18 dezembro 2024

A França e a espada de Dâmocles

A França está condenada, salvo milagrosa manobra, a um período moratório de inércia, encurralada pelas arestas internas e externas do seu próprio sistema político. Garroteada domesticamente pela heterogeneidade parlamentar e acossada internacionalmente pela União Europeia

Ex-premiê da França, Michel Barnier (Foto: The European Commission’s Employment)

Emmanuel Macron, chefe de Estado da República Francesa, levou quase dois meses para nomear Michel Barnier primeiro-ministro. Muito tempo. E, portanto, Barnier não chegou a completar nem três meses como inquilino de Matignon. 

O fato é inédito na Quinta República, inaugurada por Charles De Gaulle, em 1958, e que vinha ostentando, desde então, uma aura de estabilidade governamental apreciável, apenas marcada por curtos períodos ditos de coabitação – quando presidente e primeiro-ministro pertencem a famílias ideológicas distintas (Mitterand/Chirac; Mitterrand/Balladur; Chirac/Jospin). Tais hiatos, contudo, foram caracterizados por gabinetes que não padeciam de minoria parlamentar, proporcionando, assim, a governabilidade do país. 

‘A gestão governamental tem exigido celeridade, levando as democracias a adotarem procedimentos que diminuem a participação do parlamento no processo deliberativo’

O fato é que, a gestão governamental tem exigido, cada vez mais, celeridade em suas ações, levando as democracias a adotarem procedimentos que, de uma maneira ou de outra, diminuem a participação do parlamento no processo deliberativo. 

No Brasil, por exemplo, tem-se a Medida Provisória, regida pelo Artigo 62 da Constituição Federal; tal como, na França, há o Artigo 49.3 da Constituição da República. Este artigo da Carta Magna francesa indica, na verdade, que o primeiro-ministro pode engajar a responsabilidade do governo perante a Assembleia Nacional sobre a aprovação de um texto. Nesse caso, o texto é considerado adotado, salvo se uma moção de censura, apresentada nas 24 horas seguintes, for votada e aprovada pela maioria do parlamento. Se isso acontecer, o gabinete é destituído.  

‘Acuado simultaneamente pela União Europeia e pela cartografia de poder do seu parlamento, Barnier não conseguiu costurar uma peça politicamente sustentável’

Acuado simultaneamente pela União Europeia e pela cartografia de poder do seu parlamento, a saber, pelas forças da extrema-esquerda (Nouveau Front Populaire, liderado por Jean-Luc Mélenchon) e da extrema-direita (Rassemblement National, capitaneado por Marine Le Pen), Michel Barnier, apesar de sua reconhecida habilidade negociadora e de seu pendor inato pela moderação, não conseguiu costurar uma peça politicamente sustentável. 

Decerto, a Assembleia Nacional que emerge em julho de 2024 é marcada por uma sólida heterogeneidade tripartite. O parlamento francês se apresenta, então, dividido em três grandes agrupamentos antagônicos, sendo dois deles marcados por extremismos opostos, tornando a formação de maioria uma missão quase impossível. 

Impossível porque cada um dos três blocos adota, quase sempre, perspectiva diferente para a solução de problemas. A maior ou menor presença do Estado como elemento regulador da vida social e econômica se constituindo no componente central das disputas. Como é sabido por todos, a extrema-esquerda e a extrema-direita destoam profundamente sobre como efetuar tal regulação. 

‘Barnier formou uma coalizão por demais instável, que não sobreviveu ao seu primeiro grande desafio: a aprovação do orçamento de 2025’ 

Barnier tentou usar o agrupamento centrista como base e cooptar elementos dos outros dois blocos para constituir sua maioria parlamentar. Conseguiu uma coalizão por demais instável, que não sobreviveu ao seu primeiro grande desafio: a aprovação do orçamento de 2025. 

Na verdade, o déficit orçamentário da França vem sendo apontado pela União Europeia, já há algum tempo, como um sério problema que demanda às autoridades de Paris uma política de austeridade. A previsão é que ele seja de 6,2% em 2024. 

Também a dívida pública se encontra em um patamar indesejável, atingindo, atualmente, a marca de, aproximadamente, 110% do PIB. Ora, os parâmetros de convergência almejados por Bruxelas giram em torno de 3% e 60%, respectivamente. 

‘Uma política responsável exige que o Matignon proceda, hoje, a um drástico corte de gastos que, como é de se esperar, gera medidas impopulares’

Em suma: uma política responsável exige que o Matignon proceda, hoje, a um drástico corte de gastos que, como é de se esperar, gera medidas impopulares, obrigando o governo a privilegiar ou lesar certos segmentos sociais e, por conseguinte, a sensibilizar a representação partidária de forma muito adversa. 

Em tempos normais, onde o governo dispõe de uma maioria minimamente estável, o uso do 49.3 teria passado um tanto despercebido, tal qual ele, quase sem alarde, foi empregado 113 vezes desde o começo da V República. Contudo, na atual configuração política e levando em conta a cultura de confrontação que marca o gênio social francês – que contrasta com a conduta atrelada ao compromisso que distingue, por exemplo, a prática social britânica ou alemã – a censura ao orçamento era praticamente certa. 

O impasse é que a nomeação de um novo premiê pelo presidente, como reza a experiência parlamentarista, possivelmente não resolve o problema. Isso porque a disposição da Assembleia Nacional resta imutável, tornando remota a emergência de um governo de coalizão. Persiste uma forte ameaça de um déjà-vu

Mas então, por que não optar pela outra alternativa oferecida aos chefes de Estado de regimes parlamentares, isto é, manter o primeiro-ministro e convocar novas eleições legislativas, tal qual fez De Gaulle com Pompidou em 1962? O grande obstáculo é que a legislação vigente não permite uma nova dissolução do Legislativo antes de julho de 2025. É preciso não esquecer que durante a Terceira República a França teve 107 gabinetes, ou seja, uma média de dois gabinetes por ano! O que, obviamente, tornava o ato de governar algo, de fato, impraticável e que levou os políticos franceses a criarem mecanismos de proteção à duração mínima de governos.

‘A França está encurralada pelas arestas internas e externas do seu próprio sistema político’

A França, certamente, está encurralada pelas arestas internas e externas do seu próprio sistema político. Garroteada domesticamente pela heterogeneidade parlamentar e acossada internacionalmente pela União Europeia. Assim, está condenada, salvo milagrosa manobra, a um período moratório de inércia, marcado pela simples gerência dos negócios de rotina – balizados pela Loi Spéciale. Meses que podem parecer infindos e por demais prejudiciais ao pavilhão tricolor. 

Em um mundo marcado por relações céleres, estagnar significa perder competitividade, ou seja, significa se tornar incapaz de se transformar e de se adaptar às novas realidades instantâneas. Diante de adversários ágeis, tais quais a Alemanha – consorte de monta no seio da UE – o Japão, a China ou, ainda, os Estados-Unidos, uma França paralisada corre, seguramente, sérios riscos. 

A França não é Siracusa, nem Macron é Dionísio. Todavia, difícil não recorrer à mítica alegoria da espada de Dâmocles, presa a um único fio de crina de cavalo, a pairar sobre a cabeça de Marianne, símbolo-mor da República Francesa. Na terra onde a guilhotina fez rolar cabeças reais e revolucionárias, seria trágico ver o sabre despencar sobre o bonnet phrygien da gaulesa madonna! 

Marcelo de Almeida Medeiros é professor de política internacional comparada na Universidade Federal de Pernambuco e foi pesquisador visitante sênior no CREDA/CNRS – Institut des Hautes Études de l’Amérique Latine

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

Tags:

Democracia 🞌 França 🞌 Política 🞌

Cadastre-se para receber nossa Newsletter