03 abril 2020

A Falência do Estado brasileiro e a urgência de uma reforma administrativa

Viadutos caem, museus ardem, escolas públicas se deterioram, crianças e jovens não aprendem, hospitais e postos de saúde não conseguem atender à demanda da população, policiais morrem nas ruas sem condições de trabalho e uma burocracia processual e ultrapassada nos custa cada vez mais. Essa é a realidade de um país que tem uma máquina pública ineficiente, inchada, cara e que se retroalimenta em um processo de crescimento contínuo e disfuncional. O modelo operacional que rege o funcionamento do setor público no Brasil precisa ser revisto e reinventado. Enquanto não enfrentarmos essa discussão, redefinindo as bases sobre as quais se assentam as relações funcionais entre o Estado e seus servidores, continuaremos servindo mal o cidadão e reforçando a condição de desigualdade que caracteriza a sociedade brasileira.

Viadutos caem, museus ardem, escolas públicas se deterioram, crianças e jovens não aprendem, hospitais e postos de saúde não conseguem atender à demanda da população, policiais morrem nas ruas sem condições de trabalho e uma burocracia processual e ultrapassada nos custa cada vez mais. Essa é a realidade de um país que tem uma máquina pública ineficiente, inchada, cara e que se retroalimenta em um processo de crescimento contínuo e disfuncional. O modelo operacional que rege o funcionamento do setor público no Brasil precisa ser revisto e reinventado. Enquanto não enfrentarmos essa discussão, redefinindo as bases sobre as quais se assentam as relações funcionais entre o Estado e seus servidores, continuaremos servindo mal o cidadão e reforçando a condição de desigualdade que caracteriza a sociedade brasileira.
Uma reforma administrativa do Estado brasileiro é urgente e imprescindível para que se devolva, via alinhamento de incentivos e motivação e racionalização dos gastos, à sociedade brasileira um Estado que ofereça serviços públicos de melhor qualidade. Educação, saúde, segurança e políticas públicas de qualidade dependem de uma reforma estrutural que passa, necessariamente, pela revisão das inúmeras leis de carreiras que se multiplicaram nas três esferas administrativas do Executivo e dos poderes autônomos.
A qualidade dos serviços públicos é, acima de tudo, uma questão de justiça social. Serviços públicos básicos são instrumentos de geração de oportunidades para aqueles que só têm no Estado a possibilidade de acessá-las. O seu aprimoramento é, portanto, a forma de interromper um processo perverso, no qual o setor público atua como agente de reforço das desigualdades de renda e da baixa mobilidade que caracteriza a nossa sociedade.
Mas, a melhora dos serviços públicos prestados no Brasil depende de uma transformação no modelo de gestão de pessoas na esfera pública, com revisão das práticas atuais e adoção de conceitos que aumentem o nível de motivação, engajamento e satisfação dos servidores e também de entregas. A eficiência e a qualidade dos serviços públicos no Brasil têm sido afetadas pelo modelo vigente, caracterizado por um arcabouço infraconstitucional pulverizado e não homogêneo, com diversas leis e estatutos sobrepostos e específicos por carreira. Esses processos internos ineficazes limitam significativamente a capacidade dos entes públicos de administrar e engajar seus recursos humanos. A pulverização dos dispositivos por carreira fomenta ainda a negociação de vantagens remuneratórias e benefícios para cada classe de forma segregada, criando um ambiente propício a negociações dispersas. Essas, uma vez bem-sucedidas, incentivam outras carreiras a buscarem equiparação, criando um círculo vicioso pela busca de vantagens usualmente dissociadas da qualidade do serviço prestado.
Os gastos públicos no Brasil atingiram 39% do PIB em dados de 2016, segundo informações do Tesouro Nacional. Esse número é substancialmente maior do que o de países similares ao Brasil, como Chile ou México, onde os gastos públicos atingem 26% e 27% do PIB respectivamente, segundo informações da OCDE. Além disso, o equivalente a 13,1% do PIB é direcionado a despesas com pessoal ativo no serviço público. Não surpreende, portanto, que o gasto com pessoal represente parcela relevante das despesas dos governos em todas as instâncias federativas e venha trilhando uma trajetória de crescimento contínuo. No governo federal, entre 2003 e 2016, o aumento nas despesas com pessoal atingiu 56% em termos reais, tornando-se a segunda maior despesa atrás apenas da Previdência Social. Essa mesma tendência é observada nos entes subnacionais, mas com maior intensidade, e hoje já comprometem, nos Estados, o equivalente, em média, a mais de 70% da receita corrente líquida desses entes, ou seja, 14 pontos percentuais acima do limite definido pela Lei de Responsabilidade Fiscal. Essa situação tende a se agravar nos próximos anos, caso não sejam adotadas medidas de contenção e mesmo de redução dos gastos com a folha de pagamento desses entes subnacionais. A média de comprometimento deverá chegar a 84% até o final do mandato dos atuais governadores, ou seja, em 2022, fruto da dinâmica de crescimento vegetativo e de pressões por novos aumentos. Não há caminho de consolidação fiscal para os entes subnacionais sem que haja uma redução no nível das despesas de pessoal e a interrupção desse crescimento vegetativo das folhas de pagamento, que hoje gera elevações da ordem de 5% a 7% ao ano, independentemente de reajustes salariais.
Chama a atenção, contudo, que a contrapartida aos aumentos de gastos não tem se refletido na melhora da qualidade dos serviços públicos. Ao contrário, os serviços básicos são mal avaliados pela população e colocam o Brasil no quartil inferior em rankings internacionais de qualidade dos serviços públicos. Essa baixa qualidade dos serviços públicos pode ser explicada por diversos fatores, tais como o nível insuficiente de investimentos e a ausência de planejamento de longo prazo. A má alocação dos recursos, as péssimas condições de trabalho, o baixo nível de engajamento e motivação dos servidores e a ausência de investimentos em capacitação e em tecnologia explicam a baixa qualidade dos serviços prestados à população.
Sem que haja o enfrentamento dessas questões, com foco no redesenho do atual modelo de gestão de pessoas e com uma substantiva racionalização e redução dos gastos com pessoal em todos os níveis federativos, mas em particular nos Estados, não haverá melhora nos serviços e nem tampouco equilíbrio fiscal estrutural no Brasil e, consequentemente, a retomada consistente dos necessários investimentos públicos. Ou seja, reformar a máquina pública no Brasil é, além de um imperativo social, também uma urgência fiscal e condição necessária para que se consiga resolver a crise financeira dos entes subnacionais.
Há ainda uma terceira razão que justifica a necessidade de uma reforma estrutural da máquina pública no Brasil: o aumento da produtividade da economia brasileira. Motor principal de crescimento, e consequentemente de geração de emprego e renda, a produtividade no Brasil está estagnada há mais de 20 anos, tendo recuado nos anos recentes, comprometendo o potencial de crescimento e contribuindo para uma recuperação mais lenta e menos consistente. Mas, aumentar a produtividade da economia brasileira passa, necessariamente, por aumentar a produtividade do setor público, dado o peso do Estado na nossa economia e também o relevante impacto que ele exerce sobre a produtividade do setor privado. Aumentar a produtividade do setor público significa ganhar eficiência na alocação dos recursos e garantir resultados melhores do que os que temos colhido atualmente.
Como reformar
Embora seja a estabilidade do emprego o primeiro vilão a ser apontado numa discussão de reforma administrativa do Estado, há muito a corrigir sem que se precise acabar com ela. Afinal, sem prejuízo de uma revisão na sua extensão no caso do Brasil, estabilidade de emprego no serviço público é algo comum no mundo todo. Seu objetivo é o de garantir a continuidade da administração e das políticas públicas em situações de alternância de poder e para proteger o interesse coletivo, fortalecendo a independência dos servidores que têm poder de polícia, de regulação, de tributação, jurisdicional ou de controle. Está assim, na maioria dos países do mundo, restrita às chamadas carreiras de Estado, e não significa impedimento à demissão de servidores por faltas graves, redundância de função, extinção de órgãos, baixo desempenho ou mesmo por afastamentos constantes. Ou seja, estabilidade de emprego no serviço público não é sinônimo de blindagem em lugar nenhum do mundo, a não ser no Brasil.
No Brasil, a estabilidade está garantida pela Constituição de 1988, que inclusive a estendeu a todos os servidores públicos com a criação do Regime Jurídico Único. Em 1995, tivemos nossa última proposta de Reforma Administrativa. Com uma emenda constitucional apresentada pelo então ministro Bresser Pereira, durante o governo Fernando Henrique Cardoso, buscou-se modernizar o serviço público e atualizar as relações funcionais no Estado. A sua aprovação veio em 1998 e trouxe alguns avanços. Um dos mais importantes deles foi a previsão de demissão por baixo desempenho, que ainda carece de regulamentação. Mas, a verdade é que, ao longo do tempo, mesmo os ganhos conquistados com a Emenda 19 foram se perdendo. A avaliação de performance se tornou mera justificativa para concessão de adicionais salariais generalizados; as progressões e promoções automáticas viraram a regra e os processos administrativos disciplinares, que devem preceder penalidades e demissões, tornaram-se cada vez mais lentos, mais obscuros e menos eficazes, em particular nas administrações estaduais e municipais, onde há menos controle e transparência.
Mas, não foi a Constituição a culpada por isso, porém todo um arcabouço infraconstitucional que foi sendo montado e que se baseia hoje em uma miríade de leis de carreiras que blindam o funcionalismo público de qualquer ação de gestão de pessoas. No governo federal, são mais de 300 carreiras distintas. Num Estado médio, chega-se a uma centena. Nos munícipios, são dezenas. Juntem-se a isso processos internos viciados e capturados e têm-se um modelo de máquina que serve a si mesma, e não ao cidadão. Desde o estágio probatório, etapa em que se avalia se o aprovado no concurso se adequa às funções, até em situações de faltas graves como extorsão ou corrupção comprovada, são raros os casos de demissão de servidor aprovados em concurso. Nas poucas vezes em que isso ocorre, o Judiciário trata de reverter, garantindo um caráter de vitaliciedade ao servidor estatutário. A remuneração, por sua vez, pouco tem a ver com resultado.
A reforma administrativa precisa resgatar o conceito de estabilidade no serviço público, restringindo-a às carreiras de Estado, mas também eliminando dispositivos e processos que hoje garantem uma proteção indiscriminada contra crimes, baixo desempenho, descaso e também intempéries econômicas. Estabilidade não pode significar impossibilidade de demissão por falta grave, por redundância ou por baixo desempenho. Estabilidade não pode ser equivalente a garantir aumentos salariais, progressões e promoções automáticas e muito menos uma aposentadoria generosa e desconectada das contribuições feitas. Mas, nada disso, à exceção da amplitude da nossa estabilidade, está na Constituição.
O ponto de partida da reforma administrativa deve ser, portanto, a revisão das diversas leis de carreiras que são, em sua maioria, leis locais que estão sob a competência respectiva do presidente da República, de governadores, prefeitos, chefes de poderes e seus respectivos parlamentos. Três são os pilares dessa reforma e que deverão nortear uma completa revisão das leis de carreiras Brasil afora: eliminação dos dispositivos de progressão e promoção automáticas; avaliação de desempenho anual relativa (curva forçada) e planejamento da força de trabalho. Além disso, formas mais flexíveis de contratação e a revisão dos processos administrativos disciplinares, além da introdução de ferramentas de gestão de pessoas que promovam a meritocracia e a valorização dos melhores servidores.
Conclusão
Não há justiça social sem um Estado eficiente, sem serviços públicos de qualidade, sem um serviço público voltado ao cidadão, e não a si próprio e a seus processos. Pelo contrário, um Estado pouco efetivo e que, ainda assim, consome grandes e crescentes volumes de recursos públicos reforça as injustiças sociais e a desigualdade de renda ao alijar os que mais precisam de oportunidades, aqueles quem mais precisam de apoio para poder competir com os que nasceram em situação mais favorável. Essa é a realidade do nosso Estado. Uma máquina que faliu e atua perversamente em favor da injustiça social no nosso país. Forjado em leis de carreiras e processos internos distorcidos, o setor público brasileiro reforça as nossas desigualdades, não entrega o que deveria e segue um modelo operacional que só se presta à sua retroalimentação e que hoje responde pela sua contínua deterioração.
Não há outra forma de interromper esse processo a não ser a partir de uma reforma administrativa estrutural e profunda que consiga restabelecer os conceitos de um serviço público efetivo. É imprescindível que se resgatem os instrumentos de gestão de pessoas, selecionando, avaliando, valorizando e diferenciando os bons servidores (e demitindo os maus). Há que se restabelecer o uso de resultados (mérito) como único critério de ascensão na carreira e distribuição de gratificações e é fundamental que se faça um cuidadoso planejamento da força de trabalho, considerando adequação de competências, correto dimensionamento e distribuição, digitalização e eliminação de processos e a ampla modernização da máquina pública. Nada disso depende de mudanças constitucionais, mas sim da revisão das leis de carreiras que se multiplicaram em todas as esferas administrativas e introduziram dispositivos que eliminaram a motivação, valorização e diferenciação dos servidores públicos e geraram mecanismos de crescimento contínuo das despesas de pessoal.
Não se pode confundir reforma administrativa do Estado com a necessidade emergencial de congelamento de salários ou com medidas moralizantes como a extinção de quinquênios, licenças prêmio ou gratificações injustificáveis. Embora imprescindíveis em vários casos, isso não é reformar o Estado e nem tampouco fortalecer a gestão de pessoas no setor público. Há que se encarar uma reforma cujo objetivo é um serviço público mais efetivo para a população, o que também depende da valorização do servidor, do seu desenvolvimento e capacitação, da sua justa remuneração e de adequadas condições de trabalho para que ele consiga entregar o que o cidadão espera receber: educação de qualidade, atendimento de saúde decente, segurança pública que funcione e uma burocracia que atue em favor do interesse público, e não focada em sua própria sobrevivência.
Não há caminho para a melhoria dos serviços públicos, para o aumento da produtividade da economia e para a consolidação fiscal definitiva, em particular dos entes subnacionais, sem uma profunda e estrutural reforma administrativa no Brasil.
Referências


Abrão Costa, Ana Carla; Fraga, Arminio e Sundfeld, Carlos Ari (2018) – Reforma do RH do Estado. Oliver Wyman “Panorama Brasil – Reforma do Estado”
Banco Mundial (2019) – Gestão de Pessoas e Folha de Pagamentos no Setor Público Brasileiro
CNI – Confederação Nacional da Indústria (2018) – Retratos da sociedade brasileira: saúde pública / Confederação Nacional da Indústria. Ano 7, n. 44. – Brasília, DF
OECD (2011) – A Topography of Civil Service Laws. OECD Publishing, Paris.
OECD (2016) – Government at a Glance: Latin America and the Caribean 2017. OECD Pu- blishing, Paris.

Ana Carla Abrão Costa é doutora em Economia pela FEA/USP, sócia da Oliver Wyman Brasil.

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