05 dezembro 2022

Irlanda do Norte completa cem anos sem muito a celebrar

Desavenças políticas levaram à dissolução do governo local e ampliam impasse histórico que foi acirrado pela decisão britânica de sair da União Europeia, o que vem desestabilizando o precário equilíbrio das relações com a Irlanda e o Reino Unido

Desavenças políticas levaram à dissolução do governo local e ampliam impasse histórico que foi acirrado pela decisão britânica de sair da União Europeia, o que vem desestabilizando o precário equilíbrio das relações com a Irlanda e o Reino Unido

Multidão comemora abertura do parlamento da Irlanda do Norte, em 1921 (Foto: W.D. Hogan/CC)

Por Marcel Fortuna Biato*

Na próxima terça-feira, dia 6 de dezembro, a Irlanda do Norte comemora cem anos. Não há, no entanto, muito a celebrar. Desavenças políticas levaram seu governo, o Stormont a ser dissolvido recentemente e não há sequer acordo para convocar eleições para superar essa paralisia. 

O impasse atual remonta a conflitos ainda mais profundos. Os norte-irlandeses vivem numa ilha chamada Irlanda, mas não se consideram irlandeses. Integram o Reino Unido, mas não sabem se são bem-vindos lá. Essa complexa equação tem sua origem num passado tortuoso e ímpar, reunindo um dos poucos episódios de colonialismo na Europa ocidental com uma guerra religiosa cujos ecos ressoam até os dias de hoje. 

O preço da independência da Irlanda, que deixou de ser colônia britânica em maio de 1922, foi a partição da ilha. Constitui-se a Irlanda do Norte como refúgio para os descendentes dos colonos protestantes assentados pela Coroa britânica e reacios a viver sob um governo católico e republicano. 

A Irlanda do Norte nasceu como um Estado-fortaleza onde os protestantes teriam garantida a supremacia econômica e política. Emprego, serviço de saúde e moradia de qualidade eram vedados àqueles católicos que não fugiram para o sul. Em menor escala e selvageria, os protestantes replicaram na Irlanda do Norte a tirania perpetrada pelo Império britânico contra a maioria católica que vivia na Irlanda na época da conquista. Durante séculos, os católicos foram proibidos de aprender sua língua materna, o gaélico, de praticar abertamente sua religião, de exercer cargo público ou de serem eleitos. Esse tratamento, beirando a servidão forçada, culminou na Grande Fome que, em meados do século XIX, levou um milhões de católicos irlandeses a emigrar, e igual número a morrer. 

Há 25 anos, o Acordo de Sexta-Feira Santa assegurou uma trégua na prolongada guerra civil entre nacionalistas (católicos que querem a união das duas Irlandas) e os unionistas (protestantes favoráveis à permanência da Irlanda do Norte no Reino Unido). 

Hoje, no entanto, a roda da história vem se acelerando. Assim como a Alemanha de 1989, forças globais e correntes locais vêm desestabilizando esse precário equilíbrio, com implicações que ultrapassam as fronteiras da Irlanda do Norte. 

Um primeiro fator é o fato de os protestantes terem deixado de ser maioria demográfica na Irlanda do Norte. Como resultado, um dos partidos nacionalistas (Sinn Féin) ganhou as eleições locais de maio último. Vendo seu status privilegiado ameaçado, setores unionistas mais radicais passaram a boicotar a formação do governo sob liderança nacionalista. 

Um segundo elemento é a decadência da economia norte-irlandesa, hoje a mais deprimida dentro do Reino Unido. Em contraste, a Irlanda superou sua histórica pobreza e hoje é um ímã de atração para os vizinhos do norte. Ganha força inevitavelmente o debate, por muitos anos tabu, sobre uma possível reunificação política. 

Um terceiro e correlato aspecto é o ressurgente nacionalista inglês. Com o fim do império e o relativo declínio econômico britânico das últimas décadas, muitos ingleses não mais enxergam vantagens na atual estrutura – sobretudo financeira – do Reino Unido. A Irlanda do Norte, assim como a Escócia e o País de Gales, são vistos como adendos economicamente irrelevantes, mas politicamente adversativos e fiscalmente custosos (10 bilhões de libras anuais só para subvencionar a Irlanda do Norte). O Brexit é manifestação – e fator agravante – desse moderno irredentismo inglês. 

Outro lastro de que desejam desvencilhar-se são as regras e restrições do mercado único europeu, supostamente responsáveis pela anemia econômica britânica. No entanto, a saída do Reino Unido desse bloco comercial exige reimpor controles aduaneiros. No entanto, por uma idiossincrasia histórica, se aplicada à fronteira entre as duas metades da ilha, reacenderia o espectro de violência sectária. Como reconciliar essas demandas opostas? A solução encontrada por Londres e Bruxelas foi permitir que a Irlanda do Norte permanecesse dentro do bloco europeu mesmo com a saída do Reino Unido. O resultado foi uma fórmula esdrúxula pela qual o comércio norte-irlandês com o restante da economia britânica passa a estar sujeito à fiscalização aduaneira por parte da União Europeia. 

Os unionistas entendem, compreensivelmente, que esse remendo só fará acelerar, na esfera econômica e comercial, o crescente distanciamento entre Belfast e Londres. Em resposta, vêm bloqueando a instalação do governo em Belfast, numa tentativa de forçar Londres a renegar o acordo negociado com Bruxelas. 

O impasse atual em Belfast deixa patentes as limitações do acordo de Sexta-Feira Santa. Conteve a violência, mas não assegurou a paz duradoura. Instituiu mecanismo de compartilhamento de poder entre nacionalistas e unionistas, evitando que qualquer dos dois possa vir a governar sozinho. Em contrapartida, dá-lhes individualmente poder de veto, enfraquece as forças de centro e favorece a atual polarização. 

Há indícios alvissareiros de que o novo governo em Londres deseja chegar rapidamente a uma acomodação nesse assunto com a União Europeia. A alternativa é ver ruir todo o acordo do Brexit e ver agravadas as turbulências financeiras que vêm desestabilizando a economia britânica. Isso aceleraria ainda mais a roda da história. Faria ganhar força demandas por soluções mais radicais, inclusive a unificação da ilha – hipótese que os unionistas ameaçam evitar a qualquer preço, inclusive com um retorno à violência. Trata-se de cenário preocupante, ainda mais à luz dos turbulentos antecedentes que há séculos marcam a vida na Irlanda do Norte.


*Marcel Fortuna Biato é diplomata e embaixador do Brasil na Irlanda. É mestre em sociologia política pela London School of Economics, do Reino Unido. Foi assessor especial da Presidência da República de 2007 a 2010 e embaixador na Bolívia de 2010 a 2013. Atuou também como representante na Missão Permanente do Brasil junto à Agência Internacional de Energia Atômica em Viena, na Áustria.

Editor-executivo do portal Interesse Nacional. Jornalista e doutor em Relações Internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. Mestre pelo KCL e autor dos livros Brazil’s international status and recognition as an emerging power: inconsistencies and complexities (Palgrave Macmillan), Brazil, um país do presente (Alameda Editorial), O Brazil é um país sério? (Pioneira) e O Brasil voltou? (Pioneira)

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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