O dilema da neutralidade na política externa: paralelismo entre Vargas e Lula
A política externa brasileira (PEB) do governo Lula enfrenta hoje o dilema da neutralidade entre uma superpotência com sinais de declínio da supremacia (EUA) e outra em ascensão econômica e geopolítica (China). Desafio semelhante viveu o país 80 anos atrás, quando Getúlio Vargas praticou por alguns anos política de equidistância entre os Aliados da II Guerra Mundial e as potências do Eixo. A neutralidade de Vargas, rompida no momento correto, rendeu extraordinários frutos – econômicos (indústria siderúrgica) e geopolíticos (democracia interna com autonomia externa). Que benefícios poderão advir da neutralidade de Luiz Inácio Lula da Silva? Vargas soube arbitrar entre um chanceler favorável à democracia (Oswaldo Aranha) e um líder militar identificado com o fascismo (general Góes Monteiro). Diferentemente de Vargas, o entorno decisório de Lula prioriza a aproximação com uma das superpotências, sendo pouco representativo da atual relação binária do poder mundial. Que consequências para o país poderão advir dessa condição?
O atual tensionamento do conflito entre as duas superpotências inexistia 20 anos atrás. Os EUA estimulavam, então, a inserção internacional da China, e essa seguia o script de Deng Xiaoping: abertura e crescimento econômico com low profile político.
Entretanto, nas últimas décadas, os conflitos entre as duas superpotências ganharam virulência. As democracias nos países avançados são ameaçadas por populismos de corte autoritário alimentados por modesto crescimento econômico. Em contraste, o modelo chinês revela exuberância econômica, fechamento político e crescente influência internacional. A crise das democracias representativas se torna mais aguda e o questionamento do modelo liberal, mais amplo.
Isso se acentuou com a ascensão de Trump, sob o signo de crescente competição econômica, tecnológica, estratégica e geopolítica com a China; e de Xi Jinping, arquiteto de maior autoritarismo doméstico e de projeto geopolítico hegemônico anti-norte-americano. A invasão russa da Ucrânia exacerbou essas rivalidades e produziu uma nova clivagem: defensores da Ucrânia, próximos de EUA e União Europeia versus aliados da Rússia, reduzida a virtual satélite geopolítico da China. É nesse mundo fraturado que o Brasil se declara neutro.
■ Histórico de não alinhamento
A PEB tem exitoso histórico de não alinhamento. No pós-guerra foi possível construir uma trajetória identificada com as aspirações legítimas dos países em desenvolvimento em favor de uma ordem econômica internacional mais justa e de um papel político de distanciamento em relação à bipolaridade da Guerra Fria. Em grande medida deu certo. O Brasil mereceu reconhecimento como uma potência média regional com interesses globais, na definição clássica de Celso Lafer.
Com a queda do Muro de Berlim, o desmembramento da União Soviética e o auge do liberalismo, sob a égide dos EUA sem rival, o país soube preservar uma PEB regida pelos paradigmas da autonomia e do desenvolvimento. Apesar das turbulências políticas internas, do impeachment de dois presidentes, o país se beneficiou da globalização, do crescimento exponencial da China e de uma ordem internacional liberal. O Brasil soube construir estabilidade político-econômica interna e credibilidade internacional no período FHC, seguida de avanços sociais, crescimento econômico e projeção internacional na era Lula. Os governantes seguintes, com distinta intensidade, protagonizaram, todos, enorme retrocesso para o país, com clímax no caos político-institucional de Bolsonaro.
Nessa sequência ladeira abaixo, a eleição de Lula simbolizou resgate da democracia e alívio para o país. No plano externo era um Brasil de volta ao concerto das nações, ao multilateralismo, à defesa da democracia. Mas um novo ponto de inflexão passou a desafiar a PEB – a guerra da Ucrânia, a exacerbação da clivagem EUA-UE versus China-Rússia, e o anúncio de uma política de neutralidade do Brasil. Será que a experiência da diplomacia pendular de Vargas, na década de 1940, do jogo duplo entre Aliados (EUA) versus potências do Eixo (Alemanha), pode esclarecer alguns dilemas inerentes à declarada neutralidade de Lula no contexto da rivalidade EUA versus China?
Os EUA foi o principal parceiro comercial do Brasil desde as últimas décadas do Império, enquanto a Alemanha tinha conosco intercâmbio pouco relevante. Tal condição mudou após a crise de 1929, com a debâcle do café e as grandes plantações de algodão em São Paulo. Por meio de acordo comercial com a Alemanha, o Brasil pôde compensar, com exportações de algodão para esse mercado, as perdas com o café. Assim, durante alguns anos, graças ao acordo que permitia uso de moeda nacional, a Alemanha suplantou os EUA como nosso primeiro parceiro, inclusive com compras de equipamento militar para nossas Forças Armadas. Vargas não cedeu às pressões norte-americanas contrárias ao acordo Brasil-Alemanha.
Nesse contexto, um paralelo Vargas-Lula é natural. Como a Alemanha dos anos 1930, a China da primeira década do século XXI também foi a grande potência emergente que suplantou os EUA como nosso principal parceiro. A China absorve hoje mais de 30% de nossas exportações, em contraste com os EUA, responsáveis por menos de 10%. A Alemanha implantou conosco um comércio de compensação em moeda local, muito semelhante ao atual projeto sino-brasileiro de dispensar o uso do dólar no nosso intercâmbio com a China.
Mas o paralelismo entre a sedução de Vargas pela Alemanha e a aposta de Lula na China transcende o universo da economia e se projeta na política. Após o fracasso do experimento democrático da República de Weimar e da devastadora hiperinflação, Hitler recuperou a economia, forjou o totalitarismo, implantou brutal repressão e transformou uma Alemanha emergente em potência econômica e militar expansionista. Enquanto isso, o fascismo italiano seguia padrão semelhante, alicerçado no crescimento econômico e na ordem política.
■ A crise das democracias
Analogias entre ontem e hoje continuam a fazer sentido. Atualmente, a crise das democracias representativas (EUA e UE) contrasta com o vigor econômico e a irradiação geopolítica da China. Nos anos 1930, uma Europa ainda ferida pela Grande Depressão se sentia inferiorizada diante dos regimes totalitários. Hitler na Alemanha e Mussolini na Itália seduziam governantes e se replicavam, com adaptações, em outras partes do mundo, como no corporativismo da Argentina de Perón e no trabalhismo do Estado Novo de Vargas.
Nesse contexto internacional, era natural para Vargas dar maior vigor ao comércio e ao diálogo político com a potência emergente (Alemanha), como de fato aconteceu. Atitude semelhante, também vista com naturalidade, teve Lula em relação à China 20 anos atrás. A aproximação de Vargas com a Alemanha não era o ideal para os EUA, mas não chegava a ameaçar sua hegemonia. Isso fica claro no seguinte trecho de memorando do Departamento do Tesouro norte-americano de 1938, como revela Rubens Ricúpero em seu livro A Diplomacia na Construção do Brasil. “O Brasil é uma ditadura mais aceitável que as outras (latino-americanas)”. O mesmo se podia dizer da forte inclinação de Lula, em 2003, para aprofundar vínculos com a China e integrar o BRICS. Essa percepção era vista com naturalidade, porque EUA e China tinham, então, muitos pontos de interesse comum e poucas áreas de rivalidade.
Entretanto, novas circunstâncias alteraram esse cenário de poucos conflitos entre EUA e China: os resultados assimétricos da globalização (ganhos da China e perda das economias de mercado); a crise econômica de 2008-9; a pandemia da COVID-19; a fragilização das democracias representativas; e o surgimento de democracias iliberais associadas a regimes populistas. Apesar dessas sinalizações de novos rumos, uma aproximação mais intensa entre Brasil e China não chegava a ameaçar nossas relações com a potência hemisférica.
Se esses novos pontos de inflexão alteraram as condições atuais do relacionamento do Brasil com as superpotências, em comparação com a primeira década dos anos 2000 (80 anos atrás), também a política de Vargas em relação às potências (EUA e Alemanha) começou a se transformar, com a eclosão da II Guerra Mundial. Foi então que surgiu a diplomacia pendular ou o jogo duplo, com alternância de apoio ora para os EUA, ora para a Alemanha. A segunda inflexão foi a entrada dos EUA na guerra, após o ataque a Pearl Harbour. As pressões norte-americanas para o Brasil apoiar os Aliados no conflito se intensificaram em 1941; dois anos depois o Brasil rompia relações com a Alemanha e em seguida enviava contingente da Força Expedicionária Brasileira (FEB) para a Itália.
Assim, no caso de Vargas, o início da II Guerra Mundial, o ataque a Pearl Harbour e, finalmente, a entrada dos EUA no conflito foram os fatos geradores do jogo duplo e de seu término. No caso de Lula, também foi a invasão russa da Ucrânia e a consequente reação de EUA, União Europeia e OTAN o ponto de inflexão na relação do Brasil com EUA e China, que assumiu a forma de uma declarada política de neutralidade diante do conflito.
As atitudes de Vargas diante das reações à sua política pendular em relação aos EUA e Alemanha, no início dos anos 1940, guardam também muita semelhança, e algumas diferenças, com as hesitantes afirmações e negativas de Lula sobre nossa declarada neutralidade na guerra da Ucrânia.
As diversas dimensões dos equívocos e acertos do passado talvez ajudem a melhor avaliar o presente e eventuais desdobramentos.
A primeira dimensão diz respeito ao círculo decisório dos dois presidentes. Embora o Estado Novo fosse um regime autoritário e repressor, no âmbito da política externa havia pluralismo. Prevaleciam figuras com matizes ideológicos distintos e até antagônicos, como um liberal democrata – o Chanceler Oswaldo Aranha, e seu antípoda, um nacionalista autoritário simpatizante do fascismo – o Chefe do Estado Maior das Forças Armadas – general Góes Monteiro. Assim, Vargas dispunha de um repertório amplo de visões favoráveis e contrárias a ambos os lados do conflito.
Em contraste, a política externa de Lula, nos dois primeiros e no atual mandato, é dominada pela figura do chanceler Celso Amorim. Mesmo na atual função de assessor especial da Presidência da República, é hoje reconhecido por ampla maioria dos analistas como o chanceler de fato. Sua cosmovisão prioriza, antes de tudo, a projeção internacional do país como grande potência emergente, destinada a um papel central nas mais relevantes questões internacionais. Seu êxito em projetar o Brasil internacionalmente, nos dois primeiros mandatos de Lula, tende a condicionar a atual PEB a reeditar aquela trajetória do passado. Seu hiperfoco no protagonismo internacional do país coloca em plano secundário a visão da diplomacia como instrumento da defesa do interesse nacional.
■ Os riscos da atual PEB
Assim, nessa vertente inicial de reflexão sobre os vínculos ideológicos da PEB de Vargas e de Lula, o primeiro surge como o árbitro final de uma diplomacia dotada de pluralismo entre seus assessores mais diretos. Isso favorecia o contraditório e a mudança de rumos, como de fato aconteceu, com o abandono do jogo duplo entre EUA e Alemanha, e a participação da FEB, junto com os Aliados, no front da Itália. Diferentemente desse cenário, a hegemonia do ex-chanceler Celso Amorim, ao estimular a reedição do passado, dificulta mudança de rumos e eleva os riscos de praticar uma política externa que, embora tenha tido vitórias no passado, pode revelar-se anacrônica e equivocada no presente. A principal razão para esse diagnóstico reside no tensionamento da rivalidade EUA – China que, inexpressivo há 20 anos, assume hoje a centralidade das relações internacionais.
Celso Amorim deverá priorizar a aproximação política com a China, em detrimento da relação com dois outros parceiros – EUA e UE –, com o propósito de maximizar a reindustrialização impulsionada por altos investimentos chineses em infraestrutura e em setores com maior densidade tecnológica. Ou seja, diante de cenário econômico doméstico de baixo crescimento, a política externa poderá sacrificar nosso tradicional não alinhamento, em nome da perspectiva de atrair investimentos chineses a qualquer custo político.
A perspectiva realista de crescente tensão entre as duas superpotências, aliada a uma elevada dependência do Brasil a investimentos chineses, poderá agravar os indícios de uma política externa excessivamente alinhada com a China. De certa forma, o ativismo do ex-chanceler na guerra da Ucrânia, com gestos e declarações, compromete a declarada neutralidade brasileira. Assim, nossa diplomacia, ao dar sinais de afastamento em relação a princípios basilares, como a não intervenção e o não alinhamento, compromete o presente e o futuro da PEB.
A segunda dimensão diz respeito ao papel do Brasil nas instituições multilaterais. Mesmo tendo enviado tropas da FEB ao teatro de guerra na Itália na II Guerra Mundial, o Brasil dos anos 1930 e 1940 soube preservar os paradigmas que cristalizaram a PEB – autonomia e desenvolvimento. Nesse sentido, Vargas buscava minimizar os efeitos negativos de assumir posições de alinhamento com os dois blocos em jogo – ocidental e soviético – e praticava um low profile político. Ao contrário, a política externa de Lula, nos dois primeiros mandatos, teve como padrão predominante a projeção internacional do Brasil, tanto nos foros da ONU – com participação destacada nas Forças de Paz e com intensa campanha para obter um assento permanente no Conselho de Segurança – como na Organização Mundial do Comércio (OMC) – com a tradição de uma diplomacia comercial competente, mas que naquele período teve sua dimensão multilateral hipertrofiada. Isso deixou o Brasil à margem da negociação, nas últimas décadas, de centenas de acordos de livre comércio bilaterais e regionais, com visíveis benefícios para os países participantes. Ao apostar quase todas as fichas na OMC, o país se isolou, deixando de beneficiar-se desse amplo processo negociador.
A terceira dimensão relevante está relacionada com a participação do Brasil no BRICS, o que certamente projetou o país no plano internacional, em função de da importância do agrupamento e de sua ampliação para outras áreas além da econômica. Essa projeção do Brasil contribuiu para uma imagem de maior destaque no mundo. Ao mesmo tempo, a hegemonia da China (responsável por cerca de 70% do PIB do bloco) sempre configurou inquestionável assimetria de poder no BRICS.
Essa característica se agravou com as pretensões geopolíticas hegemônicas do presidente Xi Jinping, pautado pelo autoritarismo e pelo clima de confrontação com os EUA. Isso contribuiu para tornar mais arriscada a política externa de Lula, marcada por crescente identificação com pretensões chinesas. Dentre essas, sobressai o projeto de uma nova ordem internacional, em contraposição à ordem liberal vigente desde o imediato pós-guerra, tendo os EUA como centro político e as instituições de Bretton Woods como pilar econômico. A identificação crescente do Brasil com o ideário do BRICS, obviamente muito moldado pelas pretensões geopolíticas chinesas, consolida a percepção dos EUA e da União Europeia de uma excessiva inflexão pró-China de nossa política externa.
Uma consideração final sobre o paralelismo entre Vargas e Lula diz respeito à forte influência sobre eles exercida por dois conflitos internacionais – a II Guerra Mundial e a guerra na Ucrânia. O primeiro consagrou os EUA como superpotência hegemônica, sem rival nuclear até 1949, e abriu as portas para uma Guerra Fria prolongada por mais de 40 anos, que teve como desfecho o desmembramento da União Soviética. O segundo produziu surpreendente coesão no seio da OTAN, militarizou o orçamento alemão a níveis sem precedentes, rompeu a neutralidade histórica da Finlândia e da Suécia, candidatas a integrar a OTAN, isolou a Rússia das economias avançadas e a lançou nos braços de uma China expansionista.
Assim como o ataque a Pearl Harbour e o ingresso dos EUA na II Guerra Mundial sepultaram a diplomacia pendular de Getúlio, a guerra da Ucrânia teve peso semelhante, mas na direção oposta, sobre a política externa de Lula. Até então reconhecido como o grande protagonista de uma diplomacia que resgatou a imagem do Brasil no mundo, ao sepultar o desastroso retrocesso de seu antecessor, Lula passou a ser objeto de fortes críticas urbi et orbi por suas declarações e iniciativas a respeito da guerra na Ucrânia.
O presidente tem sido criticado por se afastar da defesa do Direito Internacional, e por colocar em xeque a fidelidade ao princípio basilar da PEB – a não intervenção. Atitudes e declarações recentes confirmam tal diagnóstico: entrevista de Lula, antes da posse à imprensa francesa; declarações do presidente durante a visita à China em abril de 2023; o surpreendente encontro em Moscou do nosso ex-chanceler com Putin; e afirmações do chanceler russo Sergei Lavrov durante visita a nosso país. Essa intensa movimentação diplomática, qualificada de neutra e destinada a promover um impreciso Clube da Paz, poderá produzir alta relação custo-benefício e revelar graves danos à política externa brasileira. Se Pearl Harbour aposentou uma virtuosa diplomacia pendular e gerou dividendos tangíveis para a industrialização e para o lugar do Brasil no mundo, a invasão russa da Ucrânia, ao provocar uma reviravolta na PEB, tem o potencial de comprometer uma trajetória diplomática reconhecidamente exitosa.
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