11 setembro 2025

A cúpula de Tianjin e o futuro

Encontro de países asiáticos liderados pela China visou a criação de uma frente comum de enfrentamento aos EUA de Trump em uma tentativa de mudar o jogo da política global enquanto Pequim busca ter um papel geopolítico cada vez mais importante

Foto: Xinhua

No início do mês, terminou em Tianjin, na China, um evento que tem para muitos analistas o potencial de provocar uma mudança profunda no quadro de poder mundial.

A Cúpula da Organização para Cooperação de Xangai (OCS), que aconteceu entre 31 de agosto e 03 de setembro, reuniu mais de 20 chefes de Estado da Eurásia, líderes estrangeiros e dez organizações internacionais, além de observadores e parceiros de diálogo. Este congresso, que é o maior evento da história da organização desde sua criação em 2001, teve como objetivo discutir o futuro das relações entre os países na “era Trump”… E além.

‘Nas palavras de Xi, o “encontro carrega a importante missão de construir consensos, liberar o ímpeto da cooperação e traçar um plano para o desenvolvimento da organização’

Durante o banquete de boas-vindas, o presidente da China, Xi Jinping, anfitrião do evento, destacou o papel histórico da reunião neste momento conturbado do planeta. Nas suas palavras, “este encontro carrega a importante missão de construir consensos, liberar o ímpeto da cooperação e traçar um plano para o desenvolvimento da organização que nasceu para resolver dilemas de segurança regional e promover desenvolvimento conjunto, tendo-se tornado o símbolo de um novo tipo de relações internacionais”.

Fundada em 2001, a OCS no princípio contava com seis membros. Hoje, reúne dez países euroasiáticos – Bielorrússia, Índia, Irã, Cazaquistão, China, Quirguistão, Paquistão, Rússia, Tajiquistão e Uzbequistão – dois observadores – Afeganistão e Mongólia – e 14 parceiros de diálogo, o que a torna a maior organização regional em termos de cobertura geográfica e de população: ou seja, aproximadamente 24% da área total do planeta (65% da Eurásia), e 42% da população mundial. Daí a força política repaginada da entidade que, para alguns, até então cumpria um papel sobretudo retórico.

‘O perfil de alguns membros tem apontado mais para o dissenso que para o consenso. O que os agrega é simples: a criação de uma frente comum de enfrentamento aos Estados Unidos de Donald Trump’

Isto porque o perfil de alguns dos seus membros tem apontado até agora mais para o dissenso que para o consenso: China e Índia, ainda que parceiras no Brics, têm um histórico de disputas territoriais e já chegaram a confrontos armados, além de competirem pelo protagonismo no contexto asiático; Índia e Paquistão são, por sua vez, inimigos territoriais; os países da Ásia Central ainda não resolveram a herança da União Soviética; Paquistão e Rússia disputam a prioridade no relacionamento com a China.

Então, o que os agrega? A resposta é simples: ainda que subliminarmente, a criação de uma frente comum de enfrentamento aos Estados Unidos de Donald Trump!

Daí a ênfase de todos no sentido de preservar o chamado “Espírito de Xangai”, baseado em “confiança mútua, benefícios compartilhados, igualdade, consultas, respeito à diversidade e busca do desenvolvimento comum, que se consolidaram como alternativa viável ao modelo de confrontação herdado da Guerra Fria”. Ou, como propõem, “o princípio de um “multilateralismo genuíno que diferencia a OCS no contexto de erosão das instituições multilaterais promovida por potências ocidentais”.

A cúpula coincide com datas simbólicas: os 80 anos da vitória dos chineses contra a agressão japonesa e da fundação da ONU. Para o anfitrião, Xi Jinping, esse contexto reforça o papel da OCS como defensora e praticante do multilateralismo: “…A história revelou que o multilateralismo, a solidariedade e a cooperação são a resposta correta aos desafios globais”, como ele afirmou no encontro com o secretário-geral da ONU, António Guterres.

Assim como este, estavam em Xangai o presidente Vladimir Putin, da Rússia, com a qual a República Popular tem “uma parceria estreita e duradoura”; o Primeiro Ministro da India,Narendra Modi; os presidentes Masoud Pezeshkian, do Irã; Recep Erdogan, da Turquia; o Chefe da Junta Militar de Myanmar, Aung Hlaing; e….Kim Jong-un, o líder da Coreia do Norte (!), entre outros. Do Ocidente compareceram apenas o Primeiro-Ministro da Eslováquia, Robert Fico, e o presidente da Sérvia, Aleksander Vucic; da América Latina, o Presidente de Cuba, Miguel Diaz-Canel. Ao final da cúpula, segundo a chancelaria chinesa, Putin e Xi deverão participar juntamente com outros 24 Chefes de Estado de um desfile militar em Pequim, na próxima quarta-feira, 03/09, para celebrar a vitória chinesa contra os japoneses na II Guerra Mundial.

‘O real objetivo da cúpula, para Xi, é referendar a consagração da liderança da República Popular da China no cenário internacional atual’

A verdade, porém, é que o real objetivo da cúpula, para Xi, é referendar a consagração da liderança da República Popular da China no cenário internacional atual. Para tanto, ele apresentou seu país como “uma força para a estabilidade econômica global” e prometeu “centenas de milhões de dólares para apoiar seus parceiros no momento em que o presidente Donald Trump trava uma guerra tarifária global e dizimou a ajuda externa sob sua política de “America First”… Sem citar os Estados Unidos, Xi prometeu opor-se ao “hegemonismo”, à “mentalidade da Guerra Fria” e a “práticas de intimidação”. Conforme assinalou, “devemos alavancar a força de nossos mercados de grande porte e a complementaridade econômica entre os Estados-membros e melhorar a facilitação do comércio e do investimento…”

No plano diplomático, para os analistas a cúpula reforça a percepção do isolamento relativo dos EUA entre as potências emergentes. Neste cenário, o líder chinês tem buscado ampliar a influência de Pequim no palco internacional não apenas como a segunda maior economia do planeta, mas também como um ator de peso na diplomacia. Com isto em mente, ele vem ressaltando a imagem da China como parceiro comercial confiável em meio ao impacto das tarifas impostas por Donald Trump, que conturbaram as relações econômicas e diplomáticas mundiais.

Sumarizando: estar-se-ia configurando, como consequência, também na esfera geopolítica o grande opositor à Otan e ao Ocidente (central)?

‘A intensificação do processo de globalização das economias vem transformando de forma radical a geografia humana e econômica, e por consequência o jogo de poder no planeta.’

Eu havia postado num texto anterior que a intensificação do processo de globalização das economias vem transformando de forma radical a geografia humana e econômica, e por consequência o jogo de poder no planeta.

Polemizando, a pergunta que não quer se calar é: será que as estripulias isolacionistas de Donald Trump no intuito de “Make America Great Again”, que afetam o planeta por inteiro, estariam levando ao início do declínio do principal hegemon planetário e abrindo as portas para o segundo?

Mais radicalmente ainda: será que a hegemonia territorial será substituída, afinal, pela hegemonia econômica? Os chineses acham que sim…

Fausto Godoy é colunista da Interesse Nacional. Bacharel em direito, doutor em direito internacional público pela Universidade de Paris (I) e diplomata, serviu nas embaixadas do Brasil em Bruxelas, Buenos Aires e Washington. Concentrou sua carreira na Ásia, onde serviu em onze países. Foi embaixador do Brasil no Paquistão e Afeganistão (2004/2007) e Cônsul-Geral em Mumbai (2009/10). É coordenador do “Centro de Estudos das Civilizações da Ásia” da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM) e curador da Ala Asiática do MON.

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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