A cúpula de Tianjin e o futuro
Encontro de países asiáticos liderados pela China visou a criação de uma frente comum de enfrentamento aos EUA de Trump em uma tentativa de mudar o jogo da política global enquanto Pequim busca ter um papel geopolítico cada vez mais importante

No início do mês, terminou em Tianjin, na China, um evento que tem para muitos analistas o potencial de provocar uma mudança profunda no quadro de poder mundial.
A Cúpula da Organização para Cooperação de Xangai (OCS), que aconteceu entre 31 de agosto e 03 de setembro, reuniu mais de 20 chefes de Estado da Eurásia, líderes estrangeiros e dez organizações internacionais, além de observadores e parceiros de diálogo. Este congresso, que é o maior evento da história da organização desde sua criação em 2001, teve como objetivo discutir o futuro das relações entre os países na “era Trump”… E além.
‘Nas palavras de Xi, o “encontro carrega a importante missão de construir consensos, liberar o ímpeto da cooperação e traçar um plano para o desenvolvimento da organização’
Durante o banquete de boas-vindas, o presidente da China, Xi Jinping, anfitrião do evento, destacou o papel histórico da reunião neste momento conturbado do planeta. Nas suas palavras, “este encontro carrega a importante missão de construir consensos, liberar o ímpeto da cooperação e traçar um plano para o desenvolvimento da organização que nasceu para resolver dilemas de segurança regional e promover desenvolvimento conjunto, tendo-se tornado o símbolo de um novo tipo de relações internacionais”.
Fundada em 2001, a OCS no princípio contava com seis membros. Hoje, reúne dez países euroasiáticos – Bielorrússia, Índia, Irã, Cazaquistão, China, Quirguistão, Paquistão, Rússia, Tajiquistão e Uzbequistão – dois observadores – Afeganistão e Mongólia – e 14 parceiros de diálogo, o que a torna a maior organização regional em termos de cobertura geográfica e de população: ou seja, aproximadamente 24% da área total do planeta (65% da Eurásia), e 42% da população mundial. Daí a força política repaginada da entidade que, para alguns, até então cumpria um papel sobretudo retórico.
‘O perfil de alguns membros tem apontado mais para o dissenso que para o consenso. O que os agrega é simples: a criação de uma frente comum de enfrentamento aos Estados Unidos de Donald Trump’
Isto porque o perfil de alguns dos seus membros tem apontado até agora mais para o dissenso que para o consenso: China e Índia, ainda que parceiras no Brics, têm um histórico de disputas territoriais e já chegaram a confrontos armados, além de competirem pelo protagonismo no contexto asiático; Índia e Paquistão são, por sua vez, inimigos territoriais; os países da Ásia Central ainda não resolveram a herança da União Soviética; Paquistão e Rússia disputam a prioridade no relacionamento com a China.
Então, o que os agrega? A resposta é simples: ainda que subliminarmente, a criação de uma frente comum de enfrentamento aos Estados Unidos de Donald Trump!
Daí a ênfase de todos no sentido de preservar o chamado “Espírito de Xangai”, baseado em “confiança mútua, benefícios compartilhados, igualdade, consultas, respeito à diversidade e busca do desenvolvimento comum, que se consolidaram como alternativa viável ao modelo de confrontação herdado da Guerra Fria”. Ou, como propõem, “o princípio de um “multilateralismo genuíno que diferencia a OCS no contexto de erosão das instituições multilaterais promovida por potências ocidentais”.
A cúpula coincide com datas simbólicas: os 80 anos da vitória dos chineses contra a agressão japonesa e da fundação da ONU. Para o anfitrião, Xi Jinping, esse contexto reforça o papel da OCS como defensora e praticante do multilateralismo: “…A história revelou que o multilateralismo, a solidariedade e a cooperação são a resposta correta aos desafios globais”, como ele afirmou no encontro com o secretário-geral da ONU, António Guterres.
Assim como este, estavam em Xangai o presidente Vladimir Putin, da Rússia, com a qual a República Popular tem “uma parceria estreita e duradoura”; o Primeiro Ministro da India,Narendra Modi; os presidentes Masoud Pezeshkian, do Irã; Recep Erdogan, da Turquia; o Chefe da Junta Militar de Myanmar, Aung Hlaing; e….Kim Jong-un, o líder da Coreia do Norte (!), entre outros. Do Ocidente compareceram apenas o Primeiro-Ministro da Eslováquia, Robert Fico, e o presidente da Sérvia, Aleksander Vucic; da América Latina, o Presidente de Cuba, Miguel Diaz-Canel. Ao final da cúpula, segundo a chancelaria chinesa, Putin e Xi deverão participar juntamente com outros 24 Chefes de Estado de um desfile militar em Pequim, na próxima quarta-feira, 03/09, para celebrar a vitória chinesa contra os japoneses na II Guerra Mundial.
‘O real objetivo da cúpula, para Xi, é referendar a consagração da liderança da República Popular da China no cenário internacional atual’
A verdade, porém, é que o real objetivo da cúpula, para Xi, é referendar a consagração da liderança da República Popular da China no cenário internacional atual. Para tanto, ele apresentou seu país como “uma força para a estabilidade econômica global” e prometeu “centenas de milhões de dólares para apoiar seus parceiros no momento em que o presidente Donald Trump trava uma guerra tarifária global e dizimou a ajuda externa sob sua política de “America First”… Sem citar os Estados Unidos, Xi prometeu opor-se ao “hegemonismo”, à “mentalidade da Guerra Fria” e a “práticas de intimidação”. Conforme assinalou, “devemos alavancar a força de nossos mercados de grande porte e a complementaridade econômica entre os Estados-membros e melhorar a facilitação do comércio e do investimento…”
No plano diplomático, para os analistas a cúpula reforça a percepção do isolamento relativo dos EUA entre as potências emergentes. Neste cenário, o líder chinês tem buscado ampliar a influência de Pequim no palco internacional não apenas como a segunda maior economia do planeta, mas também como um ator de peso na diplomacia. Com isto em mente, ele vem ressaltando a imagem da China como parceiro comercial confiável em meio ao impacto das tarifas impostas por Donald Trump, que conturbaram as relações econômicas e diplomáticas mundiais.
Sumarizando: estar-se-ia configurando, como consequência, também na esfera geopolítica o grande opositor à Otan e ao Ocidente (central)?
‘A intensificação do processo de globalização das economias vem transformando de forma radical a geografia humana e econômica, e por consequência o jogo de poder no planeta.’
Eu havia postado num texto anterior que a intensificação do processo de globalização das economias vem transformando de forma radical a geografia humana e econômica, e por consequência o jogo de poder no planeta.
Polemizando, a pergunta que não quer se calar é: será que as estripulias isolacionistas de Donald Trump no intuito de “Make America Great Again”, que afetam o planeta por inteiro, estariam levando ao início do declínio do principal hegemon planetário e abrindo as portas para o segundo?
Mais radicalmente ainda: será que a hegemonia territorial será substituída, afinal, pela hegemonia econômica? Os chineses acham que sim…
Fausto Godoy é colunista da Interesse Nacional. Bacharel em direito, doutor em direito internacional público pela Universidade de Paris (I) e diplomata, serviu nas embaixadas do Brasil em Bruxelas, Buenos Aires e Washington. Concentrou sua carreira na Ásia, onde serviu em onze países. Foi embaixador do Brasil no Paquistão e Afeganistão (2004/2007) e Cônsul-Geral em Mumbai (2009/10). É coordenador do “Centro de Estudos das Civilizações da Ásia” da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM) e curador da Ala Asiática do MON.
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