26 outubro 2023

Os detratores da jurisdição constitucional – entre represálias e a erosão democrática

Onda de ataques contra o STF arrisca criar situação perigosa para as instituições e a democracia brasileira. Para pesquisador, membros da corte podem exercitar certa contenção enquanto permanecem firmes na defesa da Constituição

Onda de ataques contra o STF arrisca criar situação perigosa para as instituições e a democracia brasileira. Para pesquisador, membros da corte podem exercitar certa contenção enquanto permanecem firmes na defesa da Constituição

A ex-presidente do STF, Rosa Weber, o presidente Lula e o presidente da Câmara, Arthur Lira, durante a cerimônia de posse do ministro Luís Roberto Barroso, no cargo de presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) (Foto: Valter Campanato/Agência Brasil)

Por Felipe Tirado*

Nos últimos meses, houve um grande avanço de declarações e pautas contrárias ao Supremo Tribunal Federal (STF), seus ministros e suas decisões, liderado por movimentos e políticos de extrema-direita, publicamente encabeçado pelo Congresso mais conservador que o país teve em sua história recente.

Parlamentares com pouca atuação efetiva e discurso inflamado, ocasionalmente negacionistas de diversas concepções de ciência e até de direitos fundamentais, têm feito declarações contra a corte e até apoiam alterações normativas para restringir seus poderes. Certamente, não o fazem com a intenção de melhorar o sistema de justiça, mas como represália contra decisões e declarações recentes do tribunal e de seus membros.

‘Reações contrárias à atuação judicial tiveram resultados foram catastróficos para os sistemas de justiça e para seus detratores’

Reações contrárias — ou backlashes — à atuação judicial, similares à que ocorre no Brasil, foram registradas em variados contextos ao longo da história. Em diversas ocasiões, seus resultados foram catastróficos para os sistemas de justiça e, em um segundo momento, para os próprios detratores.

Mais recentemente, ao longo do Governo Bolsonaro, houve um aumento desse tipo de prática que cresceu ainda mais durante a apuração dos crimes perpetrados no 8 de janeiro de 2023. De tal forma, atualmente (e muito infelizmente), a maioria dos ministros já está habituada a movimentações desse tipo — em menor ou maior grau. No limite extremo (de forma completamente inadmissível), ministros sofrem ameaças e agressões físicas, como ocorreu com Alexandre de Moraes e sua família na Itália.

Além das críticas do ex-presidente à corte e represálias por apurações do 8 de janeiro e por outros atos de responsabilização, o avanço de temas de direitos humanos — que alguns podem considerar como sendo pautas progressistas — têm sido alvo dos detratores; como ocorreu após o reconhecimento de uniões estáveis homoafetivas, há mais de doze anos, e com o voto da Ministra Rosa Weber pela descriminalização do aborto até doze semanas de gestação, antes do fim de sua presidência.

Ao atacar o Supremo, seus ministros e decisões, parlamentares imaginam que ganharão mais apoio de suas bases‘

No contexto atual, observamos que pautas contrárias à corte também seriam formas de políticos conservadores se autopromoverem (ou “lacrarem”) durante sua atuação parlamentar — algo que atribuem aos colegas progressistas, mas que praticam diariamente no Congresso, compartilhando em suas redes sociais. Ao atacar o Supremo, seus ministros e decisões, esses parlamentares imaginam que ganharão mais apoio de suas bases (o que, caso ocorra, acaba por gerar um movimento negativo de retroalimentação). Uma lógica similar é operada por líderes parlamentares que visam granjear eleitores conservadores desgarrados.

Entretanto, parece evidente, com diversos exemplos contemporâneos, que os danos gerados por tais ataques podem acabar levando a, nos termos de Robert Merton, consequências não antecipadas ou não intencionais, como a erosão da democracia no país. Seguimos Merton, pois, imaginar que essas são as reais intenções dos detratores, para além de represálias ou autopromoção, nos é inconcebível. Como casos passados já demonstraram amplamente, no país e no exterior, políticos são os primeiros a serem atacados quando as instituições democráticas ruem.

Em relação aos detratores, especialmente os políticos, apenas alguns questionamentos: Com base nos diversos exemplos históricos — e são muitos — e sem a atuação fundamental das cortes na proteção de direitos, qual instituição os defenderá? (Peço que chequem o que normalmente ocorre antes de responder.) Talvez não seria melhor exercer certa contenção no debate e nas propostas? E mais, de forma menos drástica e mais atual, sem a liberdade da Suprema Corte para tomar decisões que parcelas da população consideram impopulares, vocês estarão dispostos a aguentar a pressão suportada pelo tribunal em decisões contramajoritárias?

Em relação às cortes em si, um dos meus objetos de pesquisa há anos, outras observações e até um conselho amistoso podem ser feitos. A literatura da área—doméstica e internacional—aponta há anos para a atenção que juízes (especificamente ministros de cortes supremas) devem ter em relação a possíveis reações contrárias ou até sobre reflexões em relação à forma e ao conteúdo de suas atuações e declarações.

No Brasil, Conrado Hubner tem sido um defensor ferrenho desta prática reflexiva (de contenção) — como fez em sua homenagem recente a Rosa Weber. Entretanto, é possível imaginar que até teóricos com posições bastante diversas, como Ronald Dworkin e Jeremy Waldron, concordariam com certo grau de reflexão (e contenção). Por fim, uma lógica similar é defendida há décadas até mesmo por juízes de cortes supremas, como notoriamente feito por Felix Frankfurter na Suprema Corte dos Estados Unidos.

‘Parece evidente que a movimentação tem objetivo meramente autopromocional-eleitoreiro citado, com poucas chances de prosperar ainda no Congresso Nacional’

Nesse sentido, escolher as batalhas pode ser uma ótima ‘política’ — no sentido amplo e informal do temo — tanto da perspectiva da judicialização quanto declaratória e, por fim, decisional. Não há sentido, por exemplo, em clamar por uma ação do Supremo em relação à proposta de lei que proíbe de uniões homoafetivas, especialmente no estágio atual da proposta (por mais razoável que tal protesto seja). Parece evidente que a movimentação tem objetivo meramente autopromocional-eleitoreiro citado, com poucas chances de prosperar ainda no Congresso Nacional.

Então, pela perspectiva da judicialização, por que acionar o Supremo ou, pela perspectiva da corte, tecer comentários institucionais sobre uma medida patentemente inconstitucional com baixa perspectiva de futuro? Essas críticas e protestos podem ser deixadas para parlamentares (sensatos) opostos à proposta, especialistas ou até colunistas—como faço aqui.

Finalmente, adianto uma possível recomendação, fruto da minha pesquisa de doutorado. Ao longo da investigação, diversos entrevistados—membros seniores do sistema de justiça brasileiro—elogiaram a atuação de Rosa Weber diante do Supremo, como o Conrado fez recentemente. Essa constatação empírica pode servir como uma espécie de conselho para que membros da corte, em determinadas ocasiões, exercitem certa contenção, enquanto permanecem firmes na defesa da Constituição. Essa recomendação também parece ecoar ensinamentos do atual ministro decano, Gilmar Mendes, quando exercia a presidência da corte:

“Não devemos, porém, cair na tentação da onipotência e da onipresença desta Corte em todas as questões de interesse da sociedade. À esfera da política cabe a formulação de políticas públicas, cumprindo o Poder Judiciário, nessa seara, o papel de guardião da Constituição e dos direitos fundamentais, como obstáculos intransponíveis à deliberação política.“

De qualquer forma, parece haver uma série de evidências que suportem o exercício de certo discoursive restraint (imagino ter cunhado o termo aqui, caso contrário, aceito referências). Espera-se que audiências destinatárias de discursos de ministros — no Brasil e no exterior — tenham a capacidade de entender o que é dito, sem que o total desvelamento seja necessário. Nesses casos, vale o ditado “para bom entendedor, meia palavra basta”.

Por outro lado, para os detratores, vale a máxima do “autor” de O Pequeno Príncipe (não poderia deixar essa de fora), Nicolau Maquiavel, que — na versão Pinterest — afirma “tornamo-nos odiados tanto fazendo o bem como fazendo o mal” ou, no original:

“porque, surgindo pelos tempos adversos a necessidade, não estarás em tempo de fazer o mal, e o bem que tu fizeres não te será útil eis que, julgado forçado, não trará gratidão.” Nessa linha, sendo o antagonismo desses praticamente certo, melhor resguardar para que também não seja constante.

https://interessenacional.com.br/edicoes-posts/felipe-tirado-golpes-de-estado-nao-exigem-tanques-paraquedistas-ou-candidatos-a-ditador/

*Felipe Tirado é colunista da Interesse Nacional e do Jota, teaching Assistant, tutor e doutorando em Direito no King’s College London (KCL). Mestre em Direito pelo KCL e pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Pesquisador associado ao Constituições, Crisp/UFMG e ao King’s Brazil Institute


Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

Felipe Tirado é colunista da Interesse Nacional e do Jota, teaching assistant, tutor e doutorando em direito no King’s College London (KCL). Mestre em direito pelo KCL e pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Pesquisador associado ao Constituições, Crisp/UFMG e ao King’s Brazil Institute

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