30 junho 2022

Brasil: vulnerabilidades e oportunidades

A pandemia e, agora, o conflito entre a Rússia e a Ucrânia expuseram de forma dramática as vulnerabilidades de todos os países em áreas sensíveis e estratégicas. A dependência da China em muitos setores da cadeia produtiva fez com que os países desenvolvidos passassem a enfrentar essa questão com novas políticas industriais para reduzir os riscos dessa situação. No caso do Brasil, a magnitude dos problemas – em especial, na economia (baixo crescimento, inflação, taxa de juros), na sociedade (desigualdade, aumento da pobreza, desemprego), na destruição da Amazônia e no isolamento e na perda de espaço do mundo -– deixa para um longínquo segundo plano a questão das vulnerabilidades, que perpassa diversos setores estratégicos para a segurança alimentar e a segurança nacional.

Vou limitar o tratamento dessa matéria a dois aspectos: comércio exterior e algumas áreas estratégicas.

 O comércio exterior brasileiro está acima de meio trilhão de dólares. O mercado asiático absorveu 46,4% com destaque para a China que representou 31,3%. O agronegócio representou 43%. Desse total, mais de 70% das exportações estão representadas por dois produtos de proteína vegetal (soja e milho), 87,7% em valor concentrado no mercado chinês. Essa dependência deixa o setor muito exposto às oscilações do comportamento da economia chinesa e das políticas do governo de Beijing. Soma-se a isso a precariedade da infraestrutura e a dependência externa dos defensivos agrícolas, somados às crescentes ameaças de restrições externas. Os consumidores e cadeias de supermercados externos já começaram a boicotar produtos brasileiros, como retaliação à essa política ambiental. 

O valor total das exportações brasileiras alcançou 280 bilhões de dólares em 2021. O Brasil está se tornando uma potência agrícola global, com exportações subindo a mais de 100 bilhões de dólares, porém com crescente vulnerabilidade. A euforia com os resultados nos últimos anos, sem dúvida consequência do avanço tecnológico do setor, do dinamismo dos agentes privados e da crescente demanda externa, muitas vezes deixa para segundo plano a percepção da perigosa dependência em que o Brasil está colocando. Nos últimos cinco anos, mais de 90% da soja brasileira foi exportada para a China. Há redução das compras de soja e carne pela China. O fluxo das exportações para lá poderá ser afetado pela desaceleração da economia chinesa, de um lado, e, de outro, por medidas restritivas, como o embargo a carne brasileira, que produziu uma queda de 43% no volume exportado em 2021 em relação a 2020 (a exportação de carne suína para a China caiu cerca de 50%, com os preços se reduzindo perto de 17%); e a busca de autossuficiência (meta de aumento de 25% da produção de soja até 2025) com diversificação de suas fontes de suprimento a partir da importação da África (Namíbia, Zimbábue e Golfo da Guiné) de produtos que concorrem com os brasileiros. Isso sem falar da possibilidade de implementação da primeira fase do acordo comercial com os EUA prevendo substancial incremento das compras de soja e milho no mercado americano.

No tocante às importações na área agrícola, ocorre o mesmo fenômeno: alguns produtos essenciais ao agro brasileiro são importados de poucos países, como os defensivos agrícolas originários da Rússia e de Belarus. O Brasil importa 80-85% dos fertilizantes que consome em sua produção agrícola. Cerca de 28% desse total é oriundo da Rússia e de Belarus. Essa vulnerabilidade é inaceitável pela importância do setor do agronegócio no conjunto da economia nacional. O investimento russo em plantas de produção de fertilizantes no Brasil provavelmente não deverá se materializar. A dependência externa dos defensivos agrícolas, forçou o Ministério da Agricultura a desenvolver a diplomacia dos insumos, com a viagem da então ministra Tereza Cristina à Rússia para assegurar o suprimento ao Brasil em vista das quotas de exportação estabelecidas por Moscou para fertilizantes, e a garantir o fornecimento de fosfato e potássio, pelas limitações da Belarus e China.

Um dos motivos do aumento do preço das commodities, segundo a FAO, foi a decisão da China de reduzir a exportação de fertilizantes para o mercado global, o que fez com que o preço desses produtos subisse mais de 300% nos últimos quatro anos. As sanções impostas pelos EUA e pela UE a Belarus, em 2021, estão afetando a exportação e o preço do potássio. Na alimentação, para dar um exemplo, o trigo, produto essencial na mesa brasileira (pães, massas, biscoitos e bolos), estratégico para a segurança alimentar, depende de 60% da importação para consumo doméstico e, desse total, 85% é originário de um único país, a Argentina. Recente relatório da FAO, da ONU, ressalta as incertezas que cercam as exportações agrícolas brasileiras, inclusive pela mudança de clima em médio e longo prazos com a desertificação da Amazônia e suas consequências sobre a produção agrícola na região. Além disso, cresceram as incertezas globais derivadas da pandemia, da precariedade da infraestrutura e do crescente custo dos fretes marítimos.

Ameaças de sanções comerciais

Por fim, mas não menos importante, a todas essas vulnerabilidades, somam-se as crescentes ameaças de sanções comerciais, disfarçadas em restrições externas em função das preocupações globais com o meio ambiente e com a mudança do clima. As políticas ambientais do atual governo em relação aos ilícitos na Amazônia (desmatamento, queimadas e garimpo, inclusive em terras indígenas), concorde-se ou não com suas motivações, estão hoje no centro das preocupações globais, em especial, dos países europeus e dos EUA. Nessa linha, a União Europeia anunciou o exame da lei do desmatamento e a criação de taxa de carbono sobre produtos importados de países que não coíbem a destruição das florestas tropicais. Essas medidas, que muitos consideram como protecionistas, estão sendo finalizadas pelo Conselho Europeu e poderão ser contestadas na OMC, mas deverão ser implementadas, não devendo ser descartada a sua aplicação também, no futuro, pelos EUA. Por outro lado, os consumidores e cadeias de supermercados externos já começaram a boicotar produtos brasileiros, como retaliação à política ambiental amazônica. 

Uma das consequências da crise bélica é a disparada dos preços de produtos agrícolas e energéticos. O mercado de trigo, por exemplo, enfrentou muitos desafios nos últimos anos, como a pandemia e agora as incertezas e imprevisibilidades geradas pelo conflito. A Rússia é o maior exportador mundial de trigo, e a Ucrânia é o 4º. Juntos são responsáveis por cerca de 30% do mercado mundial de exportação do trigo, de 210 milhões de toneladas. É inevitável que a crise da Ucrânia afete diretamente os preços do trigo em nível mundial. Estamos, novamente, vivendo um período de grandes desafios para todo o setor do trigo também no Brasil. Os efeitos negativos sobre o mercado de trigo dependerão da duração da crise bélica. Se o conflito armado se prolongar com a resistência armada da Ucrânia, continuará a suspensão dos embarques nos portos ucranianos, e os importadores concentrarão suas demandas nos demais exportadores como Estados Unidos, Austrália, Canadá e Argentina. O mercado global de trigo, nos dois últimos anos, foi fortemente afetado por crises climáticas nos países líderes e com novos hábitos de consumo, que impactaram o posicionamento de estoques de segurança e fretes marítimos, com aumento de até três vezes em seu custo. Em relação aos preços no mercado global e no mercado interno, a tendência recente de preços elevados vai continuar.

Na indústria, pesquisas indicam que somente 10% das empresas podem ser consideradas 4.0, o que tem acarretado aumento das importações e perda de mercado externo nas manufaturas, gerando um déficit de mais de 110 milhões dólares em 2021. A indústria de transformação caiu de 28% do PIB, em fins de 1980, para em torno de 10% no ano passado, e a participação das manufaturas nas exportações caiu de 59%, em 2000, para 27% em 2021.

Atualização da política industrial

As transformações globais estão obrigando os países a atualizar sua política industrial. A China, em 2017, com sua ‘made in China 2025’ deu prioridade a dez setores considerados estratégicos para evitar a dependência externa e industrializar-se de forma competitiva. Mais recentemente, Alemanha, França e parcialmente os EUA adotaram políticas e incentivos para modernizar suas indústrias. Os presidentes Joe Biden e Emmanuel Macron indicaram mudança de política pela qual, em vez de depender da cadeia produtiva estrangeira, EUA e França vão buscar uma autonomia soberana, aumentando a capacidade produtiva da economia em áreas estratégicas. Tornou-se urgente a definição de uma estratégia entre o governo e o setor privado, para reindustrializar o parque nacional, o que poderia ser acelerado pela introdução de redes privadas do 5G e dos novos instrumentos da Inteligência Artificial, ao lado de políticas que tornem possível a fabricação no Brasil de produtos sensíveis, na área da saúde, por exemplo, importados do exterior de um ou dois países.

Quanto às vulnerabilidades em áreas estratégicas, podem ser lembradas, entre outras, a falta dos insumos na área da saúde, para a fabricação de vacinas (IFA), e na de mineração (terras raras, nióbio, urânio), com políticas incipientes até aqui para reduzir essa dependência externa. Na área de semicondutores, há anos desprezamos por questões burocráticas projeto da empresa Intel para instalar fábrica no Brasil. Hoje, a produção nacional é de cerca de 10% da demanda doméstica.  Na Ásia e nos EUA concentram-se a maior parte da produção mundial. Medidas recentes tomadas pelo governo e pelo setor privado abrem novas perspectivas para o setor.

Na era do conhecimento, o atraso do Brasil na educação e na pesquisa e desenvolvimento se reflete em todas as áreas produtivas, com exceção do agronegócio, que se mantém atualizado nos avanços tecnológicos no campo.

Por fim, na área cibernética, o Brasil é um dos cinco países mais visados por hackers. Instituições governamentais, como TSE e Ministério da Saúde, foram atacados e paralisados em áreas sensíveis. Empresas privadas, desde bancos até cadeias de bens de consumo, também sofreram interferências externas. Claramente, o país não está preparado para responder a essa nova ameaça.

Oportunidades

Até aqui, foram tratados diferentes aspectos das vulnerabilidades do Brasil em consequência da pandemia e da guerra. A partir de 1º de janeiro de 2023, o novo governo poderá transformar os impactos negativos da pandemia e da guerra em oportunidades a serem desenvolvidas e aproveitadas localmente.

• Na área agrícola, o aumento da produção de fertilizantes e seus insumos, além da busca de autossuficiência no trigo, fortaleceriam ainda mais o setor e seria um reforço para a segurança alimentar. É urgente a definição de uma estratégia para o incremento da produção de insumos químicos e fertilizantes no Brasil para reduzir a dependência do mercado externo, além da definição de uma política nacional do trigo e do apoio às iniciativas que visem ao aumento da produção interna em novas áreas, como o norte do Cerrado.

• Na indústria, com a dramática queda em relação ao PIB da indústria de transformação, tornou-se urgente a definição de uma estratégia entre o governo e o setor privado, que poderia ser acelerada pela introdução de redes privadas do 5G e dos novos instrumentos da Inteligência Artificial. O exemplo da França, onde o presidente Macron defende uma autonomia soberana, isto é, a produção de insumos essenciais em algumas cadeias produtivas como vacinas (IFAs), poderia ser adotado pelo governo brasileiro. Se uma política desse tipo fosse implementada, seria o início de um esforço para reindustrializar o parque nacional a partir de setores sensíveis. No tocante a semicondutores, outro produto estratégico, será necessário um esforço conjunto do governo com o setor privado para ampliar a produção nacional. Memorando com a Samsung da Coréia do Sul, prorrogação até 2026 do programa de desenvolvimento tecnológico da indústria de semicondutores (Padis), recursos do Ministério da Economia e do Ministério da Ciência e Tecnologia, criação de GT Interministerial sobre semicondutores e iniciativas do Itamaraty como o seminário ʻA cadeia internacional de semicondutores e o Brasil’ são alguns exemplos do que começa a ser feito. Não será fácil, sobretudo se a instabilidade global persistir e se o mundo voltar a dividir-se. Nesse caso poderão ser criadas restrições a produtos e tecnologia de uso dual com grande prejuízo para países como o Brasil.

• Na área cibernética, empresas privadas, desde bancos até cadeias de bens de consumo sofreram interferências externas. Claramente, o país não está preparado para responder a essa nova ameaça à segurança e à proteção de dados sensíveis. Governo e empresas deveriam juntar esforços e recursos para melhorar a capacidade de defesa contra ataques de hackers à segurança e de proteção de dados sensíveis, o que, como se viu em outros países, pode afetar a infraestrutura de energia e de transporte das cidades.

• Na área espacial, os programas de construção de satélites e de veículos lançadores de satélites, além da utilização do Centro de Lançamento de Alcântara, reforçariam a Base Industrial de Defesa e dariam relevância a um setor hoje secundário e com pouco investimento em que o Brasil teria todo interesse em privilegiar.

• Na área de defesa, o governo terá de definir políticas para fazer face às medidas restritivas que poderão ocorrer nos próximos meses em relação a tecnologias e produtos de uso dual como telecomunicação, equipamentos de TI, produtos eletrônicos, chips, sensores e lasers

• Na área da educação, a revisão da deficiência e uma nova e dinâmica política evitará a dificuldade de formação de mão de obra especializada para responder às novas formas de produção.

• Na área de comércio exterior, a diversificação de mercados e a ampliação dos produtos de exportação, sobretudo industriais e de serviços, reduzirá uma das mais sérias vulnerabilidades do país. O aproveitamento da Área de Livre Comércio na América do Sul e a liderança do Brasil no estabelecimento de cadeias produtivas na região em setores determinados poderia facilitar a integração dos países no subcontinente, reduzindo as vulnerabilidades e aproximando empresas brasileiras das dos vizinhos em seu entorno geográfico.

• Na área mineral, a redução da interferência do Estado com o fim dos monopólios estatais facilitaria a exploração de terras raras, urânio, níquel, entre outros. Um país com mais de 210 milhões de habitantes, com dimensões continentais não pode se dar ao luxo de ignorar essas e outras vulnerabilidades em áreas estratégicas como agricultura, inovação, defesa cibernética, entre outras, que poderão afetar seus interesses concretos e prejudicar seu desenvolvimento. Urge uma discussão franca entre o setor privado e o governo para a definição de estratégias de médio e longo prazos para o Brasil diversificar seus mercados externos para os produtos agrícolas e pecuários, ganhar autonomia em setores essenciais e reduzir ou eliminar a dependência externa em áreas críticas para resguardar a segurança interna do país. A maioria dos países está colocando seus interesses nacionais acima de alinhamentos automáticos com base na ideologia ou na geopolítica. Esse é o caminho mais seguro para o Brasil nos próximos meses e anos.

Presidente e fundador do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (IRICE). É presidente do Conselho Superior de Comércio Exterior da FIESP, presidente da Associação Brasileira da Indústria de Trigo (Abitrigo), presidente do Centro de Defesa e Segurança Nacional (Cedesen) e fundador da Revista Interesse Nacional. Foi embaixador do Brasil em Londres (1994–99) e em Washington (1999–04). É autor de Dissenso de Washington (Agir), Panorama Visto de Londres (Aduaneiras), América Latina em Perspectiva (Aduaneiras) e O Brasil voltou? (Pioneira), entre outros.

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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