06 junho 2024

A imparcialidade política do sistema de Justiça – Nota sobre o caso López Lone e outros v. Honduras

Análise da Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre punição a juízes hondurenhos suscita debate mais amplo sobre a liberdade de membros do Poder Judiciário para se posicionar em público sobre questões políticas — o que tem importância também para o Brasil atual

Julgamento do caso López Lone e outros v. Honduras na Corte Interamericana de Direitos Humanos (Foto: CorteIDH/Flickr)

Juízes podem se posicionar em público contra uma ação política? Caso algum juiz assuma publicamente um posicionamento político, que tipo de punição o sistema de justiça pode aplicar a ele?

Em López Lone e outros v. Honduras, a Corte Interamericana de Direitos Humanos debruçou-se sobre o caso dos juízes hondurenhos Adán Guillermo López Lone, Luis Alonso Chévez de la Rocha e Ramón Enrique Barrios Maldonado, assim como da juíza de paz Tirza del Carmen Flores Lanza, todos membros da Associação de Juízes para a Democracia, os quais foram submetidos a procedimentos disciplinares e, ao fim, demitidos do Poder Judiciário de Honduras por conta de terem se manifestado publicamente contra a deposição do presidente Manuel Zelaya. 

Nos meses que antecederam a ocorrência, a referida associação havia divulgado uma série de notas e comunicados dizendo que a deposição de Zelaya fora um golpe de Estado, em contrariedade à versão oficial, chancelada pela Suprema Corte de Justiça de Honduras, de que se tinha tratado de uma sucessão constitucional.

‘Os eventos que levaram à saída de Manuel Zelaya da Presidência de Honduras, em 2009, foram considerados por inúmeros organismos internacionais como um golpe de Estado’

Os eventos que levaram à saída de Manuel Zelaya da Presidência de Honduras, em 2009, foram considerados por inúmeros organismos internacionais como um golpe de Estado. Dentre esses organismos estão a Assembleia Geral e o Conselho Permanente da Organização dos Estados Americanos, bem como a Assembleia Geral das Nações Unidas. 

Na contramão dessa leitura, a Suprema Corte de Justiça de Honduras publicou um memorando, nos dias seguintes à queda de Zelaya, referendando a ação das Forças Armadas na condução da sucessão constitucional e no controle da desordem social que decorreu do episódio, e afirmando estar em vigilância contra quaisquer pessoas que resistissem ao retorno do Estado de Direito. Os juízes López Lone, Chévez de la Rocha, Barrios Maldonado e Flores Lanza manifestaram-se contra a tese sustentada pela Suprema Corte de Justiça e, em virtude disso, foram processados e demitidos.

Em sua apreciação do caso, a Corte Interamericana apontou que, à luz das evidências coletadas na instrução do processo, as vítimas foram punidas em razão de terem realizado ações em defesa da democracia. 

‘Tendo em vista que a comunidade internacional reputou a deposição forçada de Zelaya como sendo um golpe, as manifestações de e repúdio a tal deposição por parte de juízes hondurenhos representaram uma afirmação pública da democracia’

Tendo em vista que a comunidade internacional reputou a deposição forçada de Manuel Zelaya como sendo um golpe de Estado, as manifestações de crítica e repúdio a tal deposição por parte de juízes hondurenhos – manifestações que, conforme frisa a Corte, limitaram-se ao uso da palavra, isto é, à explicitação verbal de uma opinião política, sem que nenhum dos magistrados tenha em nenhum momento incorrido em ações de violência ou vandalismo – representaram uma afirmação pública da democracia e, nessa qualidade, não poderiam ter ensejado nenhum tipo de responsabilização disciplinar.

Com relação aos direitos dos magistrados que o Estado de Honduras violou, a Corte desenvolve um raciocínio baseado na premissa de que, embora seja possível instituir limitações ao exercício da liberdade de expressão e dos direitos políticos de juízes, com vistas a assegurar que a justiça seja ministrada com imparcialidade, caso um juiz expresse seu pensamento em público, tanto o mérito das declarações promovidas (se seu teor implica uma defesa do Estado de Direito e da democracia, ou se, por outro lado, ele veicula outros interesses e ideias) quanto a proporcionalidade da punição imposta devem ser levados em conta. 

Para sua análise dos direitos e das liberdades dos juízes, a Corte solicitou à Comissão de Veneza a elaboração de um relatório contendo um estudo comparativo de como os países europeus e a Corte Europeia de Direitos Humanos entendem a matéria.

A partir disso, e interpretando os fatos à luz de sua própria jurisprudência, a Corte Interamericana lembrou que as liberdades de expressão, reunião e associação e os direitos políticos em geral são condições de possibilidade do processo democrático, e que os cidadãos precisam ser livres para expressar suas opiniões, defender seus pontos de vista, vocalizar suas preferências e formular e expor suas críticas o mais abertamente possível, pois só assim as escolhas coletivas poderão ser legitimamente construídas. 

López Lone e outros v. Honduras foi o primeiro caso em que a Corte examinou as liberdades e os direitos políticos de membros do Poder Judiciário. Embora pontuando que a Convenção Americana garante tais liberdades e direitos a todas as pessoas, independentemente de elas integrarem algum grupo profissional, a Corte clarificou que nenhum dos direitos consagrados na Convenção é absoluto, e que quaisquer deles estão suscetíveis a restrições compatíveis com o direito internacional dos direitos humanos. 

“Em razão de suas funções na administração da justiça”, escreve a Corte na página 56 de sua sentença, “em condições de normalidade constitucional, juízes devem se subordinar a diferentes limitações, de múltiplas formas, que não sejam oponíveis a outros indivíduos, inclusive a outros agentes públicos”. 

‘A Corte concluiu que o Estado violou os direitos políticos, o direito ao devido processo legal e à ampla defesa, e as liberdades de expressão, reunião e associação dos quatro juízes’

No entanto, haja vista as circunstâncias específicas tanto do contexto político-institucional de Honduras a partir de 2008 quanto dos procedimentos levados a cabo pelo Poder Judiciário hondurenho contra López Lone, Chévez de la Rocha, Barrios Maldonado e Flores Lanza, a Corte concluiu que o Estado violou os direitos políticos, o direito ao devido processo legal e à ampla defesa, e as liberdades de expressão, reunião e associação dos quatro juízes, bem como os postulados básicos da legalidade, da independência do Poder Judiciário, da imparcialidade judicial e do dever de adotar todas as medidas cabíveis para a promoção e a proteção dos direitos humanos. Assim, condenou Honduras a reinvestir as vítimas em seus cargos judiciais, reinstalando-as nos quadros do Poder Judiciário, e a compensá-las financeiramente por danos materiais e morais.

Um aspecto fulcral da sentença em López Lone é a análise que se faz da quebra da imparcialidade nos processos punitivos instaurados contra as vítimas. A Corte argumenta que o Poder Judiciário de Honduras tomou parte no golpe de Estado promovido contra Manuel Zelaya, ao estabelecer como narrativa oficial que a deposição do presidente consistiu em hipótese regular de sucessão constitucional. 

O mais importante, no entanto, é que, ao fundamentar que o sistema judiciário hondurenho estava corrompido e, por isso, agiu como parcial nos procedimentos que resultaram na demissão dos quatro juízes, a Corte escreve que essa parcialidade decorreu não só do contexto prévio ao julgamento administrativo-disciplinar, mas também, e sobretudo, do próprio julgamento.

‘No entender da Corte Interamericana, o fato de o Poder Judiciário ter deflagrado processos e imposto punições contra magistrados simplesmente por eles terem expressado publicamente opiniões contrárias à interpretação adotada como oficial implicou por si só um ato de corrompimento do sistema’

Ou seja, no entender da Corte Interamericana, o fato de o Poder Judiciário ter deflagrado processos e imposto punições contra magistrados simplesmente por eles terem expressado publicamente opiniões contrárias à interpretação adotada como oficial implicou por si só um ato de corrompimento do sistema, uma vez que importou, paradoxalmente, na assunção de uma fala da instituição, emitida em público, em favor de determinado ponto de vista político. 

Lembrando que, no caso Apitz Barbera e outros v. Venezuela, foi fixada a orientação de que “a imparcialidade exige que o juiz intervenha em uma disputa abordando os fatos objetivamente, sem nenhum preconceito, e ao mesmo tempo oferecendo garantias suficientemente objetivas que permitam eliminar qualquer dúvida que as partes ou a comunidade possam ter quanto à ausência de imparcialidade”, a Corte explica que, ao opor-se ao discurso de crítica de seus magistrados contra a deposição de Zelaya, o Poder Judiciário hondurenho reforçou seu caráter político, escolhendo como lado oficial – e, frise-se, sem processo, contraditório, interlocução, diálogo ou ampla defesa – o da versão favorável à intervenção militar que retirou forçosamente o presidente.

A Corte não dá a esse ponto uma dimensão de tese jurídica, pois sua análise da parcialidade do sistema judiciário de Honduras no tratamento punitivo-disciplinar que foi dado às vítimas é realizada tendo em vista as peculiaridades e balizas do caso concreto. 

Há nessa consideração, todavia, um argumento poderoso. A reação disciplinar à indiscrição judicial é problemática, pois culmina em uma contradição institucional: ao punir um juiz que expressou um pensamento em público, em virtude de essa expressão minar sua imparcialidade, o Judiciário, ainda que indiretamente, opõe-se ao pensamento expresso e, com isso, expressa um outro pensamento (o pensamento oposto), circunstância que mina sua imparcialidade. Em outras palavras, buscando remediar a parcialidade de um juiz que manifestou publicamente uma ideia ou opinião, o sistema, ao puni-lo disciplinarmente, manifesta uma ideia ou opinião e, assim, perde sua imparcialidade.

No Brasil, a indiscrição político-midiática de alguns membros do Poder Judiciário constitui, sem dúvida, um grande problema para a democracia. Contudo, a reação seletiva e injusta do sistema de justiça contra manifestações públicas de juízes revela-se, sob certo ângulo, um problema ainda maior. 

Se pensarmos que os ministros do Supremo Tribunal Federal – que, pelo posto que ocupam na estrutura da jurisdição, deveriam, mais do que quaisquer outros juízes, agir com discrição, reserva e comedimento – são exatamente os que mais livremente participam da vida política e do debate midiático, fica difícil contestar que a aplicação de punições disciplinares a juízes de posição inferior simplesmente por terem manifestado opiniões em público, representa uma quebra da imparcialidade política do sistema de justiça.

Rafael Dilly Patrus é doutor em direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Mestre em história e em direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Consultor legislativo concursado na Assembleia Legislativa de Minas Gerais.

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