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Interesse Nacional
03 abril 2020

O Brasil e a Guerra Tecnológica EUA-China

Em 2020, o governo brasileiro deverá tomar decisão altamente estratégica com profunda repercussão na vida das pessoas e no setor produtivo. Na área tecnológica, colocará o país no caminho de interesses conflitantes dos EUA e da China. Refiro-me à licitação da rede 5G para todo o país e à participação da empresa chinesa Huawei, que dispõe de equipamentos de alta qualidade e de baixo custo, quando comparados com a Ericsson e a Nokia.
A emergência da China como uma potência econômica, comercial e tecnológica, nos últimos 25 anos, fez com que se acirrasse a disputa pela hegemonia global no século XXI. Há alguns anos, estamos acompanhando a crise comercial entre os EUA e a China e agora começa a confrontação tecnológica entre as duas superpotências.
Questão Huawei
Visando afastar a concorrência da empresa chinesa mais avançada tecnologicamente do que as ocidentais, os EUA invocam questões de segurança das redes 5G da Huawei, que poderiam colocar em risco os sistemas de inteligência dos países. Visto que a empresa deve lealdade ao governo de Beijing e deve se reportar aos serviços de inteligência chineses.  Essas alegações ocorrem no momento em que a própria CIA divulga informações sobre a Crypto, empresa suíça que os EUA utilizaram com esses mesmos objetivos durante décadas durante a guerra fria, inclusive no Brasil.
Situação em alguns países
O equipamento 5G da Huawei é reconhecido como sendo de baixo custo e alta qualidade. É usado em mais de 50 contratos em 30 países, entre os quais Itália, Portugal e Espanha.
O Reino Unido recebeu recentemente missão de alto nível do governo de Washington com o objetivo de evitar uma decisão favorável à Huawei. As autoridades britânicas resistiram às pressões dos EUA. O governo britânico anunciou que a decisão de utilizar a tecnologia da Huawei é aceitável. O primeiro ministro Boris Johnson disse que “o público britânico merece ter acesso à melhor tecnologia possível. Queremos colocar todo mundo na banda larga em gigabit. Se há oposição a uma marca ou outra, quem se opõe tem de dizer qual é a alternativa”.  O chefe do MI5 (agência de inteligência britânica), Andrew Parker, declarou que “não tinha razão para pensar que usar a tecnologia da Huawei ameaçaria a parceria com os EUA”, sugerindo que o Reino Unido estará pronto a dar luz verde para a empresa chinesa.
Na Alemanha, a primeira ministra Angela Merkel havia decidido manter os contratos com a Huawei, mas está sob forte pressão dos EUA para seu país adotar a tecnologia europeia da Ericsson ou Nokia, mais cara e mais demorada. O governo chinês deixou claro que haverá retaliação e que as exportações de automóveis alemães poderão sofrer as consequências.
Apesar da oposição de Washington, a União Europeia decidiu não barrar a Huawei e elaborou diretrizes sobre a mitigação dos riscos de segurança nas futuras redes de 5G. Reino Unido (com restrições na participação em áreas sensíveis), Alemanha e Índia, segundo mercado da internet móvel no mundo, Espanha e Itália liberaram testes e fornecimento de equipamentos 5G pela empresa chinesa. Apenas Japão, Austrália e Nova Zelândia, membros do grupo “Five Eyes” de inteligência, com Washington e Londres, cederam à pressão dos EUA e proibiram a entrada da companhia chinesa.
O governo norte-americano intensificou o lobby contra a entrada da companhia chinesa também no mercado brasileiro. Donald Trump conversou com o presidente Bolsonaro sobre o assunto, e o secretário de Comércio, Wilbur Ross, disse publicamente que o tema é do conhecimento das autoridades brasileiras e reiterou que a vulnerabilidade das redes 5G pode afetar o sistema de segurança dos países e a cooperação com os EUA. Na mesma linha, o subsecretário para Comunicações do governo norte-americano e representantes do Comitê de Investimento Estrangeiro (CFIUS) alertaram as autoridades em Brasília que os EUA poderão reavaliar o compartilhamento de informações nas áreas de inteligência e de defesa, caso se opte pela empresa chinesa para atuar na rede móvel 5G no Brasil.
O Brasil e a Huawei
Segundo estudo da Boston Consulting Group, para cada 1% de aumento da penetração da banda larga, o PIB brasileiro crescerá 0,7%.
A empresa chinesa está instalada no Brasil há mais de 20 anos e anunciou a construção de fábrica de celulares em São Paulo. Segundo conversas mantidas com dirigentes das operadoras de comunicação brasileiras, a empresa chinesa tem hoje uma forte presença no mercado brasileiro e uma mudança de tecnologia causaria muitas dificuldades para o setor. A presença da Huawei no Nordeste é crescente e se desenvolve através do Consórcio do Nordeste.
A questão vai se colocar no corrente ano, quando está prevista a licitação para a definição dos padrões a serem aplicados no Brasil. Dependendo das regras a serem anunciadas pelo governo brasileiro, a Huawei poderá participar ou não.
Recentemente, foram dados passos concretos para permitir a realização da licitação. Depois de acordo entre as TVs e as Teles, o governo estabeleceu as diretrizes para o leilão da quinta geração da tecnologia de telefonia móvel com ampliação da oferta. Não se trata de escolha de um padrão de uma ou outra empresa. O padrão é global. O edital da Anatel não impôs qualquer restrição à tecnologia 5G da Huawei a ser utilizada pelas operadoras de telefonia, como a Vivo, TIM, Claro e Oi. Foi também aprovada a abertura de consulta pública para discutir essa questão.
Durante recente visita à China, o presidente Bolsonaro disse que vai aguardar a melhor oferta no leilão e ouviu a promessa de que o Brasil receberia investimentos na área de tecnologia da informação. O vice-presidente Hamilton Mourão disse que nosso país não tem receios em relação à segurança e que o Brasil não vetaria a participação da Huawei. O ministro Marcos Pontes, da Ciência, Tecnologia e Comunicações, disse que não haverá qualquer tipo de barreira à empresa chinesa e que a decisão do governo britânico pode ser uma referência para o Brasil. O Itamaraty estaria se opondo para não se contrapor a Trump. No jantar em Mar-a-Lago, no dia 7 de março, na Flórida, Trump deve novamente ter feito pressão junto a Bolsonaro para o Brasil não aceitar a participação da Huawei.
O atual governo deverá, assim, tomar uma das decisões mais importantes até aqui pelas implicações estratégicas e de política externa e comercial.
A licitação da Anatel deveria ser mantida para 2020 e efetivada logo que possível. O adiamento para 2021 não mudará o dilema do governo brasileiro. O atraso na decisão tornará mais demorada a incorporação das novas tecnologias de inteligência artificial e internet das coisas, por exemplo, para a modernização da indústria brasileira. A postergação também terá efeito negativo sobre os investimentos e a competitividade da economia nacional. Segundo estudos da Fiesp, apenas 1,3% das indústrias podem ser consideradas como 4.0, o que demonstra nosso atraso tecnológico nesse setor.
Conclusão
A disputa EUA-China pela hegemonia tecnológica global colocará o Brasil em outros dilemas no futuro e a melhor atitude seria, desde o início, manter uma posição de equidistância das duas superpotências e colocar os interesses brasileiros em primeiro lugar.
Dificilmente os EUA retaliarão o Brasil pela decisão que for tomada. Diferentemente do Reino Unido e da Alemanha, o Brasil não participa de qualquer rede de inteligência e não tem acesso a informações privilegiadas dos EUA. Por outro lado, o Brasil poderá ser afetado, caso a China decida reorientar suas importações de produtos agrícolas nacionais.
Dada a importância tecnológica do 5G para o desenvolvimento sustentável, as economias de baixa renda em todo o mundo, entre as quais o Brasil, não podem deixar de examinar essa questão do ponto de vista de seu exclusivo interesse e com visão estratégica de médio e longo prazos. A aproximação com Trump e a visão ideológica não deveriam influir em uma decisão que afetará o futuro do país.
Do ponto de vista da negociação global, o Brasil poderia examinar a possibilidade de pedir à Huawei a assinatura de um acordo de não espionagem (no spy agreement), que foi oferecido pela empresa chinesa ao governo britânico. Para tornar todo o sistema mais transparente, talvez seja o caso de ser negociado um acordo de monitoramento independente pela ONU como parte de um sistema global de telecomunicações, a fim de restringir eventuais atividades ilegais. A guerra tecnológica deveria ser superada pela negociação diplomática a fim de regular um setor tão sensível, de interesse de todos, para a defesa dos interesses e soberania nacionais.

Presidente e fundador do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (IRICE). É presidente do Conselho Superior de Comércio Exterior da FIESP, presidente da Associação Brasileira da Indústria de Trigo (Abitrigo), presidente do Centro de Defesa e Segurança Nacional (Cedesen) e fundador da Revista Interesse Nacional. Foi embaixador do Brasil em Londres (1994–99) e em Washington (1999–04). É autor de Dissenso de Washington (Agir), Panorama Visto de Londres (Aduaneiras), América Latina em Perspectiva (Aduaneiras) e O Brasil voltou? (Pioneira), entre outros.

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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