transportando quase 1.500 cidadãos brasileiros, além de nacionais de países amigos, que se encontravam em situação de vulnerabilidade face à escalada do conflito.
A busca do chamado ao diálogo pela paz
Com relação ao outro conflito em curso que atrai grande parte da comunidade internacional, nosso governo condenou, desde o primeiro momento, a violação da soberania e da integridade territorial ucranianas, tendo votado de forma consistente com esse posicionamento na Assembleia Geral e no Conselho de Segurança das Nações Unidas. Consideramos, entretanto, contraproducente, até para os propósitos da retomada do diálogo e da construção da paz, ostracizar a Federação Russa do convívio internacional – inclusive dos organismos multilaterais –, além de rejeitarmos o recurso às sanções econômicas unilaterais, cuja legitimidade e legalidade jamais reconhecemos.
O governo tem oferecido, desde que o presidente Lula regressou à presidência, os bons ofícios brasileiros para, em conjunto com outros países, ajudar a construir a paz entre Rússia e Ucrânia. Não temos um ‘plano’ ou uma ‘fórmula’ de paz pré-concebidos: o que desejamos é fazer um chamado pragmático ao diálogo e ao início, tão logo seja possível, de um processo negociador, que não precise necessariamente começar com contato direto entre as partes, mas que possa tratar de questões específicas do conflito a serem facilitadas por países comprometidos com a paz.
Não somos ingênuos nem em relação às perspectivas de paz na Ucrânia nem em relação à implementação da solução de dois Estados, mas seguimos comprometidos com a ideia de que o diálogo, a diplomacia e a busca pela solução de controvérsias são a única rota factível, porque as alternativas não são nem aceitáveis nem sustentáveis.
É nesse mar de águas agitadas que hoje navegamos. Cientes da monta dos desafios que enfrentamos, temos clareza sobre a direção para onde queremos levar nossa inserção internacional; começa na restauração das nossas credenciais diplomáticas e pleno restabelecimento dos nossos princípios de ação externa, mas não para por aí. Dispomos de instrumentos de navegação afinados a nosso dispor, inclusive um serviço exterior que deseja se fortalecer, também por meio da diversificação do perfil dos diplomatas brasileiros e das diplomatas brasileiras – afinal, um Itamaraty mais representativo da sociedade brasileira apresenta também melhores condições para interpretar e sintetizar o interesse nacional. Na figura do presidente Lula, contamos também com um navegante seguro, experiente, experimentado e respeitado internacionalmente. Há muito pouco tempo, não era assim. Também por isso, há tempo a se recuperar – e, sobretudo, não há tempo a perder.
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