A retórica e os limites do novo Brics – Entre a ambição do Sul Global e as contradições geopolíticas
Declaração da Cúpula do grupo revela uma seletividade que compromete o potencial do Brics como articulador legítimo de uma ordem internacional mais justa e arrisca transformar o grupo em um espelho invertido do Ocidente que critica: uma coalizão de conveniência disposta a defender “direitos” quando isso convém, mas indiferente quando os abusos partem de seus próprios aliados

A Declaração do Rio de Janeiro, resultado da XVII Cúpula dos BRICS realizada em julho de 2025, é extensa e ambiciosa. Intitulado Fortalecendo a Cooperação do Sul Global para uma Governança mais Inclusiva e Sustentável, o documento representa o esforço dos países do bloco em moldar uma nova narrativa sobre o papel do Sul Global no cenário internacional. No entanto, por trás da linguagem diplomática e dos compromissos retóricos, permanecem contradições estruturais e ambiguidades políticas que limitam o alcance prático das propostas.
A ampliação do Brics e a incorporação de novos países parceiros, como Indonésia, Belarus, Bolívia e Nigéria, é apresentada na Declaração do Rio de Janeiro como símbolo de um novo multilateralismo inclusivo, fundado na solidariedade Sul-Sul e na busca por uma ordem internacional mais representativa.
‘Trata-se de um bloco cuja identidade comum é marcada mais pela contestação da ordem vigente do que por uma agenda propositiva convergente’
Em tese, trata-se de uma tentativa de dar maior densidade política ao grupo, ampliando sua legitimidade e capacidade de articulação perante os fóruns multilaterais. No entanto, esse processo de expansão, longe de consolidar um polo de coesão geoestratégica, acentua a já conhecida heterogeneidade do Brics. Trata-se de um bloco cuja identidade comum é marcada mais pela contestação da ordem vigente do que por uma agenda propositiva convergente.
A diversidade dos países-membros e parceiros vai além da geografia: inclui sistemas políticos que vão de democracias liberais a regimes autoritários consolidados, modelos econômicos centrados em alta tecnologia e inovação, como o da China, ao extrativismo de commodities, como no caso da Bolívia, além de prioridades geopolíticas que muitas vezes se chocam.
‘Em vez de um “núcleo duro” de interesses comuns, o Brics+ opera como uma colcha de retalhos de reivindicações nacionais’
A presença simultânea de países como Índia e China, rivais estratégicos na Ásia, e de Estados sob sanções internacionais, como Irã e Belarus, evidencia os limites do grupo enquanto instância de formulação de consensos robustos. Em vez de um “núcleo duro” de interesses comuns, o Brics+ opera como uma colcha de retalhos de reivindicações nacionais, muitas vezes desconectadas entre si.
Esse quadro evidencia uma das fragilidades centrais da narrativa multipolar promovida pelo Brics: a ausência de um projeto coerente de governança global alternativa.
A “multipolaridade” evocada no documento é mais um signo de resistência ao unilateralismo ocidental do que uma proposta estruturada de substituição da ordem vigente. Falta ao grupo uma arquitetura normativa própria, com regras, instituições e mecanismos que traduzam em práticas concretas os valores que proclama, como democracia, inclusão, desenvolvimento sustentável e justiça internacional.
‘A crescente complexidade do grupo tende a produzir mais declarações de intenção do que ações coordenadas’
Além disso, a ampliação do grupo não é acompanhada de um aprofundamento institucional correspondente. O Brics permanece com baixa densidade institucional, sem secretariado permanente, regras de decisão vinculantes ou mecanismos efetivos de resolução de disputas. A governança é guiada pelo consenso informal, o que, embora mantenha a coesão superficial, dificulta a operacionalização de políticas conjuntas e compromissos duradouros. Na prática, isso significa que a crescente complexidade do grupo tende a produzir mais declarações de intenção do que ações coordenadas.
O documento reitera a defesa da reforma das instituições de Bretton Woods e do Conselho de Segurança da ONU, pautas históricas do Brics desde sua criação, como forma de corrigir a sub-representação do Sul Global e democratizar as estruturas de governança global. Contudo, mais uma vez, esse compromisso aparece revestido de uma retórica protocolar, progressista no tom, mas frágil em conteúdo.
‘A Declaração evita enfrentar os reais bloqueios políticos à concretização dessas reformas’
A Declaração do Rio de Janeiro reafirma “aspirações legítimas” de maior participação de países como o Brasil e a Índia, mas evita enfrentar os reais bloqueios políticos à concretização dessas reformas, inclusive os que partem de dentro do próprio grupo.
É notório, por exemplo, o silêncio sobre a resistência da China em aceitar a ampliação dos assentos permanentes do Conselho de Segurança da ONU com direito a veto. Ao mesmo tempo, a Rússia, embora tenha reiterado seu apoio nominal à reivindicação brasileira e indiana, permanece alinhada à defesa do status quo que lhe garante poder privilegiado no sistema das Nações Unidas. Não há qualquer indício de que o país esteja disposto a abrir mão de prerrogativas estratégicas, como o veto no CSNU, ou a apoiar reformas que, mesmo indiretamente, possam diluir sua centralidade geopolítica. Em outras palavras, os dois membros permanentes do grupo tendem a instrumentalizar a defesa da reforma como ferramenta de soft power perante o Sul Global, ao mesmo tempo em que protegem zelosamente seus próprios privilégios institucionais.
‘O grupo permanece mais reativo do que propositivo frente à hegemonia financeira ocidental’
No caso das instituições financeiras de Bretton Woods, o padrão se repete. A demanda por maior representação dos países em desenvolvimento no FMI e no Banco Mundial é justa e urgente, mas novamente esbarra na falta de mecanismos políticos concretos para sua implementação. A ausência de um fundo próprio do Brics, ou de uma proposta de alternativa real ao dólar como moeda de reserva global, demonstra que o grupo permanece mais reativo do que propositivo frente à hegemonia financeira ocidental.
Além disso, o apoio do Brics à “transparência e meritocracia” nos processos de nomeação em organismos internacionais, embora desejável, torna-se contraditório quando se observa o comportamento de alguns membros do grupo, como a Rússia, que têm reiteradamente contestado ou obstruído instâncias multilaterais quando estas são desfavoráveis aos seus interesses, inclusive com acusações sistemáticas de viés político.
‘É na política internacional que a inconsistência do Brics se torna mais gritante’
É na política internacional que a inconsistência do Brics se torna mais gritante. A Declaração dedica longos parágrafos à condenação das ações de Israel em Gaza, ao apoio irrestrito à causa palestina e à denúncia das sanções unilaterais impostas pelos Estados Unidos e seus aliados. No entanto, a retórica de indignação é seletiva e reveladora: silencia quase completamente sobre as ações agressivas da Rússia na Ucrânia e se limita a expressar “profunda preocupação” com os ataques contra o Irã, país aliado da Rússia e da China.
A guerra da Ucrânia, que já dura mais de três anos, com extensa destruição de cidades, deportação de crianças e uso sistemático de ataques contra infraestrutura civil, é mencionada apenas no parágrafo 22 da Declaração, em linguagem diplomática estéril, sem qualquer condenação à Rússia. A menção à “Iniciativa Africana de Paz” e ao “diálogo” soa como uma cortina de fumaça para mascarar a conivência do grupo com a agressão russa. O país não é tratado como parte de um conflito violento e ilegal, mas como um ator legítimo na busca por uma solução.
O contraste com o tratamento dado a Israel é evidente. A Declaração do Brics dedica seis parágrafos à condenação da atuação israelense em Gaza, referindo-se a ela como ocupação ilegal e fazendo referência explícita às medidas cautelares da Corte Internacional de Justiça (CIJ) no processo movido pela África do Sul, que acusa Israel de genocídio. Ainda que haja razões legítimas para críticas severas à condução da guerra por parte do governo israelense, o tom do documento não encontra paralelo na abordagem de outros conflitos com níveis de violência e desrespeito ao direito internacional igualmente graves.
‘O Brics adota um discurso seletivo dos direitos humanos, utilizado como instrumento de crítica à ordem liberal ocidental, mas sem compromisso universal com os princípios que dizem defender’
Essa assimetria moral revela uma estratégia política deliberada: o Brics adota um discurso seletivo dos direitos humanos, utilizado como instrumento de crítica à ordem liberal ocidental, mas sem compromisso universal com os princípios que dizem defender.
A omissão sobre os crimes de guerra cometidos pela Rússia, as violações sistemáticas de direitos humanos no Irã ou a perseguição política em Belarus, expõe a lógica de conveniência geopolítica por trás do discurso do “Sul Global”. Direitos humanos, neste enquadramento, não são valores universais, mas ferramentas táticas mobilizadas conforme o alinhamento ideológico e estratégico dos países envolvidos.
‘O Brasil assume nessa Declaração um papel ambíguo e desconfortável’
O Brasil, que historicamente buscou se projetar como mediador equidistante e defensor do direito internacional, assume nessa Declaração um papel ambíguo e desconfortável.
Ao endossar, sem reservas, a narrativa russa sobre a guerra na Ucrânia e ao silenciar sobre a repressão no Irã, o governo brasileiro arrisca sua credibilidade como ator normativo e afasta-se de sua tradição diplomática de defesa consistente do multilateralismo, da solução pacífica de controvérsias e dos direitos humanos como valores universais. Ao mesmo tempo, critica duramente Israel, com razão em muitos aspectos, mas sem oferecer qualquer autocrítica ou menção a atrocidades cometidas por outros atores, como o Hamas, cuja prática de ataques a civis também fere gravemente o direito humanitário internacional.
Essa seletividade compromete o potencial do Brics como articulador legítimo de uma ordem internacional mais justa. Ao invés de oferecer uma alternativa normativa aos vícios da ordem liberal liderada pelos EUA, muitas vezes hipócrita e pautada por interesses, o grupo apenas reproduz outra forma de cinismo geopolítico, agora travestido de solidariedade ao Sul Global. O risco, portanto, é o Brics transformar-se em um espelho invertido do Ocidente que critica: uma coalizão de conveniência, disposta a defender “direitos” quando isso convém, mas indiferente quando os abusos partem de seus próprios aliados.
‘O Brasil perde uma oportunidade histórica de afirmar uma política externa verdadeiramente autônoma, baseada em valores consistentes e comprometida com a universalização dos direitos’
O Brasil, ao se alinhar a essa lógica na Declaração do Rio de Janeiro, perde uma oportunidade histórica de afirmar uma política externa verdadeiramente autônoma, baseada em valores consistentes e comprometida com a universalização dos direitos. Ao evitar qualquer crítica à Rússia e ao Irã, ao mesmo tempo em que lidera os ataques verbais contra Israel e denuncia genericamente os “abusos do Ocidente”, o país dilui sua tradição diplomática e se subordina a uma agenda que não controla, e que muitas vezes contradiz seus próprios interesses e valores.
A Cúpula do Rio, portanto, marca mais uma oportunidade perdida. O Brics segue sendo um fórum de grande potencial simbólico, mas ainda incapaz de oferecer um projeto robusto, coeso e transformador para o Sistema Internacional.
Sem enfrentar suas próprias contradições, o bloco arrisca-se a tornar-se irrelevante como alternativa real à ordem global existente. Pior: pode se tornar apenas mais um instrumento geopolítico a serviço de potências revisionistas, com retórica emancipatória, mas prática seletiva e inconsequente. O desafio do Brics, hoje, não é apenas o de ganhar espaço no sistema internacional é o de merecê-lo.
Karina Stange Calandrin é colunista da Interesse Nacional, professora de relações internacionais no Ibmec-SP e na Uniso, pesquisadora de pós-doutorado do Instituto de Relações Internacionais da USP e doutora em relações internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp e PUC-SP).
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