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Interesse Nacional
24 abril 2024

A Guiana, o nosso petróleo e os dilemas das Responsabilidades Comuns, Porém Diferenciadas

Lideranças do Brasil e da Guiana acreditam possuir ‘autoridade moral’ para discutir com o mundo uma transição energética justa e ao mesmo tempo aumentar sua produção de petróleo. Para professora, no âmbito da justiça global, o argumento não faz sentido, e todos precisam agir com urgência contra o aquecimento global

Os presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Mohamed Irfaan Ali (da Guiana), durante reunião em Georgetown (Foto: Ricardo Stuckert/PR)

Circulou nas últimas semanas um vídeo da entrevista feita pela emissora britânica BBC com o presidente da Guiana, Mohamed Irfaan Ali, em que entrevistador e entrevistado discutem efusivamente oportunidades e desafios da atual “bonança petrolífera” no país. Nas últimas décadas, o pequeno vizinho amazônico do Brasil viveu uma dolorosa transição democrática e ondas de instabilidade política e, no enquanto, logrou quitar uma enorme dívida externa e hoje cresce a galope dada a descoberta de reservas de petróleo e gás. A presença do “ouro negro” fez o PIB crescer mais de 63% em 2022, mas também reavivou um contencioso territorial com a também vizinha Venezuela.

Na entrevista, o insaciável entrevistador cutuca seu entrevistado sobre as oportunidades e desafios do atual momento, buscando confrontá-lo com os dilemas sociais, políticos, e ambientais de uma economia dependente do petróleo. Para além do trecho que viralizou na internet, os aproximadamente 25 minutos de conversa são reveladores de alguns dos principais dilemas e tensões da agenda ambiental global contemporânea.

O petróleo, a floresta e as tensões Norte-Sul nas negociações ambientais

Quando questionado se não sentia remorso em tornar-se um país produtor de petróleo em uma conjuntura em que a comunidade internacional busca um acordo substantivo sobre o progressivo fim (ou phase out) dos combustíveis fósseis no mundo, Mohamed Irfaan Ali respondeu de forma contundente:

Você sabia que a Guiana tem uma floresta totalmente preservada e que ela tem a dimensão da Inglaterra e da Escócia juntas? (…) Mantivemos essa floresta viva, que armazena 19,5 gigatoneladas de carbono, para que você e todo o mundo possam tirar proveito, sem pagar nada por isso. Por que vocês não valorizam o fato de o povo da Guiana ter mantido a floresta viva? Temos a menor taxa de desmatamento do mundo. E sabe de uma coisa? Mesmo com o aumento da exploração dos recursos de petróleo e gás, ainda seremos ‘net zero’. A Guiana ainda terá emissões líquidas zero. (…) Porque isso é uma hipocrisia que existe no mundo. O mundo, nos últimos 50 anos, perdeu 65% de toda a sua biodiversidade. Mas nós mantivemos a nossa biodiversidade. Vocês estão valorizando isso? Estão prontos a pagar por isso? Ou vocês estão nos bolsos daqueles que destruíram o meio ambiente? Você está no bolso? Você e seu sistema que destruiu o ambiente desde a Revolução Industrial e agora quer nos dar lições?”i

Em um mundo em que a quase totalidade de produtores de petróleo (inclusive a Noruega, o Reino Unido e o Brasil) não abandonaram suas indústrias petrolíferas, a resposta de Ali escancara um ranço de “colonialismo ambiental” que vira-e-mexe permeia o debate internacional, aqui caricaturalmente simbolizado por um entrevistador branco, de uma antiga metrópole, dando lição de moral em um presidente, não-branco, de uma ex-colônia. Habilidoso, o presidente vira o jogo e defende seu “direito de explorar petróleo” apontando para a hipocrisia, ou seletividade, do Norte Global no tratamento da questão climática.

Caso da Guiana é uma poderosa ilustração da natureza explosiva das desigualdades internacionais e das questões de justiça ambiental internacional para a agenda ambiental e climática’

Trazendo a polêmica em torno da entrevista para um contexto mais amplo, tem-se aqui uma poderosa ilustração da natureza explosiva das desigualdades internacionais e das questões de justiça ambiental internacional para a agenda ambiental e climática. O presidente da Guiana não titubeia ao relembrar seu interlocutor da responsabilidade dos países industrializados pela maior parte das emissões históricas de carbono e por aindanão terem viabilizado mecanismos para financiar a mitigação, adaptação e transição verde de países do Sul. Aponta ademais para a resistência de países do Norte em pagar países do Sul pelos serviços ecossistêmicos realizados ao garantir a proteção de um grande ativo ambiental e climático planetário: as florestas tropicais. Ao fazê-lo escancara também algumas das limitações mais estruturais do atual modelo de negociações ambientais e climáticas que seguem refletindo desigualdades Norte-Sul, apostam em uma visão de proteção ambiental descolada das necessidades e aspirações sociais e de desenvolvimento, sobretudo nos países mais pobres, e estão cada vez mais capturadas por interesses corporativos, inclusive no marco de um novo “consenso da descarbonização” (BRINGEL; SVAMPA, 2023).

A verdade é que as negociações climáticas se tornaram verdadeiros “jogos de empurra” onde se escancara a hipocrisia senão de todos, de muitos. O texto da última COP de Dubai menciona o phase out dos combustíveis fósseis, mas foi tímido nas exigências e vago no como implementá-las. Na seara global ainda falta roteiro e metas claras para a transição energética. Cada país tem um quebra-cabeça e uma conta matemática próprios para diminuir suas emissões e alcançar a neutralidade de carbono.

O Brasil, por ter matriz energética mais limpa e hospedar a maior floresta tropical do planeta, parece querer deixar a transição energética para depois’

Países como a Guiana afirmam ter o direito de compensar sua produção e exportação petrolífera com preservação de florestas tropicais. Algo de similar ocorre no Brasil que, por ter matriz energética mais limpa do que a média global e hospedar grande parte da maior floresta tropical do planeta, a Amazônia, parece querer deixar a transição energética para depois. Quer inclusive ser o último produtor e exportador de petróleo do planeta.

No entanto, trata-se de um paradoxo, uma “marcha da insensatez”. Apesar da emergência climática, o ritmo da descarbonização do planeta segue lento e os acordos internacionais na matéria, insuficientes (tanto na ambição como nos meios de implementação).

É inegável que as negociações sobre o clima hoje ocorrem no marco de uma profunda crise do multilateralismo, crescente instabilidade geopolítica e captura corporativa. Tudo isso em um regime internacional pautado na lógica da diferença e da diferenciação e ancorado no princípio das Responsabilidades Comuns, Porém Diferenciadas(CBDR, na sigla em inglês) (para uma discussão do conceito ver FALKNER, 2020).

O resultado, para além do jogo de empurra, é uma tendência a um paradigma de transição “lenta e gradual”, pautada num mínimo denominador comum possível que, ao contrário do esperado, corrói aos poucos os incentivos para o tão necessário para o “aumento progressivo da ambição” e para uma “transição verde e justa”. Como sair do impasse? Como lograr desafio (político, econômico e ético) de romper com a lógica atual?

A armadilha da diferenciação

A posição do Sul Global nas negociações, incluindo a de grandes países em desenvolvimento, como o Brasil, segue sendo de que é preciso que os países desenvolvidos “liderem o processo de desaceleração no uso das energias fósseis”ii. Mas o que significa concretamente um esforço diferenciado por parte dos países ricos? E o que a liderança deles significa ou implica para outros tipos de atores diferenciados: países petrolíferos (seja do Norte, seja do Sul) e países do Sul que emitem grandes quantidades de carbono na atualidade, como a China, a Índia e o Brasil?

É preciso urgentemente repensar as Responsabilidades Comuns, Porém Diferenciadas. Não se trata aqui de abandonar o princípio em si, mas repensar sua operacionalização no século XXI’

No atual contexto o princípio da diferenciação, tão caro ao Sul Global, é uma faca de dois gumes. Acaba por justificar ou validar inação em um momento em que é preciso mais ação. O Brasil, tal como outros grandes emissores da atualidade (China, Estados Unidos, Índia, União Europeia, Rússia, Japão, Indonésia, Irã, Canadá)iii, precisa ser cobrado. É preciso urgentemente repensar as Responsabilidades Comuns, Porém Diferenciadas. Não se trata aqui de abandonar o princípio em si, mas repensar sua operacionalização no século XXI, em um contexto de emergência climática, e em um cenário em que países do Sul Global já figuram na lista das grandes economias e dos grandes responsáveis por emissões globais de gases de efeito estufa.

O desafio está em repensar sua aplicação do CBDR mantendo o espírito de equidade, mas atualizando para as novas configurações político-econômicas e sociais do século 21. É preciso firmeza para cobrar os países desenvolvidos, mas também para pensar responsabilidades comuns mais diferenciadas com e para além da lógica dos Estados-Nação. Um CBDR reformado deve responder aos anseios de justiça global entre Estados e às velhas e novas assimetrias nos eixos Norte-Sul e Sul-Sul, mas ao mesmo tempo endereçar a questão da justiça global dentro dos Estados (sobre justiça global entre e dentro dos Estados ver MAWDSLEY, 2014) criando incentivos necessários para que os países, e as populações mais vulneráveis, sejam realmente protegidos e compensados. Diante da ameaça climática, a transição é tarefa de todos. Para além do imperativo ético, a reforma do CBDR, em âmbito global, é também um instrumento concreto, para que, na seara doméstica, lideranças do Sul possam inovar na política doméstica e externa.

A Guiana é aqui

O Brasil é um caso interessante de coexistência de um histórico e importante ativismo diplomático na agenda ambiental e climática, permeado por profundas contradições de política externa e doméstica. Ao longo das últimas décadas, e antes mesmo da chegada da extrema-direita negacionista no poder, os esforços brasileiros de “liderar pelo exemplo” na agenda ambiental e na transição verde têm sido inconstantes e contraditórios (HOCHSTETLER; VIOLA, 2012; VIOLA; FRANCHINI; RIBEIRO, 2012; TEIXEIRA; TONI, 2022).

Não há país no mundo que sustente perfeita coerência na matéria, mas no Brasil de hoje a incoerência pode ter um custo alto: sabotando parte da base que elegeu, apoia e/participa do atual governo, minando o capital político-diplomático que busca cultivar para alavancar a retomada do país como player global, e expondo mais e mais brasileiros a eventos climáticos extremos e suas consequências nefastas.

Passado um ano de governo, ficou evidente que a diversidade e a questão ambiental subiram a rampa em janeiro de 2023, mas não é fácil sustentá-las politicamente’

Passado um ano de governo, ficou evidente que a diversidade e a questão ambiental subiram a rampa em janeiro de 2023, mas não é fácil sustentá-las politicamente. Em 2023, a taxa de desmatamento na Amazônia caiu, mas a perda de cobertura florestal subiu no Cerrado. O governo federal também foi mais tímido na demarcação e desintrusão de Terras Indígenas do que prometeu (MARTINS, 2024), e do que deveria, dada a inclusão de vozes indígenas na coalizão governante e sabendo o papel que as Terras Indígenas têm na conservação de florestas e da biodiversidade (FELLOWS et al., 2021). Na seara internacional, retomou seu ativismo e liderança: sediou em 2023 a Cúpula da Amazônia e sediará a COP30 em Belém em 2025. Tem também articulado países em desenvolvimento para a criação de um fundo global que financie a conservação de florestas tropicais. Na COP28, o governo brasileiro anunciou a Iniciativa Florestas Tropicais para Sempre para captar recursos que pagariam aos países detentores de florestas um valor fixo anual para cada hectare de floresta de pé, descontados os hectares desmatados ou degradados.

Por outro lado, o cenário doméstico é bastante menos favorável às aspirações de “potência verde” do país. Na agenda do desmatamento, o governo federal encontra muitas resistências no Congresso, dominado por uma Bancada Ruralista fortemente anti-indigenista e anti-ambientalista. Lembrando que a destruição das florestas e o setor agropecuário são as principais fontes de emissões no Brasil (com respectivamente 48% e 27% das emissões em 2022).

Já na agenda energética, o apoio à indústria do petróleo segue forte. Em 2022, o Brasil foi o nono maior produtor mundial de petróleo. A projeção é de aumentar a produção até 2040 e só então reduzir, de olho na meta de neutralidade de carbono em 2050.  No entanto, a Petrobras tem investido pouco baixo em energias alternativas e soluções de baixo carbono, algo em torno de 6 ou 8% nos últimos anos. Ou seja, ela também adotou o paradigma da transição “lenta e gradual” para virar empresa de energia, abaixo do nível de investimento das petrolíferas europeias (em torno dos 15% na média). Juntos os novos instrumentos de desenvolvimento, o Novo PAC e o Plano de Transformação Ecológica, trazem avanços tímidos, para não dizer insuficientes ou contraditórios na questão energética. Para coroar, e apesar da oposição dos ambientalistas dentro do governo, a proposta explorar petróleo na Foz do Amazonas segue em aberto.

Os maiores desafios aqui estão, de um lado, na negociação entre a Esplanada e Congresso e, do outro, nas lideranças da coalização governista. O Partido dos Trabalhadores, como muitos outros partidos de centro-esquerda, não produziu inovação à altura do desafio e não quis (ou não conseguiu) incorporar ou empoderar no governo aqueles que produzem inovações (o mesmo ocorre com o Partido Trabalhista britânico, em vias de se tornar governo no Reino Unido, diga-se de passagem).

Para além do discurso, o Brasil ainda não conseguiu equacionar seu projeto de retomada do crescimento com as ambições de “desenvolvimento justo sustentável”’

Para além do discurso, o Brasil ainda não conseguiu equacionar seu projeto de retomada do crescimento com as ambições de “desenvolvimento justo sustentável”, mote da presidência brasileira do G20, quem dirá de “potência verde”. Apesar dos avanços na questão da Amazônia, a contradição na questão energética é gritante. O anúncio de que o país entrará na OPEP+ para garantir que todos transacionem tampouco convenceu ambientalistas. É provável que o Brasil, tal como a Guiana, a Noruega, os Estados Unidos ou o Reino Unido, prefira ser “pragmático” e explorar até a última gota.

Lideranças no Brasil e na Guiana acreditam possuir uma “autoridade moral” para discutir com o mundo uma transição energética justa e ao mesmo tempo aumentar sua produção de petróleo. De olho nas receitas do petróleo, argumentam que alguém terá que apagar a luz e que é melhor que sejam países petrolíferos do Sul (com o direito histórico ao desenvolvimento e/ou com modelos de produção “mais eficientes” do ponto de vista de emissão de carbono, como no caso do Brasil). No âmbito da justiça entre estados, tal lógica pode até fazer sentido, mas no âmbito da justiça global não. Ainda que seja injusto que países do Sul não tenham recebido o devido apoio para a transição, todos precisam agir urgentemente para que o planeta não aqueça mais do que o limite estabelecido como viável para a vida na terra. A começar pelos grandes, o que inclui o Brasil. Tampouco é economicamente inteligente deixar que as prováveis receitas do petróleo ofusquem os necessários investimentos, desde já, nas indústrias energéticas do futuro. O Brasil perderá o bonde e nós viveremos em chamas.


Referências:

BRINGEL, B.; SVAMPA, M. The Decarbonisation Consensus. Global Dialogue, v. 13, n. 3, p. 28–31, 2023. 

FALKNER, R. Global Environmental Responsibility in International Society. Em: HANSEN-MAGNUSSON, H.; VETTERLEIN, A. (Eds.). The Rise of Responsibility in World Politics. Cambridge: Cambridge University Press, 2020. p. 101–124.

FELLOWS, M. et al. Amazônia em Chamas: Desmatamento e Fogo nas Terras Indígenas. Manaus: Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia, mar. 2021.

HOCHSTETLER, K.; VIOLA, E. Brazil and the politics of climate change: beyond the global commons. Environmental Politics, v. 21, n. 5, p. 753–771, set. 2012.

MARTINS, RAFAEL M. Isolamento, preconceito e déficit de poder marcam primeiro ano do Ministério dos Povos Indígenas. Samaúma, 3 abr. 2024. Disponível em: <https://sumauma.com/isolamento-preconceito-e-deficit-de-poder-marcam-primeiro-ano-do-ministerio-dos-povos-indigenas/#new_tab>

MAWDSLEY, E. Human Rights and South-South Development Cooperation: Reflections on the “Rising Powers” as International Development Actors. Human Rights Quarterly, v. 36, n. 3, p. 630–652, 2014.

TEIXEIRA, I.; TONI, A. A crise ambiental-climática e os desafios da contemporaneidade: o Brasil e sua política ambiental. CEBRI Revista, v. 1, n. 1, p. 71–93, 2022.

VIOLA, E.; FRANCHINI, M.; RIBEIRO, T. L. Climate governance in an international system under conservative hegemony: the role of major powers. Revista Brasileira de Política Internacional, v. 55, n. spe, p. 9–29, 2012.


Notas:

i Trecho traduzido disponível em https://braziljournal.com/a-bbc-quis-ensinar-sobre-meio-ambiente-a-guiana-nao-topou-a-palestra/.

ii Ver exemplo deste discurso em fala da Ministra Marina Silva durante a COP em Dubai em https://sumauma.com/uma-visao-amazonica-da-cop-28-e-das-pororocas-que-vao-estourar-ate-2025-em-belem/

iii Ver lista dos grandes emissores desde o Acordo de Paris em https://www.wribrasil.org.br/noticias/trajetoria-dos-10-maiores-emissores-de-carbono-desde-o-acordo-de-paris-em-graficos

Laura Trajber Waisbich é cientista política afiliada ao Skoll Centre, na Said Business School da Universidade de Oxford. Foi diretora do Programa de Estudos Brasileiros e professora de estudos latino-americanos na universidade.

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