02 agosto 2023

‘A Diplomata’ lida com expectativas – e mitos – sobre gênero, poder e política

O novo sucesso da Netflix retrata o sexismo e estereótipos a respeito das lideranças políticas femininas. Para professora, os temas trabalhados na série serão importantes para a campanha eleitoral americana de 2024

Sucesso da Netflix retrata o sexismo e estereótipos a respeito das lideranças políticas femininas. Para professora, os temas trabalhados na série serão importantes para a campanha eleitoral americana de 2024

Por Karrin Vasby Anderson

Poucas pessoas teriam previsto que um drama eloquente sobre uma mulher que trabalha na área de relações exteriores seria o próximo grande sucesso da Netflix. Mas todos estão falando de A Diplomata – por um bom motivo.

A série, que tem como protagonista Keri Russell no papel da embaixadora dos EUA no Reino Unido, estreou em primeiro lugar nas paradas de streaming. Os críticos elogiaram as atuações espetaculares, o enredo sinuoso e a escrita “ironicamente engraçada” que compõem esse “drama emocionante e propulsor”. Até mesmo a conta do Twitter oficial da Embaixada dos EUA em Londres tuitou um vídeo brincalhão e, em sua maioria, elogioso, verificando os fatos do primeiro episódio.

‘Com tantos olhos voltados para a mais recente reprodução na televisão de uma mulher em um cargo político de alto nível, sua abordagem acerca da liderança feminina é significativa’

Com tantos olhos voltados para a mais recente reprodução na televisão de uma mulher em um cargo político de alto nível, sua abordagem acerca da liderança feminina é significativa. Como estudiosa de comunicação que pesquisa o enquadramento na mídia de mulheres reais e fictícias na política, tenho interesse em saber como a televisão e o cinema moldam nossa visão sobre o tópico no mundo real.

Embora A Diplomata inicialmente perpetue um estereótipo popular de que as únicas mulheres em quem se pode confiar para ocupar altos cargos são aquelas que não querem estar lá, o filme retrata de forma ponderada a onipresença do sexismo cotidiano na cultura política.

Mulheres e ambição política

“A Diplomata” mostra a personagem de Russell, Kate Wyler, a recém-nomeada embaixadora no Reino Unido, e seu marido, Hal, ex-embaixador e a parte mais politicamente ambiciosa da dupla, interpretado por Rufus Sewell.

O presidente precisava substituir seu vice-presidente devido a um escândalo iminente, e Hal colocou Kate na lista de candidatos – sem seu conhecimento – convencendo a chefe do gabinete do presidente, Billie Appia, interpretada por Nana Mensah, de que a competência e a falta de ambição política de Kate é o que a qualifica para o cargo.

Hal insiste que “ninguém com o temperamento para vencer uma campanha deveria estar no comando de qualquer coisa”.

‘O principal argumento de A Diplomata é que os políticos são péssimos líderes. Não há dúvida de que, para muitos espectadores, isso faz parte do seu encanto.’

O principal argumento de A Diplomata é que os políticos são péssimos líderes. Não há dúvida de que, para muitos espectadores, isso faz parte do seu encanto.

Assim como West Wing – Nos Bastidores do Poder – a série na qual a showrunner de A Diplomata, Debora Cahn, começou seus trabalhos -, o seriado é em parte um conto de fadas político, imaginando um mundo no qual as pessoas que podem resolver problemas têm de fato poder para fazê-lo. Ao tentar convencer Kate a considerar o cargo de vice-presidente, Billie pergunta: “Você consegue imaginar contratar alguém para um cargo importante do governo só porque acha que essa pessoa seria boa nisso?”.

No entanto, esse é um terreno difícil de negociar, e A Diplomata inicialmente reforça um dos estereótipos mais nocivos sobre mulheres na política, tanto na tela quanto na vida real: Mulheres que têm ambição política não são confiáveis. Em séries como Vice, 24 Horas e Borgen, as mulheres com ambição política se revelam incompetentes ou corruptas.

Por outro lado, as mulheres éticas e bem-sucedidas da política, como as de Commander in Chief, Madam Secretary e, agora, A Diplomata, são funcionárias públicas que precisam ser persuadidas a participar de campanhas e políticas partidárias.

Depois que Kate descobre que as pessoas estão tramando pelas suas costas para colocá-la como vice-presidente durante uma crise externa, ela consolida seu status de não-política ao ir até o presidente e anunciar: “Não fui feita para isso. Estou deixando o cargo. A boa notícia é que isso me torna a única pessoa no mundo que não está tentando lhe dar satisfações, mas que ainda sabe muito sobre o Irã”.

Então, depois de ensinar ao comandante-em-chefe os pontos mais delicados da política externa, Kate afirma que a disposição dele em cooperar com o pedido do primeiro-ministro britânico para uma demonstração de força é porque “você tem medo de que seus inimigos pensem que você é velho e frágil demais para colocar os americanos na linha de fogo”.

Como se trata de um conto de fadas político, o presidente, interpretado por Michael McKean, aperta a mão dela, diz que ela está se saindo muito bem e afirma: “Pare com essa história de ‘eu me demito’. Isso realmente me irrita. Não tenho esse tipo de tempo”.

A visão de uma mulher sincera e apolítica que conquista o respeito de homens poderosos expondo as falhas em suas lógicas e destacando suas fraquezas é uma boa opção para a televisão.

‘As mulheres da política que expressam ambição são avaliadas de forma mais negativa pelos eleitores do que seus colegas homens, dos quais a ambição política não é apenas tolerada, mas esperada.’

Mas isso complica as coisas quando os telespectadores se tornam eleitores e são solicitados a apoiar candidatas reais que se propõem a cargos públicos e são punidas por falarem o que pensam e afirmarem sua autoridade. As mulheres da política que expressam ambição geralmente são avaliadas de forma mais negativa pelos eleitores do que seus colegas homens, dos quais a ambição política não é apenas tolerada, mas esperada.

Gênero e poder

A Diplomata admite que mulheres protagonistas agradáveis, assim como suas correspondentes políticas, não podem parecer sedentas de poder. Mas também resiste à noção de que a vice-presidência é um cargo sem poder.

Enquanto Billie e o vice-chefe de missão da embaixada dos EUA, Stuart Heyford, interpretado por Ato Essandoh, tentam persuadir Kate a concordar em ser vice-presidente, Billie enfatiza que o cargo teria uma influência substancial.

“O vice-presidente passa mais tempo no Salão Oval do que qualquer pessoa que não tenha uma mesa lá”, diz ela, prometendo em seguida: “Nós a colocaríamos na liderança da política externa”. Stuart apela para o senso de missão de Kate com uma frase que também lembra aos espectadores que ela não é inadequadamente ambiciosa: “Você estaria fazendo isso pelo país, não pelo poder”.

A elaborada e absurda cadeia de eventos que produz essa conversa – na qual a chefe de gabinete do presidente tenta persuadir uma oficial do serviço de relações exteriores a concordar em ser vice-presidente no meio de um mandato – permite que o seriado faça observações sobre a absurda corrosividade das campanhas políticas. Depois de lembrar Kate de que ela não teria que “sobreviver a uma campanha”, há a seguinte troca de palavras entre Billie e Stuart:

Billie: “Quero dizer, é ruim para os homens, mas para as mulheres – que se dane. Ela é bonita, mas não muito bonita? Atraente, mas não gostosa? Confiante, mas não maliciosa? É decidida, mas não é vadia?”.

Stuart: “Bonitinha, mas não vadia, vadia”.

Vestindo o papel

Cahn também explora esse duplo padrão visualmente. Embora Kate prefira ternos pretos, maquiagem mínima, cabelo indisciplinado e sapatos que lhe permitam fazer uma caminhada poderosa durante o dia, sua equipe impecavelmente arrumada a incentiva a adotar um visual mais atraente, feminino e que agrade às câmeras.

Em vez de apresentar Kate como desleixada ou alheia e dar-lhe um brilho no meio da temporada, no entanto, a série demonstra que ela está bem ciente da imagem que está criando. Durante uma sessão de fotos para a Vogue britânica, Kate diz ao fotógrafo: “Não quero tornar seu trabalho mais difícil do que já é, mas seria ótimo se não houvesse nenhuma foto minha olhando melancolicamente para longe enquanto acaricio meu próprio pescoço”.

‘A Diplomata envolve insights sobre o sexismo na política na embalagem de um thriller político. Sua popularidade é uma coisa boa’

A Diplomata envolve insights sobre o sexismo na política na embalagem de um thriller político. Sua popularidade é uma coisa boa. À medida que a temporada da campanha de 2024 se intensifica, os eleitores precisam de lembretes convincentes do efeito que o sexismo pode ter sobre a democracia – porque a cultura política patriarcal é algo que todos nós temos que negociar.


*Karrin Vasby Anderson é professora de estudos de comunicação na Colorado State University


Este texto é uma republicação do site The Conversation sob uma licença Creative Commons. Leia o artigo original, em inglês.

Tradução de Letícia Miranda


Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

Este texto é uma republicação do site The Conversation sob uma licença Creative Commons. Leia o artigo original em https://theconversation.com/br

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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