14 maio 2019

A Voz das Ruas ( Na França )

De passagem por Paris, pude acompanhar a grande manifestação de 1 de maio, organizada pela CGT (a CUT francesa) e a 25a e a 26a. contestação dos coletes amarelos (gilets jaunes) contra Emmanuel Macron e suas políticas econômicas. A eleição presidencial de 2017 trouxe uma forte renovação na vida politica da França. A vitória de […]

De passagem por Paris, pude acompanhar a grande manifestação de 1 de maio, organizada pela CGT (a CUT francesa) e a 25a e a 26a. contestação dos coletes amarelos (gilets jaunes) contra Emmanuel Macron e suas políticas econômicas.
A eleição presidencial de 2017 trouxe uma forte renovação na vida politica da França. A vitória de Macron contra o establishment e contra os extremos de direita e da esquerda, deu-lhe um mandato para reformar o pais. Criou-se uma grande expectativa pelo anúncio de reformas muito semelhantes à da atual agenda brasileira. Reforma das relações trabalhistas, previdência social, tributaria, educação, gasto publico e mudanças na economia para melhorar a competitividade dos produtos franceses e reduzir os privilégios corporativos. A pergunta que se fazia era se Macron resistiria a CGT e a extrema esquerda.
A resistência às reformas, que incluiria o fim de privilégios e vantagens acumuladas durante os muito anos de governos socialistas e que determinaram a gradual perda de espaço econômico e comercial na Europa, ganhou, nos últimos meses, o apoio da classe media e dos mais pobres, afetados pela concentração de renda e o sentimento de exclusão dos ganhos trazidos pela globalização.
O estopim para o inicio do movimento dos coletes amarelos, em 17 de novembro de 2018, que vem se repetindo há 26 sábados por toda a França, foi o aumento do preço do diesel, como taxa para o meio ambiente. O movimento se alastrou como rebelião contra o governo nas áreas rurais do interior da França, nas principais cidades e na capital. A classe média, nos últimos anos, perdeu renda e passou a morar mais longe de seu trabalho, tendo de viajar de carro de 60 a 100 quilometros por dia. O aumento do combustível e a redução do limite de velocidade foram a gota d’agua para galvanizar, via redes sociais, de forma espontânea, um grande número de manifestantes antissistema e apartidário. Posteriormente as manifestações se ampliaram com a incorporação de outros segmentos de descontentes (empobrecidos das periferias) e minorias violentas (black blocks), resultando numa forte repressão policial.
Surpreendido, o governo Macron levou tempo para reagir ao movimento social mais serio e complexo desde as manifestações estudantis de maio de 1968. A França está acostumada a demonstrações teatrais e os manifestantes gostam de recordar imagens revolucionarias. Em uma delas, os coletes amarelos levaram uma guilhotina com um boneco representando o presidente francês. Teria se esquecido o presidente que 48% dos eleitores votaram nos partidos extrema esquerda e de direita?
A reação do governo foi a organização de 10.134 encontros com a participação de mais de 1.900.000 pessoas por toda a França, chamados de “grande debate” para abordar todas as reivindicações populares e as reformas propostas. O resultado dos encontros mostrou algumas áreas de consenso nacional, como a urgência de providencias relacionadas com a mudança do clima e a redução dos impostos, a descentralização do poder central, a melhoria dos serviços públicos e a desburocratização com a redução do papel do Estado. Macron se deu conta que o estilo imperial, característica dos primeiros anos de seu governo, terá de ser ajustado para uma ação menos pessoal.
Adiadas em virtude do incêndio da Catedral de Notre Dame, em 25 de abril, Macron finalmente anunciou um pacote de medidas em resposta aos coletes amarelos. Elas incluem, entre outras, a redução do imposto de renda, a vinculação das aposentadorias mais baixas à inflação, bônus de ate mil euros para assalariados que ganham ate 3.600 euros, reforma politica com a simplificação da convocação de referendos, redução do numero de deputados e a limitação de seus mandatos. E ainda medidas na saúde e educação, com o compromisso de não fechar nenhum hospital ou escola ate 2022, maior descentralização politica com maior autonomia para governantes eleitos regionalmente com a correspondente diminuição do poder concentrado em Paris (a França é um estado unitário e, portanto, não tem Estados, nem governadores, como no Brasil). Em relação ao meio ambiente foi anunciada a criação de um conselho de defesa ecológica constituído por 250 cidadãos que irão trabalhar por medidas ambientais concretas. Essas medidas visam claramente a atender as principais reivindicações por diminuir as desigualdades, rever o papel dos políticos e reduzir o papel do Estado.
A voz do povo, no entanto, continuou a se ouvida depois do anuncio dessas medidas. No 1 de maio, como seria de se esperar, 165 mil manifestantes foram às ruas e viu-se cenas de violência em todo o pais. 40.000 pessoas participaram em Paris onde os coletes amarelos e os black blocs marginalizaram os sindicatos, uma importante constatação politica. Nos sábados, 4 e 11, as manifestações dos coletes amarelos foram mais tranquilas e menos numerosas, mas mostrou a Macron que o movimento continua.
O PM Edouard Philippe pretende lançar as reformas anunciadas em clima de crise social, que persiste há seis meses. Resta saber se elas serão suficientes e se servirão para acalmar os ânimos dos mais pobres e descontentes.
A crise interna francesa enfraqueceu as ações externas de Macron. Forte defensor do fortalecimento da Europa, Macron vê a unidade europeia diminuir com a saída do Reino Unido da União Europeia, pela emergência de movimentos nacionalistas e populistas de direita em muitos países europeus e pela saída de cena de Angela Merkel, sua principal parceira. O encontro Merkel-Macron, no ultimo dia 30, para discutir a situação nos Balcãs (Servia-Kosovo) está mais para o canto do cisne do que para o reaparecimento de Macron, como um ator relevante na cena internacional. No meio da enorme turbulência, a Europa carece de um líder forte para lidera-la.

Presidente e fundador do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (IRICE). É presidente do Conselho Superior de Comércio Exterior da FIESP, presidente da Associação Brasileira da Indústria de Trigo (Abitrigo), presidente do Centro de Defesa e Segurança Nacional (Cedesen) e fundador da Revista Interesse Nacional. Foi embaixador do Brasil em Londres (1994–99) e em Washington (1999–04). É autor de Dissenso de Washington (Agir), Panorama Visto de Londres (Aduaneiras), América Latina em Perspectiva (Aduaneiras) e O Brasil voltou? (Pioneira), entre outros.

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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