29 abril 2024

A trilha de lágrimas para lugar nenhum

Mesmo antes do Marco Temporal reiterar direitos dos indígenas, a Constituição brasileira já oferecia garantias limitadas a terras, permitindo ao usufruto sem a propriedade. Para professor, leis deixam povos originários sem saída no Brasil

Indígenas do Mato Grosso do Sul e do Paraná se reúnem em frente ao STF para protestar contra o Marco Temporal (Foto: Rafa Neddermeyer/Agência Brasil)

Um olhar para o mapa produzido pelo etnólogo germano-brasileiro, Curt Nimuendaju, mostra que a maior parte do Brasil já foi ocupada por povos indígenas de uma etnia ou outra. Isso não é nada extraordinário, pois o mesmo pode ser dito de muitos lugares, por exemplo, de toda a América do Norte. Dado que a Constituição brasileira de 1988 concedeu terras, em princípio, àqueles que podem estabelecer reivindicações ancestrais, grande parte do Brasil pareceria potencialmente vulnerável a uma expropriação indígena, apoiada pelo Estado. Para evitar tal desfecho preocupante, muitos argumentam que um teste de autenticidade é necessário para garantir a legitimidade da ocupação prévia pelos pretendentes indígenas. O Marco Temporal é o teste de autenticidade que tem sido aventado a esse respeito.

Antes de prosseguir, permita-me observar que conceder “terras” na forma de Terras Indígenas não é o que você pode pensar. Isso ocorre porque a Constituição permite concessões de terras, mas apenas parcialmente. Para começar, terras constitucionalmente examinadas pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas não podem ser vendidas, o que significa que a propriedade indígena fornece apenas um “direito de uso”, ou usufruto. Além disso, o usufruto não é uma disposição de “propriedade plena”, o que significa que os residentes de uma Terra Indígena só podem utilizar os recursos ecológicos na superfície da terra. Uma peça crítica está faltando, ou seja, a riqueza mineral sob as plantações que são cultivadas e os animais que são caçados. Isso permanece nas mãos do Estado brasileiro.

‘O “marco temporal” é uma tese jurídica que se tornou lei sobre o papel do tempo no estabelecimento de uma reivindicação de terra válida’

Então, o que é esse “marco temporal” que no momento está causando controvérsia e ganhando manchetes? De maneira simples, é uma tese jurídica que se tornou lei sobre o papel do tempo no estabelecimento de uma reivindicação de terra válida. A ideia é que a legitimidade possa ser baseada no tempo que um pretendente ocupou fisicamente a terra em questão. A ocupação de longo prazo, iniciada antes de uma certa data – digamos, 5 de outubro de 1988 – estabelece a legitimidade. A implicação é que, se os pretendentes indígenas só puderem estabelecer a ocupação a partir de 6 de outubro, estão sem sorte e vulneráveis a despejos.

A data que utilizei, 5 de outubro, não é arbitrária. É o Marco Temporal real no cerne da questão, ou seja, o dia em que o Brasil promulgou sua Constituição em 1988, a constituição que concedeu aos povos indígenas do Brasil direitos que lhes haviam sido negados por muito tempo.

‘A pobreza moral do Marco Temporal repousa no fato histórico de que os povos indígenas em toda a América há muito sofrem despejos forçados’

A pobreza moral do Marco Temporal repousa no fato histórico de que os povos indígenas em toda a América há muito sofrem despejos forçados, caso em que a criação de Terras Indígenas deve ser vista como uma forma de justa restituição. O contra-argumento é que indivíduos trabalhadores que transformam “terras vazias” em terras produtivas possuem um direito de propriedade em virtude do suor, um direito que suplanta reivindicações baseadas em habitação ancestral. 

Os ruralistas parecem convencidos de que, sem um Marco Temporal, impostores indígenas irão agarrar avidamente cada pedaço de terra que puderem, com o pleno apoio da Funai e de um judiciário negligente em conluio com ambientalistas e possivelmente até comunistas. Eles se preocupam que casas compridas brotem como cogumelos na praia de Ipanema, e os moradores do Leblon sejam ameaçados pelas flechas perdidas de guerreiros caçando cães no bairro.

‘Os ruralistas querem jogar com 52 ases em seu baralho’

A questão é destacada ao considerar a abertura da Amazônia durante os anos 1970 e início dos anos 1980. Um deslocamento indígena significativo ocorreu como consequência dos vários projetos de colonização e infraestrutura empreendidos. Nem esses deslocamentos foram amigáveis. Note que foi apenas em 1988, em 5 de outubro para ser exato, que aqueles que haviam sido despejados de suas terras natais foram convidados a retornar. Infelizmente, pelo ditame do Marco Temporal, que agora é lei, para que aqueles que retornaram permaneçam seguros em suas terras garantidas constitucionalmente, eles devem ser capazes de provar que estavam vivendo lá no mesmo dia em que foram informados de que podiam. Isso realmente pode ser tão ultrajante? Evidentemente, sim. Os ruralistas querem jogar com 52 ases em seu baralho.

Os povos indígenas que abandonaram os territórios ancestrais à medida que a Amazônia abria suas portas para o desenvolvimento o fizeram porque pessoas não indígenas os expulsaram à força. É difícil imaginar qualquer doutrina legal que interprete terras adquiridas desta forma como qualquer coisa além de roubo. Se algum grupo mal-educado de indivíduos barulhentos fizesse você buscar sobreviver após incendiar sua casa e atirar em seus animais de estimação, você reclamaria e esperaria ação imediata do governo. Por que deveria ser diferente para os brasileiros indígenas?

Mapa produzido pelo etnólogo germano-brasileiro, Curt Nimuendaju

O ano passado assistiu a uma intensificação do conflito sobre o Marco Temporal envolvendo todos os ramos do governo federal do Brasil. A história é complicada e segue assim. Há alguns anos, Santa Catarina despejou o povo Xokleng de terras que o Estado desejava declarar como reserva natural. Isto é irônico dado que a Constituição de 1988 articula o cuidado ambiental como uma espécie de quid pro quo para a concessão de terras. Além disso, a ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, tem sido bastante vocal a esse respeito, o que é razoável, dado que Lula da Silva argumenta que a proteção dos direitos indígenas é essencial para a conservação florestal. 

Em todo caso, Santa Catarina argumentou que o povo Xokleng não possuía uma reivindicação válida dada a brevidade de sua ocupação. Especificamente, eles não haviam cumprido o prazo do Marco Temporal, 5 de outubro de 1988. A Funai ajudou os Xokleng a elaborar uma ação judicial, e o caso foi parar perante o Supremo Tribunal Federal. Em 21 de setembro de 2023, o tribunal superior decidiu a favor dos Xokleng, essencialmente declarando o Marco Temporal inconstitucional. Note que o argumento de Santa Catarina introduziu o marco temporal como uma tese jurídica, não como um ponto de lei existente.

Enquanto o alto tribunal estava deliberando, e em evidente desrespeito ao processo judicial acabado de expor, o Congresso Brasileiro avançou com um pacote de leis destinadas a limitar os direitos indígenas, incluindo, você adivinhou, o Marco Temporal. Primeiro, passou pela Câmara dos Deputados como PL 490/2007 em 30 de maio de 2023. Depois veio o Senado, onde o projeto de lei foi aprovado como PL 2903/2023 em 27 de setembro de 2023. Em 20 de outubro, a legislação tornou-se a lei 14.701/2023. Lula vetou partes dela, especialmente o Marco Temporal, no mesmo dia, mas não adiantou. O Congresso Brasileiro derrubou o veto de Lula em 14 de dezembro de 2023. O Marco Temporal permanece como lei do país. Pelo menos por enquanto.

‘É natural questionar como é possível aprovar uma lei que parafraseia uma tese jurídica que foi declarada inconstitucional’

É natural questionar como é possível aprovar uma lei que parafraseia uma tese jurídica que foi declarada inconstitucional. Estritamente falando, uma tese é apenas uma tese, algo um pouco tentativo que ainda não foi consagrado nos sagrados recintos da lei estabelecida. Seja qual for a explicação, está claro que uma maioria no Congresso Brasileiro não se importa muito com o que seus colegas fazem nos tribunais.

Há uma analogia histórica deprimente com os Estados Unidos que é relevante aqui. No início dos anos 1800, colonos do litoral atlântico avançaram sobre partes da Geórgia e começaram a invadir terras há muito ocupadas pela Nação Cherokee. Isso causou problemas, e os Cherokee levaram suas queixas até a Suprema Corte dos EUA, que decidiu a favor deles, legitimando assim sua reivindicação territorial. Neste caso, foi o Poder Executivo, não o Legislativo, que ignorou a decisão do tribunal. Se Lula fosse presidente dos EUA, teria havido um final feliz para o povo Cherokee. Infelizmente, o arquétipo de caçador de índios, Andrew Jackson, estava no cargo.

Assim como o Congresso Brasileiro, Jackson tinha pouca paciência com as decisões judiciais. Ele preferia as Forças Armadas do que os freios e contrapesos, uma inclinação que produziu um dos eventos mais vergonhosos da história doméstica dos EUA. Refiro-me à remoção forçada da nação Cherokee para terras a oeste do rio Mississippi ao longo da infame “Trilha das Lágrimas”.

‘Os redatores da Constituição de 1988 foram inteligentes ao garantir que todos os quid pro quos funcionem a favor de todos, menos dos povos indígenas’

É uma ironia histórica que alguns daqueles forçados ao exílio por Jackson e seus lacaios acabaram em terras do oeste que lhes renderam fortunas em petróleo. Infelizmente para os povos indígenas do Brasil, tal desfecho favorável não é possível. Os redatores da Constituição de 1988 foram inteligentes ao garantir que todos os quid pro quos – ocultos por uma linguagem constitucional grandiosa – funcionem a favor de todos, menos dos povos indígenas.

Você pode ter a terra, mas não a riqueza. Você pode ter a terra, mas não toque nas árvores. Você pode ter a terra, mas apenas até que alguém diga que você não pode.

Os povos indígenas do Brasil não devem ser empurrados para uma trilha de lágrimas para lugar nenhum.

Robert Toovey Walker é colunista da Interesse Nacional, geógrafo, tem doutorado em ciência regional pela University of Pennsylvania e é professor de estudos latino-americanos e geografia na University of Florida

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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