A janela de Overton está escancarada: significado do termo ‘censura’ está mudando
Estudo mostra que a extrema-direita brasileira se apropriou do conceito de censura como recurso estratégico, associando-o sobretudo ao STF e ao ministro Alexandre de Moraes

Por Daniela Osvald Ramos*
Você já ouviu falar da “janela de Overton”?
Se não ouviu, segue o fio, se ouviu, mais uma evidência de que sim, as plataformas de big tech e a internet estão servindo para mudar significados de termos que antes tinham o mesmo significado para um conjunto amplo de pessoas. E mais: essa mudança de significado impacta na política.
O termo foi criado por Joseph Overton no final do século 20 e descreve um mecanismo segundo o qual ideias políticas parecem mais ou menos aceitáveis para a opinião pública.
Assim, trata-se de criar um ambiente favorável para que uma determinada ideia seja mais ou menos aceitável, sendo que essa escala pode ir do “impensável, radical” para “aceitável, sensato”.
Sabe o escândalo desumano criado para impedir o aborto legalizado de uma menina de 10 anos estuprada? São vários casos, mas neste, em plena pandemia de 2020, o hospital em Pernambuco que faria o procedimento foi alvo de manifestantes. Impensável?
Aceitável, para uma maioria radicalizada em torno da pauta do controle absoluto do corpo de pessoas com sexo biológico feminino. A balbúrdia em torno da criminalização de um direito já alcançado pela histórica luta de mulheres nunca teve nada de acaso, é estratégia.
Trata-se de modificar a opinião pública em relação ao aborto, criminalizando esse procedimento em qualquer caso – para os radicais, se há uma exceção, isso pode levar à mudança contrária, ou seja, que ao longo do tempo o aborto se torne legalizado sem exceção.
E isso que estamos falando de um acontecimento que pode tirar a vida de uma menina de 10 anos. Daí, torna-se justificável atentar contra a vida e os direitos de meninas e mulheres para tentar mudar uma lei por pressão popular.
Corta para agosto de 2025.
Neste mês, mais precisamente no dia 22, um grupo de professores da Escola de Comunicações e Artes se reuniu para organizar um evento chamado Data Sprint, na Semana de Cultura e Extensão da Unidade. Os professores Alan Angelucci e Carolina Terra tomaram a frente, com seus respectivos grupos de pesquisa. Tive a oportunidade de ser chamada para a parceria pela colega de departamento Issaaf Karhawi, ao que prontamente aceitei.
O evento teve também a importante parceria da ferramenta de social listening Stilingue by Blip. Basicamente, tratou-se de discutir a importância de monitoramento de dados no campo da Comunicação e colocar a mão na massa, o que foi feito com o Stilingue.
Na pesquisa que o Observatório de Comunicação, Liberdade de Expressão e Censura (Obcom) se propôs a fazer que acabamos de publicar com o título de Monitoramento Digital da Censura: Tendências e Discursos Online (2024–2025), monitoramos a palavra “censura” no intervalo de um ano em uma base de 380 mil publicações (para mais detalhes sobre plataformas e publicações monitoradas, leia no relatório).
Os principais resultados não chegam a ser surpreendentes, mas nos levam à conclusão de que o ambiente digital é utilizado para que se modifique o significado do termo “censura”, como podemos ver pelo resumo dos achados. No texto corrido, discutimos estes pontos com base na literatura crítica consultada:
- O termo “censura” foi usado majoritariamente em chave negativa (89% das menções), funcionando como acusação e denúncia no debate digital.
- A extrema-direita brasileira se apropriou do conceito como recurso estratégico, associando-o sobretudo ao STF e ao ministro Alexandre de Moraes.
- Atores sociais como os deputados Mário Frias e Bia Kicis garantem a constância do tema nas redes, enquanto Jair Bolsonaro concentra picos de engajamento e legitima a narrativa. É a “cauda longa” do discurso enviesado sobre o significado de censura, ativada por Bolsonaro de tempos em tempos.
- A imprensa profissional, como G1 e GloboNews, ainda desempenha papel relevante, mas tende a reforçar enquadramentos institucionais, contrastando com veículos alinhados à direita (Gazeta do Povo, Jovem Pan News). No entanto o enquadramento sempre cita nominalmente STF e Moraes, que viraram sinônimo de “censura” nas redes. Como fugir desta armadilha, professores de Jornalismo? Tem como?
- Há uma forte assimetria de vozes: predominam homens e organizações, com baixa presença de mulheres e ausência de diversidade racial ou de minorias.
- O bolsonarismo conecta-se a ecossistemas digitais alternativos e conhecidos por não terem nenhum filtro, como Rumble e Trump Media, compondo um circuito transnacional de retórica contra a regulação das plataformas mais “tradicionais”, como Facebook e Instagram.
- A censura é discursivamente vinculada não só ao Judiciário, mas também ao governo federal e à esquerda, como forma de construção de inimigos políticos: atenção, Overton! Janela escancarada.
- A ideia de um “Complexo Industrial de Censura brasileiro” mostra a tentativa de institucionalizar a percepção de perseguição política. Outra ajuda para a mudança de percepção do termo.
- Finalmente, concluímos que há uma disputa permanente sobre o significado do termo “censura” no Brasil, mantida pivô deum platô conflitivo e reativada em momentos de maior tensão política.
Futuras pesquisas com este escopo podem ajudar a confrontar ou confirmar estas conclusões parciais, lembrando que qualquer diagnóstico a partir de redes sociais operadas por plataformas é um instantâneo da conversação naquele momento.
*Daniela Osvald Ramos é professora da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP
Este texto é uma reprodução autorizada de conteúdo do Jornal da USP - https://jornal.usp.br/
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