O Vazamento da Legitimidade
Os vazamentos dos documentos do go- verno americano pelo Wikileaks2 e pe- lo The Guardian3 se materializaram emdezenas de processos administrativos e judiciais, nos tribunais de vários países, envolvendo deze- nas de partes. Materializaram-se numa sistêmica, contraditória e imprevisível disputa jurídica de alcance global.
Esta disputa na cultura jurídica norte-ame- ricana se traduz como um conflito entre pelo menos três valores constitucionais: segurança nacional, liberdade de expressão e privacida- de individual.
Traduz-se também como um conflito de di- reito internacional entre o direito da Rússia, da Inglaterra e do Equador de extraditar ou con- ceder asilo a Julian Assange e a Edward Snow- den. Ou o direito de autoridades britânicas de reter o brasileiro David Miranda no aeroporto de Heathrow em Londres. Além disso, questio- na o direito de acesso e controle pelo governo americano da rede digital global, eventual es- pionagem, através de empresas privadas como Google e Facebook e o devido respeito a sobe- ranias nacionais.
Esta sistêmica disputa de processos judiciais constitui arenas jurídicas de comunicação política global. É sobre este ângulo – disputas judiciais como integrantes de uma arena comunicativa tecno- lógica global – que analisamos estes vazamentos.
Nesta arena, os processos judiciais são a fon- te jornalística. O fato a revelar e analisar. A opi- nião pública é a audiência privilegiada.
Nesta arena disputam-se direitos e deveres. Mas, basicamente, disputa-se uma questão maior. Qual o limite do Estado Democrático no mundo globalizado?
Tradicionais valores e fundamentos do ius imperium4, enquanto poder legítimo, estão sub- metidos a um global stress test5 diante das novas tecnologias de comunicação. O prêmio ao vence- dor será o apoio da opinião pública global.
Que arena é esta?
Trata-se de arena construída na interseção destes três fatores já delineados.
O primeiro são os múltiplos, difusos, conexos ou autônomos processos judiciais e administrati- vos, instaurados pelas partes – Estados Unidos, Su- écia, Inglaterra, Julian Assange, Bradley Manning e Edward Snowden, David Miranda, Visa, Master- card, Brasil, Comunidade Europeia, e tantos outros – em múltiplos departamentos e tribunais locais e internacionais, envolvendo um emaranhado de le- gislações diferentes, infindáveis dúvidas sobre pra- zos processuais e competências soberanas.
O segundo fator é que, além de sua função jurí- dica tradicional, definidora de direitos e deveres, estes processos jurídicos são fontes midiáticas para a opinião pública global. Qualquer ato processual importa às mídias tradicionais e digitais e tem o po- tencial de causar impacto político na opinião públi- ca. Tanto no que diz respeito aos interesses das par- tes em si quanto ao valor de liberdade de expressão, segurança nacional, soberania de Estado e privaci- dade como pilares de uma ordem mundial.
É como se assistíssemos a um mesmo filme com duas legendas diferentes. Uma comunica o processo legal e discute direitos e deveres. Outra comunica o impacto político e discute valores democráticos. Uma legenda exemplifica e decodifica a outra.
O terceiro fator é a crescente demanda da opi- nião pública global para que o exercício de qual- quer poder estatal, seja local, nacional ou mundial, submeta-se sempre ao teste da transparência e da legitimidade. Se para constituições nacionais e tra- tados internacionais a mera existência da legalidade é suficiente, para a opinião pública global não é.
A mídia tradicional, as mídias digitais e, so- bretudo, a opinião pública demandam cada vez mais uma legalidade legítima, democraticamente argumentada e fundamentada.
A legitimidade distingue-se da legalidade porque esta, em última instância, baseia-se na força – multa, prisão e privações. A legitimidade exige uma aceitação voluntária baseada na com- preensão e na experiência.
Essa legitimidade é palpável no olho nu das telas, seja da televisão, do notebook ou do smartphone. A instantaneidade, a universalidade e a visibilidade das tecnologias de informação derru- bam as paredes e os sites dos tribunais e transfor- mam a opinião pública em um tribunal também.
Estes três fatores – as difusas, contraditórias e complexas legalidades transnacionais, a comu- nicação política tecnologizada pelas mídias digi- tais e tradicionais e a crescente demanda da opi- nião pública mundial pelo poder legítimo – constituem o que chamo da arena tecnológica das disputas legais politizadas.
Nesta arena, as partes desenvolvem estraté- gias de comunicação jurídica e política. Os pro- cessos judiciais são o fato e a linguagem, o signi- ficante e o significado, que viabilizam o diálogo de todos entre si.
Que estratégias são essas?
O objetivo maior do governo Obama parece ser o de fazer prevalecer as exigências da segurança nacional, sem pagar o alto preço de contrariar uma tradição constitucional de defesa da liberdade de expressão, de devido processo legal e de pro- teção à privacidade dos cidadãos e suas empresas. Esta tradição libertária e individualista, além de ser uma garantia de seus cidadãos, é um dos principais ativos da liderança global norte-americana.
Por isto, Obama ressaltou que os americanos, como sociedade, precisariam fazer algumas es- colhas difíceis, em que os valores de segurança e privacidade estariam contrapostos6.
Este conflito de valores é real, internamente. Pes- quisa recente mostra que 56% dos americanos veem as medidas de espionagem adotadas pelos Estados Unidos como necessárias ao combate ao terrorismo7. Externamente, porém, considere-se que a li- derança global não vive apenas de seu poderio econômico e militar. Vive e se fundamenta tam- bém, e fortemente, na aceitação global do ameri- can way of life. Não somente por razões de estí- mulo ao consumo de produtos americanos, que faz mover economias, mas porque o american way of life inclui uma forte tradição de defesa das liberdades individuais e da liberdade de impren- sa, transformados em valores éticos, políticos e culturais globais.
Samuel Huntington e Lawrence Harrison diriam que “culture matters”8. E isso repercute, tem conse- quências, acrescento. Ou seja, legitima ou deslegiti- ma o poder. O mesmo, aliás, que do outro lado da cerca ideológica, Antônio Gramsci diria também.
Em oposição, Julian Assange e Edward Sno- wden pretendem afirmar valores também caros às democracias globais. Tais como o controle so- cial do poder do Estado, o respeito à privacidade de dados dos cidadãos e de nações, a neutralida- de e independência das redes sociais. Assange repete em suas entrevistas: “Transparência. Transparência. Transparência”.
No passado, a disputa por estes valores – sobretu- do o de liberdade – era feita através das nações, como nas grandes guerras e mesmo na Guerra Fria, com re- ais e físicas disputas entre Estados. A disputa atual agora é virtual e devido à rede pode ser feita por indi- víduos contra Estado, sem sangue, sem exércitos.
Este não é fenômeno novo. Precedentes his- tóricos estimulam a desobediência individual quando ela objetiva conquistar a mídia e a opi- nião pública, como no caso da Guerra do Vietnã e na renúncia de Richard Nixon. Indivíduos mu- daram destinos nacionais.
A estratégia de Wikileaks e Snowden ao rea- firmar valores de transparência, privacidade e li- mites ao poder do Estado, no fundo, aponta para eventuais contradições da atuação dos governos. É o global stress test a que me referi.
Para se ter uma ideia da complexidade desta disputa, relacionamos algumas ações jurídicas atualmente em curso no caso Wikileaks:
- O julgamento de Bradley Manning na Corte Militar do Distrito de Washington, nos Estados Unidos. Manning foi acusado por 22 crimes, dentre eles auxílio ao inimigo, (UCMJ, Uni- form Code of Military Justice), falha em obe- decer ordem ou regulamento (UCMJ) e roubo de propriedade estatal (Lei de Espionagem). Manning foi julgado ao longo de mais de dois anos e condenado a 35 anos de prisão por 20 das 22 acusações, tendo sido absolvido da mais grave, auxílio ao inimigo, por falta de provas.
- O julgamento de Julian Assange na corte dis- trital de Estocolmo, na Suécia, por estupro e coerção involuntária e três casos de violên- cia sexual, descritos no Código Penal da Su- écia. Após recurso para a Corte de Apelações de Svea, a acusação foi reduzida para uma forma menos grave de estupro, coerção in- voluntária e dois casos de violência sexual. O procurador-geral da Suécia expediu um mandado de prisão europeu contra Assange.
- O pedido de extradição feito pela Suécia ao Reino Unido, julgado inicialmente por um juiz Distrital e, em apelação, pela Alta Corte Britânia e pela Suprema Corte, sempre com decisão pela necessidade de extradição.
- O asilo político na embaixada do Equador, concedido em agosto de 2012, gerando uma discussão diplomática com o governo do Reino Unido, que ameaçou prender Assange na embaixada, com base no Ato de Locais Diplomáticos e Consulares de 1987 (Diplo- matic and Consular Premises Act 1987).
- O processo contra Visa e Mastercard na Di- retoria Geral de Concorrência da Comissão Europeia, por contrariarem a legislação eu- ropeia de concorrência ao deixarem de aceitar doações para Wikileaks.
- A investigação feita por agências de seguran- ça americanas como o F.B.I. (Federal Bureau of Investigation) que nos últimos anos vem reunindo informações sobre Julian Assange e Wikileaks, de acordo com declaração do De- partamento de Justiça dos Estados Unidos9.
- O processo contra Visa e Mastercard na Is- lândia10, com recente decisão da Corte Dis- trital de Reykjavík e da Suprema Corte, condenando as empresas por violações con- tratuais e ordenando que as doações a Wiki- leaks sejam retomadas sob pena de multa.
- A candidatura de Assange a senador na Austrália nas eleições de 2013, como repre- sentante do Partido Wikileaks, fundado por ele em julho deste ano, que vem enfrentan- do dificuldades financeiras e dificuldades em sua organização.
- A utilização de novas formas de arrecadação de fundos, contornando as proibições de Visa e Mastercard de receber doações. Trata-se de ini- ciativas tomadas nos Estados Unidos, como a criação do Freedom of the Press Foundation, Fundação criada para receber doações em tópi- cos relacionados à liberdade da imprensa.
E não vai parar aqui
O mesmo ocorre no caso de Edward Snow- den, podendo-se enumerar como questões jurídicas em discussão:
- O asilo político temporário concedido a Sno- wden pela Rússia, até 31 de janeiro de 2014. Para que seu asilo seja permanente, Snow- den precisa passar por um novo procedimen- to, que depende, ao final, de decreto presi- dencial para que o asilo seja concedido. A lei russa prevê proteção ou asilo – contra perse- guição ou em caso de risco real de persegui- ção –, em caso de “atividades sociais e polí- ticas ou condenações que não contrariem os princípios internacionais de direito”.11
- O asilo político requisitado a mais de 20 países, como Áustria, França, Venezuela, Nicarágua, China, Alemanha, Islândia, Brasil, entre outros.
- O processo judicial contra Edward Snowden ajuizado nos Estados Unidos, com alegações de roubo de propriedade estatal e comunicação vo- luntária de informações confidenciais, violando a Lei de Espionagem dos Estados Unidos.
- O pedido de extradição ao governo de Hong Kong, feito pelos Estados Unidos, com fun- damento no Tratado de Extradição Estados Unidos-Hong Kong, que entrou em vigor em 199812.
- A discussão sobre espionagem internacio- nal realizada em países da América do Sul, como Brasil e Chile, além de países euro- peus, como Rússia.
- O incidente diplomático causado com a Bo- lívia, tendo Portugal e França proibido aces- so do avião do presidente Evo Morales a seu espaço aéreo, por alegações de que ele esta- ria transportando Edward Snowden.
- O incidente diplomático causado no aero- porto de Heathrow, em Londres, quando David Miranda, companheiro do jornalista Glenn Greenwald13, foi detido por nove ho- ras com base na Lei de Terrorismo de 200014. O brasileiro foi interrogado e teve seu computador e pendrive apreendidos.
- A ação ajuizada na High Court do Reino Unido por David Miranda contra o governo britânico, buscando a declaração da ilegali- dade da detenção realizada no aeroporto de Londres e a devolução do material tecnoló- gico apreendido. A Corte concedeu liminar parcial para limitar a análise do material.
- A divulgação de que a Agência Nacional de Segurança (NSA) dos Estados Unidos mo- nitorou e-mails, telefonemas e mensagens de celular da presidente Dilma Rousseff.
Estratégia de individualização
O governo americano entra nesta arena enfa- tizando a responsabilidade individual. As denúncias são contra pessoas: Edward Snowden, Julian Assange, Bradley Manning, David Mi- randa. Não contra Wikileaks, The Guardian ou a empresa Booz-Allen, subcontratada pela Agên- cia de Segurança Nacional (NSA), para a qual Edward Snowden trabalhava.
A individualização judicial americana atua como força política dissuasiva, preten- dendo desestimular comportamentos futuros de whistleblowers.
Tudo indica que os acusados não objetivaram favorecer países inimigos, ideologias religiosas, partidos políticos ou interesses financeiros.
Tenta-se impor ônus insuportáveis para evitar tendência, comum no mundo de internet, de o in- ternauta usar a rede para perseguir crenças e va- lores individuais. Para o bem ou para o mal.
A rede magnifica sonhos e pesadelos indivi- duais. Todos podem potencialmente ser um Ro- bin Hood, um kamikaze, um rato que ruge. To- dos podem integrar o exército dos “happy few” de Henrique V15.
Além da estratégia da individualização, para o governo Obama, dois pontos são sensíveis.
Primeiramente, trata-se de evitar que algum processo chegue à Suprema Corte americana modelado como um conflito entre liberdade de expres- são e segurança nacional. O risco, diante da incerte- za jurisprudencial, seria muito grande, dada a pos- sibilidade de a Suprema Corte americana decidir em favor da liberdade de imprensa, como exempli- fica o caso New York Times vs. Sullivan16.
Este risco já pode ser avaliado no julgamento de Bradley Manning agora no Tribunal Militar de Washington. O promotor Capitão Ashden Fein tentou caracterizar o vazamento como uma colaboração com o inimigo (Al Qaeda) e, portan- to, um caso nitidamente de segurança nacional. Fracassou. Para a juíza coronel Denise Lind a acusação precisaria ter provado que Manning sa- bia de antemão que o inimigo teria acesso às in- formações. O que não se conseguiu.
Não parece ser o objetivo nem de Wikileaks nem de Edward Snowden colaborar com os ini- migos, como foi o caso do casal Julius e Ethel Rosemberg, julgados, condenados e executados durante a Segunda Guerra Mundial por espiona- gem, por terem transmitido à União Soviética informações sobre a bomba atômica. Aproxima-se mais do caso de Daniel Elsberg no Pentágono17, individualizada ação contra uma política do go- verno americano, entendida como contrária aos interesses daquele país.
Neste sentido, o vazamento é uma forma de o povo influenciar políticas públicas, influen- ciar pela mobilização tecnológica, mudar polí- ticas públicas. A conquista da opinião pública é fundamental.
Neste cenário de individualização dos acusa- dos, é decisivo para a acusação americana não en- volver a mídia, seja nacional ou internacional, como parte destes processos. Não somente por causa da incerteza jurisprudencial da Suprema Corte, mas por causa do potencial impacto de so- lidariedade corporativa que poderia unir as mídias digitais e a mídia tradicional. Estariam ambas cen- suradas em sua liberdade de expressão. Dificil- mente, o governo americano ganharia a batalha pelo apoio da opinião pública mundial e, prova- velmente, de tribunais não americanos, com a união de ambas as mídias contra si próprio. A jus- tiça centra-se, mas também corre fora dos autos.
Obviamente, a estratégia de Wikileaks e de Edward Snowden é oposta. Trata-se de tudo fa- zer para incluir a mídia tradicional, o news- room, como parte destes processos judiciais. Julian Assange vazou os documentos america- nos na internet e imediatamente constituiu uma rede de jornais e televisões líderes no mundo para quem vazou também. Tais como The New York Times, The Guardian, El País, Der Spie- gel, Le Monde, Folha de S. Paulo e O Globo. Ou seja, uma rede protetora.
Estratégica de não envolver a mídia
Neste cenário jurídico, a questão central pas- sa a ser se Wikileaks é ou não uma empresa de comunicação ou de mídia. Wikileaks não ge- rou a notícia, apenas a divulgou. É um meio de comunicação. Faz parte da mídia, tanto quanto o New York Times. De acordo com o professor de Harvard Yochai Benkler18, era assim que Wikile- aks era visto, até o início de 2010, quando Brad- ley Manning vazou informações. A organização ganhou, inclusive, o prêmio da Anistia Interna- cional de Novas Mídias, em 2009.
De 2010 para cá, no entanto, Wikileaks tem sido tratado como algo distinto, que não seria tec- nicamente uma forma de imprensa. Em verdade, no entanto, sustenta o professor, vazar documen- tos ao Wikileaks seria situação idêntica a vazar os Pentagon Papers para o New York Times. Docu- mentos secretos liberados para um jornal. E, con- forme decidiu a Suprema Corte no caso antigo, dignos de proteção da liberdade de imprensa.
Se Wikileaks for considerado como impren- sa, meio de comunicação, a liberdade de infor- mação é mais assegurada. Os limites para inter- venção do Estado em suas atividades são mais restritos e os riscos para o governo americano são maiores. Quem decidirá esta questão é, em princípio, a Suprema Corte. O governo america- no não pretende ir tão longe.
Como consequência da estratégia de não en- volver a mídia na questão, os vazamentos são tratados como uma questão de desobediência das regras de sigilo sobre informações confi- denciais entre Bradley Manning e Edward Sno- wden e seus empregadores: o governo america- no e a empresa Booz-Allen, respectivamente. Ambos atuavam em um posto em que o sigilo era fundamental, e havia sido acordado quando do início do trabalho.
O dever de confidencialidade, assim, é que foi desrespeitado. Bradley Manning, em seu jul- gamento, recebeu nove acusações de “falha de obedecer a uma lei ou regulamento”, como, por exemplo, de violar regra que proíbe a transferên- cia de materiais sigilosos a sistemas não seguros, arquivar inadequadamente informações confi- denciais e usar softwares proibidos em computa- dores do sistema de defesa americano. A severa condenação a 35 anos de prisão mostra, no en- tanto, que estava em jogo mais do que mera de- sobediência funcional.
Esta arena tem se expandido em importantes questões de direito internacional. O governo Oba- ma, tendo invadido eletronicamente dados de paí- ses, aliados ou não, dados de cidadãos estrangei- ros, esforça-se agora para que estas disputas não se politizem enquanto uma questão de desrespeito à soberania de Estados. Evita, se for possível, que o caso chegue como um conflito entre soberania, quer na Organização dos Estados Americanos, na ONU ou em outros fóruns internacionais.
O sucesso dessa estratégia, no entanto, parece cada vez mais difícil. A recente divulgação de que não apenas as comunicações de cidadãos estavam sendo monitoradas, mas também, e mais de perto, e-mails, ligações e ações de representantes das so-
beranias nacionais, como a presidente da Repúbli- ca, Dilma Rousseff, e de que a Agência de Segu- rança Nacional buscava influenciar votos no Con- selho de Segurança da ONU mostra que a sobera- nia dos países já está envolvida.
Neste cenário, o apoio da Rússia extraditando Snowden era decisivo. Valeria a nível internacio- nal como um aval despolitizante. Tão importante externamente quanto seria uma decisão da Su- prema Corte favorável ao governo americano internamente. A tese de que se trata de uma ques- tão de desobediência a normas de confidenciali- dade internas e, no máximo, desobediência à se- gurança nacional, prevaleceria diante da opinião pública, com o aval da Rússia, fracassou.
A Rússia concedeu o asilo, desestabilizou a tese americana. Sem falar no silêncio constran- gido de países europeus que, de alguma forma sabiam e mesmo colaboraram para as ações norte-americanas de espionagem, como Alema- nha, Holanda, Áustria e Espanha. Esses países limitaram-se a protestos diplomáticos de inten- sidades variáveis. Mas, atenção, não se pode prever a reação da opinião pública desses paí- ses, ou mais especificamente dos eleitores. Não seria historicamente contraditório se apoiassem ações, mesmo de espionagem, em nome da se- gurança europeia, se assim fosse necessário, como foi no passado.
Na verdade, estamos em uma situação em que a espionagem que os vazamentos revelaram aponta para graves violações de soberania, mas sem punições possíveis em nível da relação entre Estados. A única reação possível parece ser: a erosão de legitimidade da liderança americana diante da opinião pública global. Daí a importân- cia destes múltiplos processos judiciais como alimentadores de outro processo: o de desgaste da legitimidade da liderança americana. Os Esta- dos Unidos não respeitariam, em nível global, os próprios valores constitucionalizados. Houve um vazamento de legitimidade.
Não custa lembrar que a constituição ameri- cana foi globalizada no sentido que inspirou e inspira os regimes democráticos em todo o mun-
- Apoio, pesquisa, interlocução e revisão de Adriana Lacombe Coiro.
- Sobre gastos e condutas violentas do exército americano nas guerras do Afeganistão e do Iraque.
- Sobre espionagem em massa em diversos países.
- ius imperium: poder impositivo do Estado, do qual o cidadão não pode se eximir
- global stress test: teste global de resistência
- SPETALNICK, Matt e HOLLAND, Steve. Obama defends surveillance effort as ‘trade-off’ for security. Disponível em http://www.reuters. com/article/2013/06/08/us-usa-security-records-
- idUSBRE9560VA20130608 Acesso em 02.09.2013.
- Pesquisa realizada e divulgada pelo jornal Washington Post, disponível em http://articles.
- washingtonpost.com/2013-06-10/politics/39867885_1_45- percent-52-percent-privacy (acesso em 02.09.2013).
- HUNTINGTON, Samuel e HARRISON, Lawrence H. Culture Matters: How Values Shape Human Progress. Basic Books: 2001. culture matters: a cultura importa
- CARR, David e SOMAYA, Ravi. Assange, Back in News, Never Left U.S. Radar http://www.nytimes. com/2013/06/25/world/europe/wikileaks-back-in-news- never-left-us-radar.html?pagewanted=all Acesso em 02.09.2013.
- O processo foi ajuizado contra a empresa Valitor, responsável pelos pagamentos dos cartões Visa e Mastercard na Islândia.
- FISHER, Max. Russian asylum law leaves Snowden few paths to permanent shelter. Disponível em www. washingtonpost.com/blogs/worldviews/wp/2013/08/01/ russian-asylum-law-leaves-snowden-few-paths-to-
- -permanent-shelter/.
- Disponível em http://www.gpo.gov/fdsys/pkg/CRPT- 105erpt2/html/CRPT-105erpt2.htm – acesso em 02.09.2013.
- Jornalista que publicou o material recebido por Edward Snowden no jornal The Guardian.
- O artigo 7 afirma que “For the purpose of satisfying himself whether there are any persons whom he may wish to question under paragraph 2 an examining officer may—(c) search anything which he reasonably believes has been, or is about to be, on a ship or aircraft”. O artigo 6, (4) da lei estabelece que “A person detained under this paragraph shall (unless detained under any other power) be released not later than the end of the period of nine hours beginning with the time when his examination begins.”
- Shakespeare, William. Henrique V. Ato IV, Scena III.
- Trata-se de caso de 1964, em que a Suprema Corte dos Estados Unidos exigiu que deveria haver prova de malícia intencional para que a imprensa pudesse ser acusada de difamação de figuras públicas.
- Analista do Pentágono que divulgou ao jornal New York Times os Pentagon Papers, documentos que detalhavam a estratégia dos Estados Unidos no Vietnã.
- BENKLER, Yochai. The Dangerous Logic of the Bradley Manning Case. New York Times, 13.03.2013. Disponível em http://www.nytimes.com/2013/03/14/opinion/the- impact-of-the-bradley-manning-case.html?_r=0.
- De acordo com relatório sobre democracia da Freedom House.
- Clear and present danger: perigo claro e iminente
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