Mudança de governo, Lava Jato e intervenção federal: alguns aspectos geopolíticos
Nos últimos anos, o Brasil vem passando por transformações drásticas e súbitas. A deposição da presidente Dilma Rousseff, a profunda crise do sistema de representação propiciada, entre outros fatores, pela operação Lava Jato, a célere implantação de uma agenda economicamente conservadora e socialmente regressiva e, mais recentemente, a aberta militarização da Segurança pública, que trouxe de volta as forças armadas ao cenário nacional, configuram quadro político radicalmente distinto daquele que havia predominado até 2014.
Do nosso ponto de vista, essa nova realidade política representa clara ruptura com o status quo político-institucional que havia se criado com a Constituição de 1988.
No Brasil pós-ditadura, as disputas em geral envolveram forças de esquerda e centro-esquerda contra forças de centro-direita e direita que competiam pelo voto do centro político e dos indecisos. Havia uma característica marcante nessas disputas: todas as forças davam apoio explícito à consolidação da democracia no Brasil.
Configurou-se, assim, uma espécie de pacto implícito pelo qual todas as forças políticas relevantes reconheciam a democracia como valor universal e imprescindível para fazer avançar o desenvolvimento do país. Mesmo com as limitações estruturais óbvias da democracia brasileira, que alijava a maior parte da população de direitos sociais e políticos básicos, havia essa disposição praticamente consensual para aprofundá-la e consolidá-la, sentimento natural num país que havia acabado de sair de décadas de ditadura.
A chegada do PT ao poder, nas eleições de 2002, representou teste significativo para as instituições democráticas consolidadas após a Constituição de 1988. Apesar das experiências trágicas do segundo governo de Getúlio Vargas e do governo João Goulart, muitos acreditaram que a democracia brasileira havia amadurecido o suficiente para lidar com um governo, que, na prática, era bastante moderado e conciliador, dedicado à promoção da inclusão social e à erradicação da pobreza e das desigualdades, sem afetar, porém, os interesses das classes dominantes.
Por um breve momento histórico parecíamos emular, mutatis mutandis, as experiências exitosas da socialdemocracia europeia clássica. Houve maciça ascensão social, erradicação da pobreza extrema, aumento da participação dos salários no PIB, diminuição da informalidade laboral e ampliação do acesso à Educação. Ao mesmo tempo, eliminou-se a vulnerabilidade externa da Economia e iniciou-se um ciclo de crescimento baseado na dinamização do mercado interno. Assim, a nossa democracia aparentava ter amadurecido e ser capaz de lidar e de negociar com os conflitos distributivos inerentes às economias capitalistas.
Contudo, esse quadro mudou drasticamente quando a crise começou a afetar os interesses de nossas oligarquias e dos seus setores políticos aliados. Num átimo, a ilusão com o amadurecimento da democracia brasileira se desfez com o impeachment sem crime de responsabilidade. Rompeu-se com a alternância democrática entre as forças políticas e com o pacto político-institucional plasmado na Constituição de 1988.
Tal ruptura permitiu que fosse implantada ampla agenda econômica e social conservadora, a qual dificilmente teria sido aprovada pelas urnas, tal como ficou demonstrado no pleito de 2014, que elegeu a agenda oposta de continuidade do processo de distribuição de renda e de combate à pobreza e à exclusão. Ressaltam-se, nessa agenda conservadora implantada à margem da soberania popular, largas medidas de privatização e desnacionalização de “tudo o que for possível” e mudanças significativas, tanto no âmbito da Política externa quanto na área da política de Defesa.
Paralelamente, a chamada operação Lava Jato, que teve papel central na geração do clima político propício ao golpe parlamentar de 2016, contribuiu para erodir a legitimidade do sistema de representação e instituir crescente Estado de exceção, necessário à imposição de uma agenda bastante impopular.
Tal quadro de ruptura institucional e democrática, agressões aos direitos humanos e à soberania popular e crise do sistema de representação foi agravado, recentemente, pela intervenção militar no Rio de Janeiro, que traz de volta à cena nacional as forças armadas, numa tentativa de buscar legitimidade para um governo com alta rejeição e de resolver o complexo problema da Segurança pública pela via autoritária.
Essas profundas, céleres e drásticas mudanças foram ocasionadas, fundamentalmente, por fatores econômicos, sociais e políticos internos. Apesar disso, não podemos descartar, a priori, que existam também interesses internacionais empenhados na desestabilização da democracia do Brasil e na afirmação da agenda econômica conservadora propiciada pelo golpe de 2016. Tampouco se deve descartar liminarmente a hipótese de que haja interesses geopolíticos de outras nações que influenciem operações como a da Lava Jato e a decisão de usar as forças armadas brasileiras no combate à criminalidade.
Ingerências externas em assuntos internos
Sempre que se tenta fazer essa discussão, muitos tentam desqualificá-la, a priori, como mera ‘teoria da conspiração’. Isso não é adequado. Afinal, a história da América Latina e do Brasil mostra que as ingerências externas em assuntos internos foram, e ainda são, abundantes em nossa região.
Em estudo publicado na Harvard Review of Latin America,[1] em 2005, menciona-se que, apenas entre 1898 e 1994, os EUA conseguiram êxito em mudar governos da região 41 vezes, o que dá uma média de uma mudança de governo a cada 28 meses. Ressalte-se que, nesse estudo publicado na Universidade de Harvard, não se analisam as possíveis intervenções recentes, como as ocorridas em Honduras (2009), Paraguai (2012) e Brasil (2016).
Há, pois, um longo histórico de intervenções, no qual se inclui o golpe militar brasileiro de 1964, que recomenda análises mais abrangentes e aprofundadas sobre o golpe parlamentar de 2016 e, mais especificamente, sobre a Lava Jato e seu modus operandi, bem como sobre a intervenção militar no Rio de Janeiro. Evidentemente, não é intenção deste artigo fazer análise abrangente dessas possíveis implicações. Queremos aqui apenas listar algumas evidências que apontam para a existência de influências externas na conformação desses fenômenos.
Ingerência externa na Lava Jato e na consequente perseguição judicial (lawfare) contra o ex-presidente Lula
Em geral, as intervenções dos EUA nos assuntos internos dos países da região se dão de forma indireta. Assim, das 41 intervenções exitosas mencionadas no estudo publicado em Harvard, só 17 foram diretas, mediante uso aberto da força.
No caso das intervenções indiretas, o mecanismo mais usual da ingerência é o da ‘cooperação’, em diversas áreas. Com efeito, os mecanismos de cooperação, aparentemente inocentes, prestam-se, muitas vezes, a atividades de cooptação ideológica e política e de influência indevida em assuntos internos de outros países.
Em relação à guerra judicial (lawfare) contra o ex-presidente Lula e ao próprio golpe de 2016, crescem as evidências de que houve e há ingerências norte-americanas nos acontecimentos, especialmente mediante a denominada operação Lava Jato, propiciada por uma cooperação bilateral judicial entre Brasil e EUA. De fato, já há a forte suspeita, consubstanciada em fatos, de que a operação Lava Jato foi politicamente instrumentalizada, de forma a produzir efeitos objetivamente nocivos no Brasil.
No campo econômico, tal operação contribuiu para destruir a cadeia de petróleo e gás, ensejou a venda, a preços aviltados, das reservas do pré-sal, solapou a nossa competitiva construção civil pesada e comprometeu projetos estratégicos na área da Defesa, como o relativo à construção de submarinos. Conforme estudo da consultoria GO Associados, a Lava Jato teria ocasionado uma diminuição do PIB da ordem de 2,5%, em 2015, contribuindo para desempregar centenas de milhares de brasileiras e brasileiros.
No campo político, a operação Lava Jato teve papel significativo no golpe parlamentar de 2016, que depôs a presidenta Dilma Rousseff, sem a devida comprovação do cometimento de qualquer crime de responsabilidade, como exige a Constituição. Ademais, tal operação vem tendo destaque na denominada guerra judicial contra o ex-presidente Lula, a qual visa ao objetivo político de impedir a sua candidatura para as eleições de 2018.
Pois bem, essa operação foi gerada no âmbito de uma estreita cooperação judicial bilateral entre EUA e Brasil. O aprofundamento dessa cooperação judiciária e de segurança entre Brasil e EUA começou a se dar na década de 1990, mais especificamente ao longo do governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (1995-2002).
Datam dessa época a abertura de escritórios da DEA e do FBI no Brasil, órgãos que passaram a cooperar ativamente com a Polícia Federal brasileira e outros órgãos, com investimentos vultosos em capacitação e treinamento de nossos policiais. Tais investimentos criaram uma inevitável relação de dependência e possibilitaram a progressiva incorporação da agenda da ‘guerra às drogas’ e outros temas de interesse maior dos EUA aos objetivos da Segurança pública do Brasil. Também data dessa época o aprofundamento da cooperação entre as procuradorias de ambos os países, não apenas visando ao combate ao narcotráfico, mas outros delitos internacionais, como corrupção, evasão de divisas e lavagem de dinheiro.
Com o objetivo de fundamentar juridicamente essa cooperação, foi firmado, em 1997, o ‘Acordo de Assistência Judiciária em Matéria Penal entre o Governo da República Federativa do Brasil e o Governo dos Estados Unidos da América’.
Esse acordo ditou regras estritas para a cooperação. Entre elas, destaca-se a do artigo 2 do acordo, a qual prevê que “cada Parte designará uma ‘autoridade central’ para enviar e receber solicitações em observância ao presente acordo e que, para a República Federativa do Brasil, a autoridade central será o ministério da Justiça. Também se deve salientar a do artigo 3, o qual prevê que a assistência poderá ser negada, caso o atendimento à solicitação prejudicar a segurança ou interesses essenciais semelhantes do Estado Requerido”.
No entanto, essas regras previstas no acordo vêm sendo sistematicamente violadas, nas atividades de cooperação. Isso foi dito publicamente por altas autoridades norte-americanas envolvidas nessas atividades. Tais ‘confissões’ mostram não apenas que as regras do acordo vêm sendo desrespeitadas, mas também que as autoridades norte-americanas conduziram a construção da Lava Jato e o processo relativo ao apartamento triplex.
Com efeito, em manifestações públicas proferidas em 19 de julho de 2017, o Sr. Kenneth Blanco, então vice-procurador geral adjunto do departamento de Justiça dos Estados Unidos (DOJ), e o Sr. Trevor Mc Fadden, então subsecretário geral de Justiça e adjunto interino daquele país, explanaram sobre cooperação baseada em ‘confiança’[2] e, por vezes, fora dos ‘procedimentos oficiais’, realizada entre as autoridades norte-americanas e os procuradores da República da Lava Jato.
Afirmou o procurador Blanco que “tal confiança, como alguns aqui dizem ‘confiança’, permite que promotores e agentes tenham comunicação direta quanto às provas. Dado o relacionamento íntimo entre o departamento de Justiça e os promotores brasileiros, não dependemos apenas de procedimentos oficiais como tratados de assistência jurídica mútua, que geralmente levam tempo e recursos consideráveis para serem escritos, traduzidos, transmitidos oficialmente e respondidos” (grifos nossos).
Ora, tal cooperação informal, feita com base em ‘relacionamento íntimo’, se dá à revelia do texto do acordo, pois ele prevê, como vimos, que tudo teria de ser aprovado e conduzido pelo ministério da Justiça (MJ). Mas, nem sequer há qualquer registro oficial mostrando que o MJ tenha tomado conhecimento dessas atividades informais. Assim, alguns juízes e procuradores, principalmente os da Lava Jato, não prestam contas a ninguém. Ignoram a norma do acordo com os EUA. Atuam conforme suas idiossincrasias pessoais e ideológicas, numa espécie de cooperação pessoal, que não tem sustentáculo jurídico.
Aqui é necessário fazer uma observação importante. A ordem jurídica interna do Brasil funciona com base em princípios diferentes da ordem jurídica interna norte-americana. Em nosso Direito positivo, o agente público não é apenas proibido de fazer o que a lei veda. Ele é proibido de fazer tudo aquilo que a lei não preveja de forma explícita. Ele só pode atuar no marco estreito da letra da lei. Ora, essa cooperação informal, fora das vias oficiais, viola o texto do acordo firmado com os EUA, o qual, na ordem jurídica interna do Brasil, tem força de lei. Trata-se, portanto, de uma cooperação ilegal.
Ademais de violar abertamente o texto do acordo de cooperação, tais atividades informais agridem também princípios constitucionais. A Constituição Federal brasileira estipula que é prerrogativa constitucional exclusiva do presidente da República celebrar tratados internacionais e conduzir as relações externas do país. Trata-se de princípio comezinho das relações internacionais, que exige que a voz do país no exterior seja uma só. Não se admite que um país tenha vários órgãos independentes que determinem políticas externas distintas. Por tal razão, qualquer atividade de cooperação teria de ser ao menos comunicada ao Itamaraty e por ele supervisionada. Obviamente, isso não acontece. Desse modo, nossos procuradores e juízes estabeleceram, em desafio claro à Constituição, política externa específica e independente para com os EUA.
As autoridades nacionais e o Congresso Nacional do Brasil nem sequer tomaram conhecimento, por vias oficiais, dos processos abertos nos EUA contra empresas brasileiras, o que causa muita estranheza. Alguns argumentam que os processos nos EUA contra empresas brasileiras (Embraer, Petrobras etc.) decorrem do fato de que essas firmas abriram seu capital nas bolsas daquele país, submetendo-se, automaticamente, à legislação de mercado de capitais operada pela Securities and Exchange Commission.
Mas, isso é apenas uma meia verdade. As multas geradas pelos norte-americanos às empresas brasileiras somam até agora cerca de $7 bilhões de reais. As maiores da história. Trata-se de multas por delitos cometidos no Brasil por pessoas e empresas brasileiras. Como agravante, o Tesouro é o principal acionista da empresa mais demandada, a Petrobras.
Referências bibliográficas
- https://revista.drclas.harvard.edu/book/united-states-interventions
- Vídeo1 – pronunciamento, com legendas, de Kenneth Blanco, então vice-procurador geral adjunto do Departamento de Justiça dos Estados Unidos (DOJ)- https://youtu.be/tbPLM5onjLk, aos 8m8s.
- Vídeo1 – pronunciamento, com legendas, de Kenneth Blanco, então vice procurador geral adjunto do Departamento de Justiça dos Estados Unidos (DOJ) Disponível em: https://youtu.be/tbPLM5onjLk, aos 8m8s.
- Disponível em: http://operamundi.uol.com.br/dialogosdosul/wikileaks-eua-criou-curso-para-treinar-moro-e-juristas/15072017/ Vídeo 4 .pronunciamento com legendas de Kenneth Blanco, então vice procurador geral adjunto do departamento de Justiça dos Estados Unidos. Disponível em:
- Vídeo1 – pronunciamento, com legendas, de Kenneth Blanco, então vice procurador geral adjunto do Departamento de Justiça dos Estados Unidos (DOJ Disponível em: https://youtu.be/tbPLM5onjLk, aos 9m47s.
- Disponível em: https://www.revistaforum.com.br/celso-amorim-tenho-medo-que-as-forcas-armadas-voltem-atuar-como-partido-politico/
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